domingo, 24 de outubro de 2010

Agonia nas ilhas do Sirinhaém

Estuário pernambucano assiste ao crescimento de canaviais e à expulsão de famílias

MAURICIO MONTEIRO FILHO

Maria das Dores no mangue:
subsistência ameaçada
Foto: André Pessoa

Fora do local onde vivem, as irmãs Maria Nazareth e Maria das Dores dos Santos são lembradas somente muito de vez em quando. A cada ciclo eleitoral, é certa a passagem de algum candidato por suas casas. Com mais frequência, segundo elas, é a polícia quem traz recordações de que ainda existem mantenedores da ordem. Pena é que essas lembranças vêm em forma de agressões e prisões sem nenhum motivo, quando não em ataques contra suas moradias. As residências de ambas já vieram abaixo muitas e muitas vezes. Nazareth ainda insiste em reerguer a construção, mas Das Dores nem se dá ao trabalho: resigna-se a viver num barraco precário, coberto de lona preta.

A comunicação mais habitual com o mundo externo, no entanto, vem da Trapiche, tradicional usina canavieira pernambucana, que fica próxima à área onde moram as duas irmãs com suas famílias. Nesse caso, os lembretes são mais contundentes, segundo os relatos: vêm na forma de um líquido que escurece os rios, provocando uma forte “catinga de carniça” e grande mortandade de peixes e guaiamuns, caranguejos do mangue, importante fonte de renda para ambas. A substância em questão é o vinhoto, subproduto altamente poluente da fabricação de etanol a partir do caldo de cana fermentado.

Diante dessa relação conturbada com o mundo externo, é natural que as visitas de Nazareth e Das Dores à cidade se resumam ao necessário. Elas só percorrem o caminho árduo que as mantém isoladas para ir à área urbana de Sirinhaém, localidade 75 quilômetros ao sul do Recife, para vender o pouco – cada vez menos – que ainda conseguem extrair do mangue, ou por motivos médicos.

O restante do tempo elas passam trabalhando para a subsistência em suas casas, que, apesar de relativamente próximas da cidade grande, parecem estar no local mais ermo do planeta. Para chegar até onde vivem as irmãs, partindo da rodovia estadual PE-60, é necessário percorrer alguns quilômetros de estrada de areia em meio à mata. Daí em diante, só a pé, arregaçando as calças e atravessando um rio, que conduz a um mangue que aparenta estar em ótimo estado de preservação. O local é conhecido como ilha do Constantino, e suas únicas habitantes são as famílias de Nazareth e de Das Dores.

A ilha em que vivem as duas é a única habitada entre as 17 que compõem o arquipélago do estuário do rio Sirinhaém. Nem sempre foi assim, porém. Até 1998, 53 famílias moravam na região, vivendo do extrativismo de produtos do mangue. Desde então, num processo crivado de atritos entre os moradores e a usina, as famílias foram, uma a uma, abandonando suas casas nas ilhas para ir para a periferia urbana, mais especificamente para as favelas de Sirinhaém, cidade com cerca de 39 mil habitantes.

Os motivos que levaram à mudança dos pescadores e extrativistas são nebulosos. Lideranças locais declaram que a empresa costurou acordos forçados, ou, no mínimo, nitidamente desvantajosos para os ilhéus, pagando quantias irrisórias para que eles abandonassem a área e levando-os a uma situação de miséria muito mais grave nas zonas urbanas. “Por meio de ameaças, a Trapiche conseguiu paulatinamente expulsar 51 famílias que hoje engrossam a comunidade de favelados de Sirinhaém”, afirma o frei Sinesio Araujo, que acompanha há 15 anos esse processo.

De acordo com os relatos das irmãs, que se recusam a ter o mesmo destino das outras famílias, a usina apelou várias vezes à violência, em alguns casos até com a anuência da polícia militar local. Em 2007, de forma ilegal, chegaram a ficar presas dentro das próprias casas e, mesmo analfabetas, foram forçadas a assinar documentos para ser liberadas. Segundo elas, sob a supervisão condescendente de agentes policiais, funcionários da empresa derrubam as casas, cena que já se tornou frequente. Ambas estimam ter visto suas moradias no chão pelo menos sete vezes. Devido ao envolvimento em ações contra as duas, há empregados que respondem atualmente a processo.

A Trapiche afirma ter intenção de remover as moradoras da área, mas nega qualquer problema com elas. “A empresa procurou fazer acordo com aquelas pessoas, mas não obteve êxito. Ingressou com ação de reintegração de posse, que foi julgada procedente, tendo sido a sentença de primeiro grau confirmada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco e pelo Superior Tribunal de Justiça. O relacionamento com as referidas moradoras é normal, não existindo atritos. Alguns dos antigos moradores trabalham hoje na própria usina, e o acesso para pesca no manguezal é totalmente livre, para toda a população”, afirma Cristiana Menezes, representante da Trapiche.

Não bastassem esses elementos, o conflito ganha contornos ainda mais complexos pelo fato de a área onde estão os moradores e a usina ser terra pública – sobre a qual a empresa exerce direitos de aforamento – e de alto interesse ambiental, por se tratar de um mangue ainda preservado e com forte potencial ecoturístico.

Apogeu, queda e continuidade

A atividade canavieira pernambucana remonta aos tempos coloniais e desempenhou papel fundamental na ocupação do território brasileiro, como nos contam os livros escolares de história. Hoje, no entanto, Pernambuco perdeu o lugar de destaque que tinha na produção nacional de cana-de-açúcar. Atualmente, é a região sudeste que lidera o segmento, encabeçada pelo estado de São Paulo, com mais de 4,5 milhões de hectares ocupados pela cultura.

Pernambuco aparece apenas na sexta posição no ranking de área plantada, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2008, figurando com 403.072 hectares de lavouras de cana-de-açúcar. Segundo informações da mesma fonte, quando a variável é a quantidade produzida, o estado nordestino cai para sétimo lugar, com pouco mais de 20 mil toneladas, o que demonstra que a produtividade das lavouras ainda deixa a desejar.

Inserida nesse contexto, a Usina Trapiche, uma das mais tradicionais do Brasil, assistiu a boa parte desse processo de apogeu e queda. Fundada em 1887, hoje pertence ao grupo do usineiro alagoano Luiz Antônio de Andrade Bezerra.

Diversas empresas do setor em todas as regiões produtoras, mesmo com a modernização pela qual o segmento vem passando, provocam sérios prejuízos ambientais. No caso da Trapiche, porém, a reincidência e o acúmulo de problemas chamam a atenção.

A empresa esteve entre as autuadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na chamada Operação Engenho Verde, de 2008. O saldo final da ação, que implicou 24 empresas, foi de R$ 120 milhões em multas. À época, representantes do órgão declararam que a Trapiche “não é primária na prática de atos degradadores do meio ambiente. Essa já é a terceira autuação à primeira demandada, sempre por exercer atividade potencialmente poluidora sem licença ambiental”.

As denúncias contra a usina são praticamente idênticas às que pesam contra a maioria de suas concorrentes: cultivo de cana em grandes áreas sem o devido licenciamento ambiental e avanço das lavouras sobre topos e encostas de morros, as chamadas áreas de preservação permanente (APPs).

É justamente a questão ambiental que explica o interesse da Trapiche pela área do estuário. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), tendo desmatado toda a cobertura vegetal disponível, a empresa pretende apontar o manguezal como área de reserva legal – parcela da propriedade que deve ser obrigatoriamente mantida inexplorada, de acordo com a lei ambiental.

Para piorar o quadro, em fins de 2009 a usina voltou a ficar na mira do Ibama, após denúncias de pescadores que atuam na região do estuário do rio Sirinhaém, a respeito do derramamento de vinhoto na rede fluvial. Calcula-se que, para cada litro de etanol produzido, 12 litros do poluente sejam gerados, algo aliás a ser levado em conta nas discussões sobre o status de combustível limpo atribuído ao álcool. A punição foi novamente milionária – a multa aplicada à empresa alcançou o valor de R$ 1 milhão.

A usina nega ter cometido crime. “A Trapiche entende que foi indevidamente autuada pelo Ibama. A poluição objeto do auto de infração não corresponde à realidade, nem foi evidenciada, muito menos a mortandade de peixes e a destruição da biodiversidade alegados pelo referido órgão. A usina apresentou defesa administrativa e espera que o auto seja julgado improcedente”, declara Cristiana Menezes.

Licença para poluir

A constatação é triste, mas toda essa folha corrida difere pouco daquela apresentada pela esmagadora maioria das usinas da zona da mata nordestina. Assim, o grande diferencial da empresa, nesse caso, não é a quantidade ou a qualidade dos crimes ambientais que pratica. Eles são muito mais regra do que exceção. Uma passagem rápida pelas rodovias da região basta para confirmá-lo. O que distingue a Trapiche das outras canavieiras é o fato de que tudo isso vem ocorrendo em terras públicas.

Por definição, áreas de estuário constituem as chamadas “terras de marinha”. Isso quer dizer que o direito de propriedade é da União, ficando à usina – e aos moradores – resguardado apenas o direito de posse. No caso da Trapiche, essa garantia é feita por meio de aforamento, uma espécie de aluguel da área, em que o locatário – aqui chamado de foreiro – é a usina, e o locador, a União.

De acordo com levantamentos feitos pela CPT e pela organização não governamental Terra de Direitos, as ilhas de Sirinhaém foram “aforadas a particulares em 14 de novembro de 1898, em nome da Companhia Agrícola Mercantil de Pernambuco. Após sucessivas transferências, que, por sinal, não observaram os dispositivos legais, a Usina Trapiche apresenta-se como a última sucessora do referido aforamento”.

Pela sucessão de crimes ambientais cometidos pela empresa e pelas ameaças a que ela tem submetido as famílias que se recusam a abandonar as ilhas, o aforamento é alvo constante de críticas por parte de movimentos sociais. Em 2006, esses questionamentos, engrossados pela palavra do próprio Ibama, chegaram à Superintendência do Patrimônio da União em Pernambuco (SPU/PE), o que levou ao cancelamento do aforamento. “A lei determina que se pode rever o uso dessa área, quando existe interesse público”, justifica Paulo Ferrari, titular da SPU/PE.

A decisão chegou a ser comemorada pelas organizações sociais, porque abriria caminho para uma ocupação mais tranquila da área pelas comunidades extrativistas tradicionais. No entanto, após recurso dos advogados da usina, a Secretaria do Patrimônio da União em Brasília, instância suprema nesse caso, vinculada ao Ministério do Planejamento, decidiu em favor da Trapiche e manteve o aforamento.

As entidades de defesa das comunidades tradicionais nem mesmo cogitaram entender os aspectos técnicos da decisão. Para essas lideranças, a manobra foi política, emulando os velhos tempos dos canaviais pernambucanos e seus coronéis. “Houve algum tipo de pressão direta sobre a SPU. O que surpreendeu foi que não havia elementos para reverter a decisão estadual. É esdrúxulo o fato de o governo federal permitir a ocupação de terra pública por uma empresa que está poluindo a área”, critica Daniel Viegas, advogado da CPT.

Nova perspectiva

Nem todas as esperanças de Maria das Dores e Nazareth, porém, estão esgotadas. Em paralelo à complexa questão do aforamento, está sendo estudada a criação de uma reserva extrativista (Resex) no local. O quadro das ilhas do Sirinhaém responde precisamente aos critérios do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) para estabelecimento de uma unidade desse tipo. Trata-se de uma área de explícito valor ambiental e importante para a manutenção da biodiversidade, condições que se somam à presença de comunidades tradicionais que dependem diretamente da pesca e da coleta de siris e caranguejos para sua sobrevivência. “Graças à legislação ambiental, foi encontrada uma saída para realizar a inclusão social e a proteção do meio ambiente”, avalia o frei Sinesio Araujo.

Simplificando, a criação da Resex não só possibilitará a manutenção pacífica de Nazareth e Das Dores na área como permitirá que as famílias que acabaram se mudando para a cidade voltem a se dedicar à atividade extrativista e pesqueira tradicional. Além disso, há a perspectiva de que o conflito fundiário com a usina cesse, uma vez que a titularidade da área passará ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que, por sua vez, estabelecerá um contrato de uso e ocupação com os moradores.

O processo de criação da Resex foi iniciado em 2006. Em 2009, passou por consulta pública e encontra-se hoje no estágio obrigatório de diálogo com outros órgãos oficiais, como o Ministério das Minas e Energia, o governo do estado, a marinha, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre outros.

Atualmente, o maior empecilho à criação da Resex é a definição da zona de amortecimento, área do entorno da unidade que apresentará regras diferenciadas para licenciamento de obras que tenham potencial de impacto ambiental, em virtude da proximidade com a unidade de conservação. “O governo do estado tem uma preocupação muito grande em relação a essa área. A Resex está inserida em um eixo de desenvolvimento. A zona de amortecimento, porém, não limita a implantação de nenhum tipo de empreendimento, apenas pode exigir medidas compensatórias ou mitigadoras de impacto”, explica Érika Fernandes, coordenadora geral de gestão socioambiental do ICMBio.

A maior das preocupações governamentais é que essa zona venha a incluir uma área destinada à expansão do porto de Suape. Recentemente, instalou-se uma forte polêmica entre, de um lado, militantes ambientais e pescadores, e, de outro, o governo estadual. O tema foi justamente um projeto de lei que autoriza desmatamento recorde numa área costeira de Pernambuco para obras do porto. Se levado a cabo, o projeto suprimirá 691 hectares de mata nativa, dos quais 508 são área de mangue.

Outra fonte de críticas à iniciativa é a Usina Trapiche. “Não acreditamos que a criação de uma Resex seja a solução correta para a área em questão, sob nenhum ponto de vista, seja social, seja ambiental. Convém ressaltar que o bom estado de conservação do manguezal é reconhecido pelos órgãos ambientais, por organizações de preservação do meio ambiente e estudiosos do assunto, assim como pela sociedade em geral”, declara Cristiana Menezes, em nome da empresa.

Outros atores têm uma visão distinta sobre a rejeição da Trapiche à ideia de criação da Resex. As entidades de defesa dos extrativistas entendem que o receio da usina se deve ao fato de que a instalação da unidade de conservação trará ainda mais fiscalização ambiental para o estuário. “Derramar vinhoto nos rios é crime com ou sem reserva. Mas a instituição da Resex pode ser um complicador para quem não deseja que mais um órgão se encarregue da fiscalização”, corrobora Érika.

É por esse rigor no cuidado com os mangues que anseiam Nazareth e Das Dores. Por mais que o Estado chegue atrasado, ou muitas vezes abuse de sua autoridade no trato com as irmãs, ele é o único ente que pode garantir uma vida mais digna a elas e a suas famílias. Talvez por isso, de seu barraco de lona, Das Dores ouça religiosamente o programa “Café com o Presidente” num radinho de pilha, única fonte de energia disponível naquelas paragens. Para lembrar que o mundo externo às ilhas é mais do que brutalidade policial ou negligência ambiental, e, quem sabe um dia, ouvir ali mesmo o decreto de criação da Resex que pacificará de uma vez por todas o estuário do Sirinhaém.

Revista Problemas Brasileiros

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