quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Poluidores dos EUA poderão comprar créditos de carbono da Amazônia — isso é ético?


Medida adotada pela Califórnia poderia destinar US$ 1 bilhão até 2030 para proteger florestas tropicais

MARON GREENLEAF

Área da Amazônia perto de Manaus (AM) (Foto: Neil Palmer/CIAT/Wikimedia Commons)


Os incêndios na Amazônia brasileira enraiveceram o mundo. Mas o que pessoas que moram longe da maior floresta tropical poder fazer para salvá-la?

A Califórnia acha que tem uma resposta.

No dia 19 de setembro, o Conselho de Recursos Aéreos da Califórnia (CARB) apoiou a Norma das Florestas Tropicais, que lança as bases para que geradoras de energia elétrica, refinarias e outros poluidores no estado norte-americano “compensem” suas emissões de gases de efeito estufa ao pagar governos de regiões com florestas tropicais para que não cortem árvores.

Todo mundo se beneficia da existência de florestas tropicais porque elas absorvem quantias enormes de dióxido de carbono e liberam quantias enormes quando são destruídas. Segundo a teoria, compensa pagar para protegê-las.


A norma é parte da ambiciosa política climática da Califórnia, que inclui metas de redução de emissões agressivas e limita o número de “créditos” que poluidores podem comprar.

Governos tropicais ao redor do mundo agora podem tentar fazer seus créditos serem aceitos na Califórnia. Isso poderia destinar US$ 1 bilhão até 2030 para proteger florestas tropicais — cem vezes mais o que a União Europeia recentemente ofereceu ao Brasil para ajudar a combater os incêndios na Amazônia.

Mas, segundo as polêmicas audiências no dia 19 mostraram, a Norma das Florestas Tropicais é controversa.

Alguns povos indígenas, formuladores de políticas públicas, ambientalistas e pesquisadores enxergam a norma como uma nova forma de apoiar financeiramente aqueles que lutam para proteger as florestas tropicais. Outros dizem que não só ela não vai barrar o desmatamento, como também pode prejudicar comunidades vulneráveis.


O “mercado de carbono” da Califórnia
Formuladores de políticas públicas têm buscado modos de como a Califórnia pode reduzir o desmatamento de florestas tropicais ao menos desde que comecei minha pesquisa jurídica e antropológica em créditos florestais no fim dos anos 2000.

O estado abriga um dos mercados de carbono mais importantes do mundo, também conhecido como “limitação e comércio” (cap and trade). Dez estados dos EUA, a União Europeia, o Quebec e algumas cidades chinesas usam programas do tipo para limitar a poluição por gases de efeito estufa.

Nestes programas, reguladores limitam a quantidade de gases emitidos todo ano e liberam “permissões” para poluir. Poluidores também podem “trocar” essas permissões entre eles.

A premissa, de uma perspectiva global de mudanças climáticas, é que não importa onde os gases de efeito estufa são emitidos: o impacto deles no clima é o mesmo.

Como alternativa parcial à redução das emissões, poluidores na Califórnia já podem comprar “créditos” limitados de entidades aprovadas. Por exemplo, para cada tonelada métrica de dióxido de carbono mantida na tribo Yurok, nas florestas do norte da Califórnia, a tribo pode vender um crédito para um poluidor do estado. Em troca, os poluidores — como a refinaria Chevron em Richmond — podem continuar liberando seus poluentes responsáveis pelas mudanças climáticas.


Em alguns anos, a mesma refinaria poderá potencialmente pagar o estado brasileiro do Acre para proteger a floresta.

Preocupações éticas
A lógica econômica de créditos de carbono internacionais — pela qual poluidores podem pagar a os outros para reduzirem as emissões — é boa.

Mas, do ponto de vista ético, a Norma das Florestas Tropicais da Califórnia pode estar em terreno movediço.

Como indulgências católicas que absolvem os pecadores que pagam à Igreja, créditos de carbono dão anistia a empresas que deveriam mudar seus modos de operar.

Isso talvez compre algum tempo para a Terra enquanto tecnologias renováveis e de baixa emissão de carbono são desenvolvidas. Mas os créditos de carbono também retardam a transição necessária de fontes energéticas de combustíveis fósseis para outras alternativas.

Grupos de justiça ambiental na Califórnia também criticaram os créditos insistindo que o local onde a poluição ocorre importa, sim. Gases de efeito estufa de plantas de energia e refinarias são emitidos com outras partículas prejudiciais e outros poluentes perigosos, que podem piorar a asma e causar outros problemas de saúde.

Pesquisas mostram que negros e pardos em geral vivem e trabalham em áreas com a pior qualidade do ar, tanto na Califórnia quanto no restante dos Estados Unidos.


Ao proteger as florestas tropicais em vez de reduzir a poluição na Califórnia, a Norma das Florestas Tropicais pode exacerbar injustiças existentes no estado.

Consequências não intencionais
Créditos de carbono já são permitidos no mercado da Califórnia. Então será que importa se poluidores comprem-nos de florestas no norte do estado ou nos trópicos?

Eticamente falando, sim. Isso porque os créditos nas florestas tropicais podem prejudicar as pessoas que moram lá.

Pesquisadores descobriram que em um programa queniano, por exemplo, comunidades mais pobres receberam menos benefícios da venda de créditos de carbono do que fazendeiros mais ricos. Em Zanzibar, um programa de créditos minou normas locais antigas de proteção florestal.

Outros programas de florestas de carbono, como um no Equador, não obtiveram permissão significativa ou participação de povos locais. Como esses programas podem exacerbar desigualdades existentes, comunidades indígenas e outras comunidades marginalizadas são particularmente vulneráveis a tais perigos.

A Norma das Florestas Tropicais foi desenhada para evitar isso. Ele requer que os créditos venham de programas governamentais de prevenção de desmatamento que cumpram suas fortes regras de proteção social e ambiental em todas as jurisdições — em vez de empresas privadas ou estados opressivos.

Apoiadores esperam que governos em florestas tropicais vão lutar para cumprir esses padrões para acessarem os fundos.


Mesmo assim, governos mudam. Novos líderes podem eliminar ou reduzir as proteções para florestas e comunidades de modos que violam a norma californiana. A milhares de quilômetros de distância, pode ser difícil saber se isso acontecer.

Críticos da medida também se preocupam com o fato de que não é possível saber com certeza se uma floresta seria desmatada sem a ajuda financeira — uma preocupação também levantada por outros locais que têm tais programas.

As grandes quantias da Califórnia podem incentivar governos a proteger florestas ameaçadas. Mas também pode deixá-los tentados a dizer que florestas já protegidas estão ameaçadas.

Mudando o clima, mudando a ética
De um ponto de vista de ética climática, esses detalhes importam.

Mudanças climáticas prejudicam vidas humanas e não humanas. Se créditos de redução de emissões não são reais, então eles contribuem para esse perigo.

Mesmo assim, a Califórnia também adotou uma postura ética ao apoiar a Norma das Florestas Tropicais. Inatividade em relação às mudanças climáticas endossa o status quo: a destruição da Amazônia e de outras florestas tropicais que são essenciais para um mundo habitável.

Com a janela para prevenir os piores efeitos das mudanças climáticas se fechando rapidamente, o escritor e ativista climático Bill McKibben recentemente comparou esse momento aos últimos minutos de um jogo de futebol.


“Se você está longe o suficiente, você lança com cuidado”, ele escreveu, “fazendo jogadas mais arriscadas na esperança de uma vitória não garantida”.

* Maron Greenleaf é bolsista de pós-doutorado e professora no Dartmouth College. Este artigo foi escrito em inglês e originalmente publicado no site The Conversation.
Revista Galileu

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