terça-feira, 17 de setembro de 2013

Israel - As contradições do Estado "judeu democrático

Lei prevê pena de três anos de prisão, sem direito a julgamento, a todos os imigrantes que entrarem ilegalmente em Israel, sem fazer distinção entre imigrantes ilegais e refugiados. Está cada vez mais claro que o modelo sionista prevê um Estado excludente e colonizador
Luciana Garcia de Oliveira *




"Vivendo sob as trevas do holocausto e esperando ser perdoados por tudo o que fazem em nome do que eles sofreram parece-me ser abusivo. Eles não aprenderam nada com o sofrimento dos seus pais e avós."
José Saramago

Pogroms » Ataque maciço e violento a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de violência espontânea ou premeditada contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias étnicas da Europa, porém é aplicável a casos que envolvem países e povos do mundo inteiro.


Sob o prisma do "problema judeu" emergido desde os pogroms e o antijudaísmo na Europa, há que se notar a terrível semelhança no tratamento aos palestinos nos territórios ocupados e, mais atualmente, aos imigrantes africanos em Israel, Estado criado em 1948, oficialmente como refúgio para os judeus, vítimas das perseguições na Europa e na União Soviética e para os sobreviventes do holocausto nazista.

Isso porque, no início de 2012, em mais uma decisão arbitrária do Parlamento israelense, foi aprovada uma lei, denominada Lei contra infiltração, que prevê pena de três anos de prisão, sem direito a julgamento, a todos os imigrantes que entrarem ilegalmente no país, sem fazer distinção entre imigrantes ilegais e refugiados. Cabe ressaltar, no entanto, que o Estado de Israel é membro signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, e por isso teria o dever de conceder asilo político a esses imigrantes, uma vez que o status de refugiado é conferido a todo indivíduo que corre risco de vida ao regressar ao seu país de origem, como é justamente o caso dos imigrantes advindos de países como a Eritreia e o Sudão, com grande incidência de guerras civis, massacres e crimes de genocídio.

Esse dispositivo legal visa especialmente os imigrantes africanos, sobretudo os 157 africanos já reconhecidos pelo Ministério do Interior como refugiados, que entraram no país por terra através da fronteira Israel-Egito, pelo deserto do Sinai. Assim, para conter esse tipo de "infiltração", as autoridades israelenses começaram a construir, desde janeiro, uma cerca ao longo da fronteira com o Egito. Além dessa medida, está prevista a construção de um grande campo de detenção, localizado no sul do país, denominado Saharonim, com capacidade para 10 mil prisioneiros e que deverá abrigar inclusive crianças que entrarem de maneira irregular no país.

Israel é membro signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, e por isso tem o dever de conceder asilo político a imigrantes
A vasta obra de Hannah Arendt reserva um espaço para o retrato fiel da perseguição que os judeus sofreram na Segunda Guerra Mundial, com destaque para a questão dos refugiados, que, segundo ela, são todos aqueles impedidos de voltar às suas casas não pelo que fizeram, mas pelo que são


É estimado, no entanto, que esses imigrantes representem cerca de 10% da população local de Tel Aviv, cujo total populacional gira em torno de 400 mil habitantes. O desagrado da sociedade israelense com relação aos imigrantes do Sudão e da Eritreia tem sido demonstrado muito além das medidas judiciais. Em meados de abril foi registrada a ocorrência de que quatro casas e uma creche de refugiados africanos em Tel Aviv haviam sido alvos de bombas incendiárias, em um ataque atribuído a um grupo de extrema direita, "Comitê contra infiltrados", cuja bandeira é a defesa da qualidade de vida dos moradores e contra a desvalorização dos imóveis quando há incidência da presença de refugiados nos espaços públicos como ruas, parques e praças de determinados bairros da capital de Israel.

Depois, em maio, centenas de manifestantes israelenses atacaram covardemente alguns imigrantes africanos e depredaram muitas lojas e veículos, após um comício organizado por moradores de Tel Aviv contrários à presença dos africanos no país. O evento político contou inclusive com a presença de alguns deputados do partido Likud, de direita, e de outros partidos de coalizão do governo. Segundo a jornalista Guila Flint, foi durante esse evento que a deputada Miri Regev chamou os imigrantes africanos de "câncer em nosso corpo".

Ações violentas
Todas as ações violentas contra esses indivíduos foram atribuídas ao governo de Israel, de acordo com as palavras de Sigal Rozen, diretora da ONG Moked, instituição de defesa dos direitos humanos dos imigrantes africanos. Segundo a ativista, citada no artigo "Imigrantes africanos são perseguidos por multidão e agredidos após comício em Tel Aviv", "os líderes do governo, que chamam os refugiados de 'infiltradores de trabalho' e incitam os moradores contra eles, são os responsáveis pela violência". De acordo com as palavras de Rozen, o primeiro ministro Benjamin Netanyahu teria alegado publicamente que a "inundação" de imigrantes africanos em Israel representa uma "ameaça à segurança e ao caráter judaico e democrático de Israel".

Essas ações violentas geralmente correspondem à opinião de grande parcela dos moradores da cidade, como a de Benny Shlomo, que, na matéria intitulada "Presença crescente de imigrantes africanos gera polêmica em Israel", afirmou que todos os imigrantes em situação irregular, sem exceção, deveriam ser "imediatamente expulsos", em consequência do suposto aumento do índice de criminalidade nos bairros onde há predomínio da presença desses imigrantes. Nesse sentido, segundo o departamento de pesquisa do Parlamento israelense, foi apontado que o índice médio de criminalidade entre o total de imigrantes em situação irregular é de 2,04%, enquanto o índice na população geral é de 4,99%, segundo a mesma matéria.

É demonstrado, por sua vez, que o aumento da violência em Israel está diretamente relacionado ao aumento do número de refugiados no país nos últimos anos. Sobre isso, o comandante de polícia, Yohanan Danino, defende que para conter o aumento da criminalidade entre os imigrantes africanos (ou pelo menos evitar que a situação piore) é necessário que o Estado permita que eles trabalhem para que possam se sustentar. Porém, o governo não lhes concede empregos formais.
O genocídio aos judeus na Europa comoveu a opinião pública internacional. No entanto, a tragédia, o exílio e o totalitarismo do passado continuam bastante presentes na história atual de Israel, quando se analisa o tratamento dispensado aos não judeus daquele País

Irmãos africanos e palestinos
A situação vivida pelos imigrantes africanos é muito semelhante à de milhares de palestinos: em ambos os casos não é concedido status legal dentro de Israel. O que torna tanto os palestinos como os africanos seres invisíveis e à mercê de quem quer explorá-los. A única diferença, apontada no artigo "Today Israel moved one step closer to nazi Germany circa 1938", é que os africanos, particularmente, encontram-se dentro do corpo político de Israel, enquanto os palestinos já foram afastados e excluídos da política sionista.

Entre as muitas causas alegadas para a discriminação dos palestinos e dos demais estrangeiros (não judeus) em Israel atribui-se a "ameaça demográfica", um destaque especial, uma vez que a defesa do caráter judaico-sionista de Israel é consenso entre todos os sionistas. Diante desse modelo de "Estado judeu democrático", é sumariamente defendido que algumas medidas drásticas devem ser tomadas contra os imigrantes, sobretudo os da África, e os palestinos, nativos da região. Do contrário, haverá uma redução considerável da população judaica nas próximas décadas. Esse tipo de ameaça pôde ser comprovada, muito recentemente, em um programa de rádio em Israel, no qual o ministro do Interior, de maneira bastante alarmista, afirmou: "Eu quero que todos sejam capazes de andar pelas ruas sem medo ou receio... Os imigrantes estão prestes a dar à luz a centenas de milhares, e o sonho sionista está morrendo".

O desagrado da sociedade israelense com relação aos imigrantes do Sudão e da Eritreia tem sido demonstrado muito além das medidas judiciais

Durante a onda de violência física e verbal contra os refugiados africanos em Israel, muitos judeus etíopes sofreram com o racismo contra os negros. As manifestações racistas vêm desde o ano passado, quando houve uma grande incidência de atos de rua por parte da comunidade etíope, após algumas escolas se recusarem a matricular alunos etíopes e alguns condomínios proibirem o aluguel de apartamentos aos membros dessa comunidade.

Foi durante as perseguições aos africanos, naquele ano, que um advogado etíope teve a iniciativa de confeccionar algumas camisetas com os seguintes dizeres: "Cuidado, não sou infiltrado africano", com a estrela de Davi estampada em fundo amarelo. O que, por outro lado, desagradou muitos ativistas etíopes, sobretudo os integrantes do grupo Young Ethiopian Students (YES), os quais discordaram veementemente desse gesto, sob a alegação de que o slogan da camiseta passa a mensagem de que os judeus etíopes querem se diferenciar dos demais imigrantes africanos. O que, de certa forma, poderia legitimar todas as agressões cometidas.

"Os líderes do governo, que chamam os refugiados de 'infiltradores de trabalho' e incitam os moradores contra eles, são os responsáveis pela violência"

Passado pra que te quero: os terrores do holocausto

O genocídio cometido contra os judeus na Europa, representado por fotos e imagens das valas comuns nos campos de concentração e dos sobreviventes vagando em muitos países, após a Segunda Guerra Mundial, comoveu a opinião pública internacional. A emergência do "problema judeu" foi analisada por muitos jornalistas, escritores e acadêmicos no mundo todo, mas o retrato mais fiel da perseguição está presente na vasta obra de Hannah Arendt, sobretudo no artigo "We refugees". É nesse trabalho que Arendt destaca a definição de refugiado como sendo a daqueles que, como ela, foram impedidos de voltar a suas casas, não pelo que fizeram, mas justamente pelo que eram. Nesse relato, Arendt revela o sofrimento dos refugiados sob um ponto de vista bastante pessoal, quando publicamente clamou ao mundo:

"Nós perdemos nossas casas, o que significa a familiaridade da vida diária. Perdemos nossos empregos, o que significa a nossa confiança e utilidade no mundo. Nós perdemos a nossa língua, o que significa a espontaneidade, a simplicidade dos gestos, as expressões de sentimentos não afetados. Deixamos nossos familiares nos ghettos poloneses e os nossos melhores amigos foram mortos nos campos de concentração, o que significa a ruptura da nossa vida privada." A extensão do problema gerado pela grande quantidade de refugiados e a vontade de retornar a seus lares levou muitos a acreditar que, assim que Hitler fosse finalmente rendido e a guerra terminasse, todos poderiam voltar a suas casas e a sua rotina. À medida em que percebiam que a solução não seria tão simples, muitos refugiados tornaram-se "lutadores constantes", nas palavras de Arendt, que, no auge do desespero, costumavam "desejar a morte dos nossos amigos e parentes, pois, quando algum refugiado morre, ele está salvo de todos os seus problemas". Muito embora para a religião judaica o suicídio seja bastante condenável, o índice de suicídios entre os judeus em Berlim, Viena, Bucareste, Paris, Nova York, Los Angeles, Buenos Aires e Montevidéu era muito alto.

Quando os refugiados eram, enfim, salvos, sentiam-se humilhados e, quando eram ajudados, sentiam-se degradados. Assim, quando tinham forças, geralmente lutavam pelo retorno às suas próprias existências e pela incessante busca da definição de seus próprios destinos, de maneira individual, na esperança de serem independentes, comprar seus próprios alimentos, andar de metrô, sem nunca ouvirem que são pessoas indesejáveis.

Havia uma grande dificuldade na manutenção e na conservação de sua integridade, pois refugiados judeus tinham seus status social, político e jurídico muito confusos. Justamente por isso, muitos optaram pela mudança radical de identidade e foram obrigados, pelas circunstâncias, a aprender a conviver com toda essa confusão. Tudo isso na busca incansável de deixar o estigma de refugiados. Antes, havia a preocupação de deixar de ser judeu. Para isso, muitos aprenderam a língua inglesa, uma vez que falar em alemão era ameaçador, pois revelava sua identidade. Todo esforço para a assimilação era necessário, para que os judeus se vissem livres da condição de apátridas. Por isso, durante muito tempo, foi extremamente difícil os judeus convencerem os cidadãos acerca da sinceridade de suas transformações.

Hannah Arendt » Filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. Seu primeiro livro, As Origens do Totalitarismo(1951), consolida seu prestígio como uma das figuras maiores do pensamento político ocidental. Arendt identifica de modo polêmico o nazismo e o socialismo como ideologias totalitárias, que dependem da banalização do terror, da manipulação das massas, do acriticismo diante do poder.


Para conter o aumento da criminalidade entre os imigrantes africanos (ou pelo menos evitar que a situação piore) é necessário que o Estado permita que eles trabalhem para que possam se sustentar

De fato, todas as ações e todos os discursos discriminatórios e racistas são ainda mais assustadores quando advindos por parte daqueles que, como Hannah Arendt, já foram perseguidos no passado. E justamente essa passagem trágica do passado judaico fomentou muitas manifestações em Israel sob o slogans "We are all refugees" ("Somos todos refugiados"), numa clara alusão ao passado e ao reconhecimento sincero do sofrimento dos imigrantes africanos.

A contradição
Ao reafirmar-se como "Estado judeu democrático", Israel torna-se uma contradição. Por um lado, serviu desde antes de sua proclamação como "lar nacional para o povo judeu" (descrito na declaração Balfour); por outro lado, um grupo extremista endossado por muitos cidadãos israelenses exercem contra os palestinos, e mais recentemente contra os refugiados africanos, tudo a que seus familiares foram submetidos no passado. A brutalidade cometida contra os não judeus revela que Israel não pode ser considerado um Estado democrático. Ao contrário, é cada vez mais claro que o modelo sionista prevê um Estado excludente e colonizador, que não respeita os seus vizinhos, muito menos sua própria população - que, cada vez mais, é confundida com a imagem truculenta e negativa de seus governantes e de seu exército.
Para grande parte dos moradores de Tel Aviv, os imigrantes em situação irregular, sem exceção, deveriam ser "imediatamente expulsos". Para eles, a sua presença contribuiria para o aumento da criminalidade


Assim, de acordo com o adágio "Deus nos concedeu a memória, mas também o esquecimento", é possível concluir que, para esquecer, é preciso lembrar. O que torna a tragédia, o exílio e o totalitarismo do passado bastante presente na história de Israel.
* Luciana Garcia de Oliveira é acadêmica, integrante do Grupo de Trabalho sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, do Laboratório de Estudos sobre a Ásia da Universidade de São Paulo (LEA-USP).E-mail: luciana.garcia83@gmail.com

Referências 
ABUNIMAH, Ali. Israel will collapse unless africans and palestinians are expelled, fenced, says legal advocate. Disponível em:http://electronicintifada.net/blogs/ali-abunimah/israel-will-collapse-unless-africans-and-palestinians-are-expelled- fenced-says;
ARENDT, Hannah. We refugees. The Menorah Journal, 1943.
CANNING, Paul. "Pogrom" on africans refugees in Tel Aviv. Disponível em: http://www.care2.com/causes/pogrom-on-african- refugees-in-tel-aviv.html.
FLINT, Guila. Imigrantes africanos são perseguidos por multidão e agredidos após comício em Tel Aviv. Disponível em:http://www.bbc.co.uk/portuguese/ultimas_noticias/2012/05/120524_telavivimigrantes_gf.shtml.
______________. Presença crescente de imigrantes africanos gera polêmica em Israel. Disponível em:http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120522_refugiados_gf.shtml.
______________. Casas de refugiados africanos são alvos de bombas incendiárias em Israel. Disponível em:http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120427_israel_ataques_refugiados_gf.shtml.
_______________. Lei aprovada em Israel prevê prisão sem julgamento para imigrantes ilegais. Disponível em:http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120110_africanos_israel_gf.shtml;
Today, Israel moved one step closer to nazi germany circa 1938. Disponível em: http://networkedblogs.com/y1gL8
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