segunda-feira, 2 de setembro de 2019

PÃES DE AÇÚCAR: REFÚGIOS DE ALTA BIODIVERSIDADE



Ao visitar o arquipélago de Galápagos, no oceano Pacífico, em 1835, o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) maravilhou-se com a biodiversidade local. Foram essas ilhas que o inspiraram a escrever A origem das espécies, livro que é um marco da teoria da evolução e que aborda a variação, a adaptação e o papel da seleção natural sobre a vida na Terra.

Durante muitos anos, as ilhas oceânicas chamaram a atenção de diversos pesquisadores por se tratarem de um ótimo modelo para estudos biogeográficos e evolutivos (ver ‘A regra da ilha’, em CH 336). Nas últimas décadas, sabendo desse potencial de estudo de ambientes isolados, cientistas mudaram o foco para outro tipo de ilha, as terrestres, como as montanhas e os afloramentos rochosos. De modo semelhante às ilhas oceânicas, elas também diferem da matriz onde estão inseridas e apresentam baixo intercâmbio de espécies, tanto da fauna quanto da flora.

No Brasil, não é difícil chegar a essa conclusão. Basta lembrar do Pão de Açúcar, da Pedra da Gávea, dos morros Dois Irmãos e do Corcovado para perceber que o Rio de Janeiro é dominado por ilhas terrestres (ver ‘Origem do nome’). Essas formações rochosas são elementos naturais que se destacam entre as praias mais famosas, como Copacabana e Ipanema, e, seguramente, são responsáveis por todo o encantamento da ‘cidade maravilhosa’ e por ela receber o título, em 2012, de Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco): ‘Rio de Janeiro, paisagens cariocas entre a montanha e o mar’.

Origem do nome

O nome ‘Pão de Açúcar’ dado ao famoso conjunto de morros da cidade do Rio de Janeiro data da época da colonização portuguesa, em que blocos de açúcar eram transportados do Brasil para a Europa. Durante o processo de fabricação do açúcar, os cristais aglutinados eram retirados de fôrmas cônicas em blocos, que tomavam o formato delas (veja a foto). Esse processo guardava semelhança com a produção do pão, que também era assado em fôrmas, e, assim, por analogia, passou­se a chamar de ‘pão de açúcar’ o cristal obtido.


Posteriormente, o afloramento foi batizado de Pão de Açúcar por causa da semelhança de seu formato com o dos cones de cristais de açúcar. Mais adiante, diversos geólogos, geógrafos e biólogos estenderam o uso do termo – pães de açúcar – para se referirem aos afloramentos rochosos arredondados, de composição especialmente granítica e gnáissica, inseridos no domínio da floresta atlântica.

No ano em que o mundo se volta para os jogos olímpicos no Rio de Janeiro, os autores deste artigo gostariam de sugerir um olhar biológico para os pães de açúcar da mata atlântica. Suas plantas vencem barreiras de um ambiente extremo e sobrevivem perfeitamente adaptadas nesse geossistema tão antigo. Nos jogos olímpicos da natureza, a vegetação desses afloramentos rochosos, com certeza, já está no pódio.

(foto: Leandro Cardoso)


Ícone das olimpíadas

Sem dúvida, o afloramento mais famoso no Brasil é o Pão de Açúcar, ícone das Olimpíadas deste ano, cartão postal e protagonista de várias marcas. Um complexo de rochas inseridas em matriz florestal e urbana, e uma das atrações turísticas mais procuradas no país. Desde 1912, mais de 40 milhões de pessoas já visitaram o local, atraídas pela vista espetacular da baía de Guanabara, das praias e das outras montanhas que se destacam.

No meio científico, esses afloramentos rochosos que surgem abruptamente na paisagem, de composição principalmente granítica e gnáissica, são denominados inselbergs, termo de origem alemã (insel = ilha e berg = montanha). Quando apresentam formato arredondado e estão inseridos em uma matriz florestal, são chamados ‘pães de açúcar’. Essas formações datam de mais de 550 milhões de anos e estão distribuídas em escudos cristalinos por todos os continentes, sendo, nos trópicos, centros de diversidade biológica.

No Brasil, pães de açúcar ocorrem em grande concentração nas regiões Nordeste e Sudeste, especialmente em áreas de caatinga e floresta atlântica. Entretanto, com exceção do Rio de Janeiro, diversos aglomerados magnificentes desses afloramentos são desconhecidos por grande parte da população, como ocorre no nordeste de Minas Gerais e no norte do Espírito Santo. Em termos florísticos e ecológicos, os inselbergs têm relações comuns com outros tipos de afloramentos rochosos no país, como os campos rupestres e as cangas, que enfrentam condições ambientais muito adversas (ver ‘Cangas – ilhas de ferro estratégicas para a conservação’, em CH 295).

Aglomerado de pães de açúcar no nordeste de Minas Gerais. No primeiro plano, se destacam populações de bromélias (do gênero Encholirium) e cactos (do gênero Coleocephalocereus) crescendo diretamente sobre a rocha.
(foto: Luiza F. A. de Paula)

Apesar de essas formações serem frequentes no território brasileiro, estudos biológicos nos pães de açúcar são escassos. Os poucos inventários florísticos disponíveis na literatura apontam para elevada diversidade de espécies vegetais, muitas delas raras e endêmicas.

Nos últimos anos, várias espécies novas para a ciência vêm sendo descobertas nessas áreas, algumas restritas a poucos afloramentos. Esse é o caso de uma gramínea (Axonopus graniticola), um antúrio (Anthurium mucuri) e duas bromélias (Alcantarea longibracteta e A. simplicisticha) encontrados recentemente na divisa dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Outros exemplos são uma espécie da família das violetas (Sinningia bragae) e uma begônia (Begonia ibitiocensis), descritas para áreas menos conhecidas do norte do estado do Rio de Janeiro.


Pães de açúcar ocorrentes no norte do Espírito Santo, região conhecida como Pontões Capixabas.
(foto: Luiza F. A. de Paula)


Estratégias de sobrevivência

De forma geral, os inselbergs apresentam condições ambientais extremas, como altas temperaturas, fina (ou nenhuma) camada de solo e baixa retenção de água. Por essas razões, é comum termos a impressão de que as encostas desses afloramentos são simplesmente rochas nuas. Entretanto, um olhar mais detalhado revela uma diversidade a que poucos estão familiarizados.

Várias espécies de cianobactérias – parte dos primeiros grupos de organismos que colonizaram os ecossistemas terrestres há mais de 400 milhões de anos – formam crostas em toda a extensão da superfície rochosa, conferindo a coloração acinzentada que visualizamos, por exemplo, no Pão de Açúcar e na Pedra da Gávea. Portanto, não existem rochas realmente nuas, mas superfícies cobertas por um manto de micro-organismos capazes de suportar temperaturas que atingem mais de 60°C!

Plantas com diferentes adaptações conseguem crescer sobre os
pães de açúcar, como as bromélias, cactos, palmeiras e
canelas-de-ema, formando verdadeiros tapetes sobre a rocha.
As bromélias são as que mais se destacam, crescendo geralmente
na ausência de solo, em encostas muito íngremes, como a espécie
destacada na foto de baixo, pertencente ao gênero Encholirium.
Os inselbergs são considerados um dos centros de diversidade da
família Bromeliaceae. (fotos: Luísa O. Azevedo)

Os seres vivos capazes de sobreviver nesses locais apresentam diferentes tipos de adaptações. É notável a presença de plantas capazes de se aderir diretamente à rocha, por meio de raízes especializadas, formando extensas populações que se assemelham a tapetes. No Brasil, principalmente na região Sudeste, bromélias, orquídeas e cactos compõem essa ‘malha’ em encostas muito íngremes, desafiando a lei da gravidade.

Diversas também são as estratégias adotadas por esses grupos de plantas para armazenar água. Bromélias pertencentes ao gênero Encholirium e orquídeas do gênero Epidendrum, por exemplo, acumulam água nos seus tecidos vegetais, apresentando folhas suculentas. Já outras bromeliáceas, como Alcantarea e Vriesea, conseguem estocar água como tanques por possuírem uma arquitetura foliar em formato de roseta, o que mantém a umidade das plantas e acaba atraindo uma fauna variada. É importante salientar que a água acumulada nos ‘tanques’ das bromélias não são redutos de larvas do mosquito transmissor da dengue, e, portanto, não devem ser vistas como uma ameaça à população.

Os cactos, por sua vez, não só acumulam água, como apresentam espinhos (folhas modificadas) e pilosidades (revestimentos de finos pelos), especialmente em suas bases, evitando o superaquecimento do contato direto com a rocha, o que pode ser visto em espécies pertencentes ao gênero Coleocephalocereus.

Espécies de cactos, como Coleocaphalocereus buxbaumianus, possuem pilosidades em suas bases para evitar as altas temperaturas da rocha exposta. (foto: Luiza F. A. de Paula)

Outra estratégia espetacular de algumas plantas formadoras de ‘tapetes’ é a tolerância à dessecação (secura extrema). Durante a estação seca, algumas espécies entram em um estado desidratado, como se estivessem mortas. Suas folhas tornam-se enegrecidas e enroladas, chegando a perder mais de 90% de água. Após as chuvas, elas se reidratam, ficando verdes novamente, sem qualquer prejuízo estrutural ou fisiológico. Por essa característica única são chamadas pelos botânicos de ‘plantas de ressurreição’.


A tolerância à dessecação é uma estratégia desenvolvida
por diversas espécies que habitam os pães de açúcar. Em
períodos de seca, elas perdem água e suas folhas ficam
com aspecto ressecado, mas sem perder a viabilidade, como
é possível verificar acima, na população de Barbacenia
tomentosa, da família das velloziáceas (popularmente
conhecidas como canelas-de-ema). Após as chuvas, elas
conseguem se hidratar novamente, e retomam seu vigor
(abaixo). Por esse motivo, as plantas com essa estratégia
são conhecidas como ‘plantas de ressurreição’.
(foto: Luiza F. A. de Paula)

Muitas espécies conseguem sobreviver a esses ciclos, destacando-se as samambaias e licófitas dos gêneros Cheilanthes, Doryopteris e Selaginella. Entre as plantas com flores, as ornamentais canelas-de-ema (pertencentes aos gêneros Barbacenia e Vellozia, da família Velloziaceae) são as que, sem dúvida, mais chamam a atenção. Alguns exemplares de diferentes espécies de Velloziaatingem idades superiores a 500 anos, mostrando a eficácia dessa estratégia para sua sobrevivência.

Diante do aquecimento global, pesquisas recentes vêm dando foco aos genes dessas ‘plantas de ressureição’ envolvidos na tolerância à dessecação. Elas são usadas como modelo para melhor entender esse mecanismo, visando, posteriormente, a sua aplicação em plantas cultivadas.


Por que preservar?

O que poucos sabem é que, quando os portugueses chegaram ao Brasil, a primeira porção de terra avistada foi um inselberg, como relatou Pero Vaz de Caminha na sua famosa carta enviada ao rei de Portugal: “Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz”.

Haviam chegado a uma região exuberante da mata atlântica, que se estendia por aproximadamente 3.300 km ao longo da costa brasileira, e que à época era habitada por numerosas tribos indígenas. Tanto a floresta quanto os primeiros habitantes sucumbiram quase que inteiramente diante dessa paulatina ocupação do litoral brasileiro. Foram os ciclos do ouro, da cana e do café, além da exploração madeireira, os principais responsáveis pela destruição de uma das mais ricas formações vegetais do planeta. Restam somente 11% da cobertura vegetal original, representada por fragmentos pequenos e cada vez mais empobrecidos biologicamente.

Nesse contexto, os inselbergs se destacam por servirem de refúgio para fragmentos florestais praticamente intactos e pouco acessíveis ao ser humano, e por apresentarem plantas altamente especializadas que só ocorrem sobre a rocha exposta. O resultado são ilhas terrestres detentoras de alta diversidade biológica.

Devido ao seu isolamento, os pães de açúcar são considerados ilhas terrestres, abrigando espécies altamente especializadas e servindo de refúgio para fragmentos florestais praticamente intocados. (foto: Leandro Cardoso)

No entanto, nosso panorama atual não é animador. Em diversas regiões do Brasil, esses aforamentos, por não serem considerados áreas prioritárias para conservação, sofrem sérias ameaças. A coleta ilegal de plantas ornamentais, o fogo, as trilhas de turismo e a invasão de espécies exóticas (não originárias desses locais) têm contribuído para a destruição da vegetação natural desses ambientes.

A retirada da cobertura vegetal que ocorre sobre a rocha favorece o deslizamento de terra e enchentes nas áreas vizinhas, o que pôde ser observado em eventos recentes, nos últimos anos, no estado do Rio de Janeiro. O fator complicador é que a regeneração da flora dos inselbergs é muito lenta e ela provavelmente nunca poderá ser recuperada da mesma maneira.

Outro agravante é a crescente exploração do granito. Em diversos locais, o mineral passou a ser usado no lugar da madeira em bancadas, paredes, pisos, entre outros utensílios. Em estados como o Espirito Santo, o ciclo destrutivo de supressão das florestas capixabas foi substituído pela destruição de suas rochas, alimentando um comércio desenfreado e nada sustentável.


Mineradora de granito no estado do Espírito Santo. Grandes blocos são retirados diariamente, levando à extinção diversos pães de açúcar da região. (foto: Luiza F. A. de Paula)

Apesar de óbvio, o importante papel das plantas no nosso dia a dia tem sido negligenciado. Elas são fontes de alimentos, combustíveis, fibras, matérias-primas para a indústria, medicamentos, além de tornarem nossa atmosfera respirável – motivos que bastariam para dedicar mais investimentos e atenção para estudá-las e compreendê-las melhor. Um país como o Brasil, que abriga a maior diversidade de plantas do planeta, deveria ser capaz de preservar minimamente suas espécies.


Sugestões para leitura

DE PAULA, L.F.A.; FORZZA, R.C.; NERI, A.V.; BUENO, M.L.; POREMBSKI, S. Sugar Loaf land in south-eastern Brazil: a centre of diversity for mat-forming bromeliads on inselbergs. Botanical Journal of the Linnean Society, v.181, p.459-476, 2016.

DE PAULA, L.F.A.; VIANA, P.L; MOTA, N.; AUGSTEN, M.; LEITE, F. E STEHMANN, J.R. Plantas Saxícolas em Inselberg no Vale do Mucuri. In: Rapid Color Guides. Chicago: The Field Museum, 2013.

DE PAULA, L.F.A.; FORZZA, R.C.; NERI, A.V.; BUENO, M.L.; POREMBSKI, S. Sugar Loaf land in south-eastern Brazil: a centre of diversity for mat-forming bromeliads on inselbergs. Botanical Journal of the Linnean Society, 2016.

MAUAD, L.P.; BUTURI, F.O.S.; SOUZA, T.P.; NASCIMENTO, M.T. & BRAGA, J.M.A. New distribution record and implications for conservation of the endangered Wunderlichia azulensis Maguire & gm Barroso (asteraceae: Wunderlichieae). Check List, v. 10, p. 706, 2014.

POREMBSKI, S. E BARTHLOTT, W. (org.). Inselbergs – Biotic diversity of isolated rock outcrops in tropical and temperate regions. In: Ecological studies, v. 146. Berlim:Springer-Verlag, 2000.


Luiza F. A. de Paula
Stefan Porembski
Instituto de Biociências, Botânica Especial e Geral
Universidade de Rostock (Alemanha)

Luísa O. Azevedo
João Renato Stehmann
Departamento de Botânica
Instituto de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Minas Gerais

Luana Paula Mauad
Rafaela Campostrini Forzza
Jardim Botânico do Rio de Janeiro

Revista Ciência Hoje

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