Em Al Kasar, desde o avanço do EIIL, cerca de 1 milhão de civis estão refugiados
A destruição de um Estado
e as ameaças às fronteiras na região
Edilson Adão Cândido da Silva*
O Oriente Médio atravessou o século XX como o mais importante e instável conjunto geopolítico do globo e adentrou o XXI na mesma condição. Ora de forma mais intensa, ora mais branda, a verdade é que a região não sai do noticiário. O assunto da vez é a crise síria e as reais possibilidades de desconstrução das fronteiras iraquianas.
As capitais Damasco e Bagdá foram sedes de dois dos mais importantes califados, após a morte do profeta Maomé desde o século VII. Do esplendor do passado ao caos do presente, Síria e Iraque são, inegavelmente, países centrais no contexto geopolítico da região. E vêm de lá, no momento, as maiores preocupações.
No caso do Iraque, a crise contemporânea está indissociavelmente ligada às trapalhadas do ex-presidente norte-americano George W. Bush (2001-2009) e seus falcões naquele país desde 2003. Até então, o Iraque vivia sob um governo tirano. Mas daí, destruir um Estado e substituí-lo pelo caos, vai uma longa distância.
Saddam Hussein era um déspota, mas não um terrorista. Ao contrário, enquanto viveu combateu o terrorismo e impediu sua entrada no Iraque. Era inimigo declarado de Bin Laden.
Em artigo publicado na edição de maio de 2013 em Carta na Escola, afirmo que o Iraque tornara-se o pior lugar do mundo para se viver. A suposta “Guerra ao Terror”, implícita na cartilha geopolítica da doutrina Bush, fez do antigo reino da Babilônia um abrigo de terroristas, das mais variadas partes do mundo.
Vejamos o que afirmou George W. Bush, em setembro de 2002, em um documento enviado ao Congresso americano: “Atualmente, os Estados Unidos gozam de uma posição de incomparável força militar e grande influência política e econômica. Coerentes com nossas tradições e nossos princípios, não usamos de força para pressionar em favor de vantagens unilaterais”.
Contudo, o que se viu foi exatamente o contrário. Os EUA usaram a força e atacaram o Iraque com o único propósito de tirar vantagens unilaterais. O argumento das tais armas de destruição em massa foi um engodo. Era improvável que o país as possuísse, pois estava à míngua diante dos embargos desde 1991: não havia a menor possibilidade técnica para se produzirem tais armas. Como se sabe, os estadunidenses atacaram o Iraque sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, já que a França antecipara seu veto a uma resolução para esse fim. Muitos analistas entendem ser esse episódio o maior golpe sofrido pela entidade desde sua criação, em 1945.
Contudo, os EUA não conseguiram levar adiante o projeto de transformar o Iraque em um país aliado das empresas petrolíferas do Ocidente. Em 2003, a Halliburton, uma das maiores prestadoras de serviços no setor do mundo e que fora presidida pelo vice de Bush, Dick Cheney, entre 1995 e 2000, ganhou generosos contratos para a reconstrução do Iraque. Mas não teve êxito.
O cenário atual
O Iraque tem um frágil governo constituído, mas que não é reconhecido por todos os grupos que habitam o país. O primeiro-ministro Nouri al-Maliki é aceito pela maioria xiita (perto de 55% da população), mas tem a objeção dos árabes e curdos-sunitas. Nos últimos tempos, Al-Maliki aproximou-se demais de Teerã para desconforto da Casa Branca, que agora cogita distanciar-se de seu ex-pupilo. A instabilidade no Iraque e, posteriormente, na Síria produziu o surgimento do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) que, unilateralmente, anunciou a criação do Estado Islâmico (EI), um Estado fundamentalista que se estenderia de Aleppo, na Síria, a Diyala, no Iraque. O líder desse pretenso novo califado do século XXI é Abu Bakr Baghdadi. Os métodos do grupo lembram em muito a ordem dos assassínios, seita ismaelita do século XI, cuja violência das ações não hesitava em executar friamente os inimigos após inalarem o haxixe, originando, inclusive, a palavra assassino. Ou, numa comparação mais recente, o Grupo Islâmico Armado (GIA) que produziu horrores no interior da Argélia nos anos 1990. O EIIL vem aterrorizando as comunidades do deserto iraquiano e sírio, próximos ao Vale do Eufrates, mas também em Mosul, ao norte, segunda maior cidade do Iraque. Aos olhos do Ocidente, trata-se de ameaça maior que Teerã. Para desconforto dos EUA, quem pode deter o EIIL são exatamente dois regimes hostis aos seus interesses: o de Bashar al-Assad e de Ali Khamenei. A temida conexão Damasco-Teerã, talvez seja agora uma necessidade.
Os fatos recentes na Síria e no Iraque têm origens diversas. Na Síria, a tensão que ora se verifica é fruto das manifestações que varreram o mundo árabe desde dezembro de 2010, enquanto o tenso caldeirão que se tornou o Iraque resulta da intervenção anglo-americana em 2003. Isso, claro, considerando um recorte histórico recente.
A instabilidade e a forte tensão que atualmente vigoram têm uma matriz sectária que, por meio do totalitarismo da era Saddam, estava sob controle. O Iraque era uma espécie de “ditadura plurinacional”, em que os sunitas detinham o poder e a maioria xiita e os curdos eram reprimidos. Os árabes sunitas nunca foram maioria no Iraque, mas sempre estiveram no poder. Hoje, o ódio milenar entre xiitas e sunitas explode em meio à insanidade passional que caracteriza as religiões, quando a não aceitação da outra verdade se sobrepõe. As notícias dão conta de que, desde o avanço do EIIL, mais de mil civis foram executados e algo próximo de 1 milhão tornaram-se refugiados. Mas a violência não começou aí: o extermínio mútuo vem desde a ocupação, quando o Iraque tornou-se um Estado acéfalo; foi nesse contexto, em 2003, que o diplomata brasileiro e representante da ONU, Sérgio Vieira de Melo, morreu em um dos inúmeros atentados que marcaram o país. O Iraque, a partir da ocupação, mergulhou no caos sectário e não se veem perspectivas de melhora a curto prazo.
No entanto, é possível que a ofensiva do EIIL não prossiga, pois, excetuando-se seus seguidores, a ojeriza ao grupo é consensual no mundo árabe e islâmico, e há uma convergência dos mais distintos interesses na região para pôr fim ao avanço do grupo. Contra essa incógnita extremista, Iraque, Irã, Síria, Estados Unidos, Arábia Saudita e, possivelmente, até a Rússia possam dar as mãos, mesmo que circunstancialmente. O EIIL, ao que se parece mais aterrorizador que a própria Al-Qaeda, com quem inclusive rompeu, conseguiria unir numa mesma frente históricos desafetos.
Independentemente do EIIL, a divisão étnico-religiosa do Iraque poderá, sim, num futuro médio, resultar em três Estados, embora os esforços no sentido contrário estejam sendo engendrados por Estados Unidos, Irã e Turquia. Essa possível fragmentação redundaria numa desvantagem inicial aos sunitas: o Iraque possui a terceira maior reserva mundial de petróleo, mas o hidrocarboneto concentra-se no sul xiita e no norte curdo, enquanto a região ocupada pelos sunitas é desprovida de grandes reservas. Esse é um dos fatores da reação extremista sunita.
País desconstruído
O Iraque atual é produto do rearranjamento territorial que a Grã-Bretanha impôs ao Oriente Médio, após a dissolução do Império Turco-Otomano no desfecho da 1ª Guerra Mundial há cem anos. Suas fronteiras preservavam as do antigo Império Babilônico, mas distinguiram-se do que fora no Império Otomano. O Vale do Eufrates não lhe pertencia; Mossul, ao norte, era área de litígio com os turcos e reivindicado pelos mesmos; as constantes desavenças com o Irã sobre o Chat el-Arab, ponto de encontro estuarino entre o Tigre e Eufrates junto à desembocadura do Golfo, são antigas.
A porção sudoeste sempre foi habitada por árabes nômades não muito afeitos a respeitar as fronteiras políticas, e sim suas próprias noções de “fronteira”. Daí a criação de uma zona neutra entre Iraque, Arábia Saudita e Kuwait, onde os beduínos e suas caravanas têm livre trânsito. Até 1920, o que é hoje o Iraque não existia cartograficamente: as três principais macrounidades do Iraque contemporâneo, Mossul, ao norte; Bagdá, ao centro; Basra, ao sul, uniram-se a partir do estabelecimento do mandato britânico. As duas monarquias consentidas que surgiram na ordem do pós-1ª Guerra Mundial, Assabah, no Kuwait, e Fayçal, Iraque, tencionavam constituir uma federação, projeto abortado por Londres. Anos mais tarde, em 1990, Saddam Hussein invadiria o pequeno país, alegando que, histórica e geograficamente, não se justificava a existência do Kuwait: ele seria parte do Iraque.
Em artigo publicado na edição de maio de 2013 em Carta na Escola, afirmo que o Iraque tornara-se o pior lugar do mundo para se viver. A suposta “Guerra ao Terror”, implícita na cartilha geopolítica da doutrina Bush, fez do antigo reino da Babilônia um abrigo de terroristas, das mais variadas partes do mundo.
Vejamos o que afirmou George W. Bush, em setembro de 2002, em um documento enviado ao Congresso americano: “Atualmente, os Estados Unidos gozam de uma posição de incomparável força militar e grande influência política e econômica. Coerentes com nossas tradições e nossos princípios, não usamos de força para pressionar em favor de vantagens unilaterais”.
Contudo, o que se viu foi exatamente o contrário. Os EUA usaram a força e atacaram o Iraque com o único propósito de tirar vantagens unilaterais. O argumento das tais armas de destruição em massa foi um engodo. Era improvável que o país as possuísse, pois estava à míngua diante dos embargos desde 1991: não havia a menor possibilidade técnica para se produzirem tais armas. Como se sabe, os estadunidenses atacaram o Iraque sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, já que a França antecipara seu veto a uma resolução para esse fim. Muitos analistas entendem ser esse episódio o maior golpe sofrido pela entidade desde sua criação, em 1945.
Contudo, os EUA não conseguiram levar adiante o projeto de transformar o Iraque em um país aliado das empresas petrolíferas do Ocidente. Em 2003, a Halliburton, uma das maiores prestadoras de serviços no setor do mundo e que fora presidida pelo vice de Bush, Dick Cheney, entre 1995 e 2000, ganhou generosos contratos para a reconstrução do Iraque. Mas não teve êxito.
O cenário atual
O Iraque tem um frágil governo constituído, mas que não é reconhecido por todos os grupos que habitam o país. O primeiro-ministro Nouri al-Maliki é aceito pela maioria xiita (perto de 55% da população), mas tem a objeção dos árabes e curdos-sunitas. Nos últimos tempos, Al-Maliki aproximou-se demais de Teerã para desconforto da Casa Branca, que agora cogita distanciar-se de seu ex-pupilo. A instabilidade no Iraque e, posteriormente, na Síria produziu o surgimento do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) que, unilateralmente, anunciou a criação do Estado Islâmico (EI), um Estado fundamentalista que se estenderia de Aleppo, na Síria, a Diyala, no Iraque. O líder desse pretenso novo califado do século XXI é Abu Bakr Baghdadi. Os métodos do grupo lembram em muito a ordem dos assassínios, seita ismaelita do século XI, cuja violência das ações não hesitava em executar friamente os inimigos após inalarem o haxixe, originando, inclusive, a palavra assassino. Ou, numa comparação mais recente, o Grupo Islâmico Armado (GIA) que produziu horrores no interior da Argélia nos anos 1990. O EIIL vem aterrorizando as comunidades do deserto iraquiano e sírio, próximos ao Vale do Eufrates, mas também em Mosul, ao norte, segunda maior cidade do Iraque. Aos olhos do Ocidente, trata-se de ameaça maior que Teerã. Para desconforto dos EUA, quem pode deter o EIIL são exatamente dois regimes hostis aos seus interesses: o de Bashar al-Assad e de Ali Khamenei. A temida conexão Damasco-Teerã, talvez seja agora uma necessidade.
Os fatos recentes na Síria e no Iraque têm origens diversas. Na Síria, a tensão que ora se verifica é fruto das manifestações que varreram o mundo árabe desde dezembro de 2010, enquanto o tenso caldeirão que se tornou o Iraque resulta da intervenção anglo-americana em 2003. Isso, claro, considerando um recorte histórico recente.
A instabilidade e a forte tensão que atualmente vigoram têm uma matriz sectária que, por meio do totalitarismo da era Saddam, estava sob controle. O Iraque era uma espécie de “ditadura plurinacional”, em que os sunitas detinham o poder e a maioria xiita e os curdos eram reprimidos. Os árabes sunitas nunca foram maioria no Iraque, mas sempre estiveram no poder. Hoje, o ódio milenar entre xiitas e sunitas explode em meio à insanidade passional que caracteriza as religiões, quando a não aceitação da outra verdade se sobrepõe. As notícias dão conta de que, desde o avanço do EIIL, mais de mil civis foram executados e algo próximo de 1 milhão tornaram-se refugiados. Mas a violência não começou aí: o extermínio mútuo vem desde a ocupação, quando o Iraque tornou-se um Estado acéfalo; foi nesse contexto, em 2003, que o diplomata brasileiro e representante da ONU, Sérgio Vieira de Melo, morreu em um dos inúmeros atentados que marcaram o país. O Iraque, a partir da ocupação, mergulhou no caos sectário e não se veem perspectivas de melhora a curto prazo.
No entanto, é possível que a ofensiva do EIIL não prossiga, pois, excetuando-se seus seguidores, a ojeriza ao grupo é consensual no mundo árabe e islâmico, e há uma convergência dos mais distintos interesses na região para pôr fim ao avanço do grupo. Contra essa incógnita extremista, Iraque, Irã, Síria, Estados Unidos, Arábia Saudita e, possivelmente, até a Rússia possam dar as mãos, mesmo que circunstancialmente. O EIIL, ao que se parece mais aterrorizador que a própria Al-Qaeda, com quem inclusive rompeu, conseguiria unir numa mesma frente históricos desafetos.
Independentemente do EIIL, a divisão étnico-religiosa do Iraque poderá, sim, num futuro médio, resultar em três Estados, embora os esforços no sentido contrário estejam sendo engendrados por Estados Unidos, Irã e Turquia. Essa possível fragmentação redundaria numa desvantagem inicial aos sunitas: o Iraque possui a terceira maior reserva mundial de petróleo, mas o hidrocarboneto concentra-se no sul xiita e no norte curdo, enquanto a região ocupada pelos sunitas é desprovida de grandes reservas. Esse é um dos fatores da reação extremista sunita.
País desconstruído
O Iraque atual é produto do rearranjamento territorial que a Grã-Bretanha impôs ao Oriente Médio, após a dissolução do Império Turco-Otomano no desfecho da 1ª Guerra Mundial há cem anos. Suas fronteiras preservavam as do antigo Império Babilônico, mas distinguiram-se do que fora no Império Otomano. O Vale do Eufrates não lhe pertencia; Mossul, ao norte, era área de litígio com os turcos e reivindicado pelos mesmos; as constantes desavenças com o Irã sobre o Chat el-Arab, ponto de encontro estuarino entre o Tigre e Eufrates junto à desembocadura do Golfo, são antigas.
A porção sudoeste sempre foi habitada por árabes nômades não muito afeitos a respeitar as fronteiras políticas, e sim suas próprias noções de “fronteira”. Daí a criação de uma zona neutra entre Iraque, Arábia Saudita e Kuwait, onde os beduínos e suas caravanas têm livre trânsito. Até 1920, o que é hoje o Iraque não existia cartograficamente: as três principais macrounidades do Iraque contemporâneo, Mossul, ao norte; Bagdá, ao centro; Basra, ao sul, uniram-se a partir do estabelecimento do mandato britânico. As duas monarquias consentidas que surgiram na ordem do pós-1ª Guerra Mundial, Assabah, no Kuwait, e Fayçal, Iraque, tencionavam constituir uma federação, projeto abortado por Londres. Anos mais tarde, em 1990, Saddam Hussein invadiria o pequeno país, alegando que, histórica e geograficamente, não se justificava a existência do Kuwait: ele seria parte do Iraque.
Revista Carta Escola
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