Cena do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos
Pelo controle da águaHá pelo menos 50 anos a gestão da água está na agenda internacional (e doméstica), mas avançamos pouco e o cenário está longe de ser auspicioso. O descaso é geral: está no consumo frenético e irresponsável da água por boa parte da humanidade, no desejo de controle pelas corporações, na falta de saneamento básico, na maciça urbanização e na pavimentação de recursos naturais, na predação do agrobusiness e na barafunda de legislações, acordos e tratados. Já vivemos tensões e estamos sujeitos, até, a guerras: mais pelo controle da água do que por sua escassez
No filme Vidas Secas, de 1963, dirigido por Nelson Pereira dos Santos e baseado em obra homônima de Graciliano Ramos, um casal, seus dois filhos, uma cadela e um papagaio vagam por uma desértica paisagem nordestina – um cenário exacerbado pela magnífica fotografia crua e esbranquiçada de Luiz Carlos Barreto. Eles perambulam em busca de água e de dignidade, esquecidos pelo mundo, privados dos mais mínimos direitos – os diálogos quase não existem e, no limite onde os homens secam junto com a falta de água, a cachorra Baleia parece mais gente que as pessoas.
A situação da região sofreu importantes alterações de lá para cá, com grande avanço na distribuição de recursos hídricos e obras de saneamento básico – que ocorreu também em grande parte dos países subdesenvolvidos. Mas que tipo de água se está consumindo, e a que preço? Quanto tempo levará para que ela se esgote novamente pela utilização ambiental e socialmente irresponsável? E mais: quando o esgotamento deste recurso natural começará a levar países ao recurso da força para obtê-lo, num cenário onde estes conflitos principiam a se esboçar?
Cidadãos comuns entendem a utilização da água em sua forma mais palpável e imediata, ou seja, aquela usada nos lares para limpeza, higiene e cozinha. Pouca gente se dá conta de que um litro de suco de laranja, comprado ontem no supermercado, consumiu 3.700 litros para sua produção. Ou que 1/2 quilo de carne para o almoço significou um consumo de 9.250 litros. Que o jornal lido pela manhã gastou 550 litros e, mais, que o carro que leva alguém ao trabalho necessitou de 148.000 litros até chegar à concessionária. E, ainda, que um litro de etanol preciso de outros 7.700 litros de água. Ou seja, seres humanos têm sede, mas quase tudo aquilo que consomem também tem.
O consumo de água pela humanidade, para suas necessidades básicas e para o supérfluo; a ação de grandes corporações e instituições financeiras internacionais por seu controle crescente e consequente precificação acima do poder de compra de partes significativas da população mundial; a maciça urbanização e pavimentação de recursos naturais; a predação do agrobusiness e a barafunda de legislações, acordos e tratados sobre o assunto ajudam a compor um panorama que não é nem de longe auspicioso.
“Para o bem-estar das populações, bem como para o seu desenvolvimento, os recursos hídricos vêm, a cada dia ganhando importância, seja nos cenários domésticos, seja no cenário internacional. Não que essa preocupação seja nova. Em 1960, há 50 anos, o Clube de Roma discutiu a criação de uma política acerca dos recursos hídricos e de seu controle”, observa Gustavo Korte, advogado especialista em direito regulatório e administrativo.
“Hoje, um coordenado e altamente eficaz movimento internacional pela justiça na questão da água está lutando contra o poder das empresas privadas de água e o abandono governamental da responsabilidade por cuidar de recursos hídricos nacionais e por oferecer água limpa ao povo”, diz Maude Barlow, conhecida ativista canadense, co-fundadora do *Blue Planet Project e autora de 12 livros sobre o tema (Leia a reportagem Maude Barlow alerta sobre a causa da água, publicada quando ela visitou o Brasil, e a resenha do livro Água: Pacto Azul).
Serão necessários esforços titânicos e muita vontade política para reverter um quadro assombroso. De acordo com a *Organização Mundial de Saúde, 1.2 bilhão de pessoas no mundo não têm acesso a água potável, e 2.6 bilhões não têm serviços sanitários adequados. A *ONU – Organização das Nações Unidas estima que cerca de 2.8 bilhões de pessoas em 48 países viverão em situação de escassez de água até 2025.
O tema é vasto e complexo, e a intenção desta reportagem é de tentar despertar preocupação para o problema pela exemplificação de alguns de seus componentes mais visíveis. Um deles, que certamente ilustra claramente um desvio no uso da água é seu engarrafamento em embalagens plásticas para o consumidor final. Foi um produto de consumo luxuoso de início, mas, já em 1970, eram vendidos cerca de um bilhão de litros de água engarrafada em todo o mundo. Em 2006, este consumo chegava a 200 bilhões de litros e, hoje, o crescimento do mercado é de cerca de 10% ao ano. Sem contar o dano ambiental causado pelo polietileno tereftalato (PET), de que são feitas as garrafas (que ainda despejam 18 toneladas de dóxido de carbono no ambiente para cada milhão de litros), parte substancial desta água é extraída de fontes privatizadas, em projetos de financiamento bancados por dinheiro público.
“Há que se estabelecer um acordo de comércio que importe em regras claras para os fluxos e volumes de bens e commodities, como a água, que na ordem atual de produção e exportação, estão destruindo regiões do planeta”, afirma Gustavo Gazzinelli, do Movimento pelas Serras e Águas de Minas.
ÁGUA INVISÍVEL
Estes fluxos incorporam o que se convencionou, recentemente, chamar de água virtual – ou seja, se são necessários cerca de 100 litros de água para produzir uma banana, significa que uma dúzia delas, exportada, tira do país produtor 1200 litros (O mapa encartado na Edição Azul da revista National Geographic, nas bancas em 22/03, explica como funciona a circulação dessa água no mundo). Fora a transferência de água desta forma, a questão do desperdício é gritante. No momento, cerca de 30 a 50% dos alimentos que produzimos – com a água virtual embutida neles – são desperdiçados antes de chegar ao consumo, diz Daniel Zimmer, diretor-executivo do *Conselho Mundial de Água, com sede em Marselha, na França. Estas perdas se dão durante a colheita, produção, o processamento, transporte e estocamento.
Por isso, Zimmer aconselha: “Carne consome cerca de 10 vezes mais água para ser produzida do que vegetais. Mude de dieta e economize até 3 mil litros de água por dia”.
No caso da água virtual, por ser um indicador recente, as informações são controvertidas. O Worldometers – World Statistics Updated in Real Time acaba de me informar, em seu site, que, até o presente momento, foram consumidos este ano 905 bilhões de litros em todo o mundo. Se você pesquisar agora, encontrará outro número. Outro site muito interessante, o Virtual Water, fornece medidas mais detalhadas no caso da água virtual, assim como a ONG Virtual Water, a Water Footprint, o The Global Development Research Center e, ainda, o site de conteúdo Tree Hugger.
A discrepância de informações se deve à falta de um padrão mínimo comum de medição, além de fontes que podem ser influenciadas por lobbies corporativos ou governos locais. Aqui mesmo - no site do Planeta Sustentável e no Especial Água -, você pode encontrar números diferenciados, como é o caso do painel sobre Água Virtual (apresentado no evento Planeta no Parque, no Ibirapuera, em janeiro), que teve como fonte a Sabesp e o post, de mesmo título.
Neste caso, o mapa da Edição Azul da National Geographic, que já comentei acima, é uma ótima fonte para se aprender mais sobre a água virtual: explica, por exemplo, quanta água é utilizada em cada fase da criação de uma vaca, durante três anos.
UMA NOVA ÉTICA PARA LIDAR COM A ÁGUA
“O ser humano demora muito para mudar sua atitude”, diz Cláudio Bedran, advogado e gestor ambiental ligado à ONG *Planeta Verde. O que faz lembrar das pessoas que vemos cotidianamente a usar mangueiras para limpar folhas ou cocos de cachorros da calçada ou para lavar seus carros. É óbvio que não se pode culpá-las por atitudes que decorrem da simples falta de informação (sem esquecermos – claro! – daqueles que não se importam com o desperdício). Na maior parte dos casos, a água é um problema cultural e de administração, mais do que de recursos. É preciso uma nova ética para o recurso, e que os governos se envolvam mais em projetos para beneficiar as populações, do que as populações em projetos de governos.
“A excessiva centralização das ações relativas ao gerenciamento de recursos hídricos que alija e aliena os setores usuários da gestão, vem sendo apontada também como um dos fatores que impedem uma maior proteção dos recursos e uma alocação mais racional”, lembra Marilene Ramos, secretária estadual do Ambiente do Rio de Janeiro.
No limite, mas por enquanto ainda no território da ficção, a humanidade poderá estar sujeita a guerras, mais pelo controle de água que propriamente por sua escassez. Tensões já são observadas entre Israel e países vizinhos, entre índia e Paquistão, dentro do Sri Lanka (onde um grupo rebelde desviou um importante canal), na passagem noroeste da região polar norte do Canadá (que os EUA querem internacionalizar) e em diversos países dependentes do rio Nilo, no norte, leste e centro da África. O deslocamento de milhões de pessoas de seus habitats naturais pela fuga da seca causa também um clima de animosidade em fronteiras e países hospedeiros (O Dossiê Terra, publicado pela National Geographic em 2009 – que ainda é vendido na *Loja Abril -, trata dessa questão). De acordo com Maude Barlow, em todo o mundo, mais de 215 grandes rios e 300 bacias de água subterrânea e aquíferos são compartilhados por dois ou mais países.
Alguns outros dados referentes à situação dos recursos hídricos no mundo convidam à reflexão. Um ser humano médio deixa por ano no planeta uma “pegada de água” de 885 mil litros de água – isto inclui tudo para cozinhar, para roupas e outros produtos que consumimos que dependem dela. Na China, a pegada média é de 686 mil litros. Nos Estados Unidos, de 2,4 milhões, o maior consumo per capita do planeta. E o acesso à água encanada é de 85% para 20% da população mundial mais rica.
“Todo ser humano tem o direito a um padrão de vida adequado... a seu bem estar e de sua família, incluindo alimentação, roupa, moradia, cuidado médico e serviços sociais necessários.” Esta é parte das *Declaração Universal dos Diretos Humanos das Nacões Unidas, divulgada em 10 de dezembro de 1948. Exatamente dez anos antes, no romance de Graciliano Ramos, Fabiano, Vitória, o filho mais velho, o filho mais novo e a cadela Baleia empreendiam sua travessia num mundo crestado e sem promessa.
*Conselho Mundial da Água – World Water Council
*Organização Mundial de Saúde
*ONU
*Planeta Verde
*Declaração Universal dos Direitos Humanos
http://planetasustentavel.abril.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário