quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Transamazônica, uma estrada do tamanho do Brasil




Transamazônica, uma estrada do tamanho do Brasil
Inaugurada há 30 anos para servir de vitrine do governo, a Transamazônica transformou-se em uma idéia derrotada pela floresta.
por Fernando Granato
O presidente Emílio Garrastazu Médici, o terceiro a dirigir o Brasil durante a ditadura militar, voava de Manaus a Recife num avião da Força Aérea Brasileira, em seu primeiro ano de governo, 1969, quando a aeronave sobrevoou uma extensa área completamente retorcida pela seca. Obcecado com a idéia de integração nacional e querendo projetar para o exterior uma imagem grandiosa do país, o presidente olhou pela janela, virou-se para seu ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, que o acompanhava no vôo, e afirmou: “Quero abrir uma estrada que leve os homens sem terra para a terra sem homens”. Médici se referia ao excesso populacional do Nordeste, na época estimado em cerca de 5 milhões de pessoas, e aos baixos índices de ocupação da Amazônia, considerada o “deserto molhado brasileiro”.

Essa cena foi descrita décadas depois pelo próprio Delfim. A estrada que o presidente pretendia fazer – e que de fato fez, a um custo de cerca de 1 bilhão de dólares, segundo estimativas do ex-ministro – é a Transamazônica. Nos seus 4 083 quilômetros, ela liga João Pessoa, na Paraíba, a Lábrea, no Amazonas. Foi inaugurada há exatos 30 anos e jamais ficou completamente pronta, já que seu projeto inicial previa uma saída para o oceano Pacífico, atravessando o Acre.

A idéia de Médici, de promover um povoamento épico da Amazônia com os nordestinos castigados pela seca, não tinha nada de original. Em várias ocasiões da história do país já se havia tentado o mesmo, com pouco sucesso, como na colonização do Acre e na construção da ferrovia Madeira–Mamoré, em Rondônia. Mas, como vontade presidencial não se discute, logo que desceu do avião Delfim Netto começou a realocar recursos para o Ministério dos Transportes.

Sem consultar governadores e prefeitos da região, o governo cortou metade dos subsídios que eram destinados à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e à Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). O dinheiro foi imediatamente transferido para o Ministério dos Transportes, dirigido por outro fanático defensor da tese da unidade nacional, o ministro Mário Andreazza. “Precisamos fazer a estrada e chegar aos grotões mais distantes”, disse Andreazza, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1970. “Do contrário, o estrangeiro chega primeiro. É uma questão de segurança nacional.”

Com dinheiro em caixa e vontade política, as obras foram iniciadas sem preocupações com questões técnicas e estudos detalhados sobre seu impacto ambiental e social. Máquinas pesadas foram transportadas para a selva, içadas por helicópteros, em operações dignas de filmes de ação. De um dia para o outro, centenas de engenheiros e milhares de operários desembarcaram na mata.

Entre 1970 e 1973, o governo levou para a Amazônia cerca de 4 mil homens com a missão de rasgar a selva, abrir a estrada e colonizar as terras desertas. Com seus parentes, a população imigrante chegou a 42 mil pessoas nos primeiros anos. A idéia original era oferecer um pedaço de terra para cada família e estabelecê-las nas chamadas agrovilas – pequenos núcleos habitacionais dotados de infra-estrutura básica, como posto de saúde, escola e comércio.

Na prática, não foram criados mais de 20 núcleos habitacionais com a infra-estrutura prometida ao longo de toda a rodovia. Os colonos tiveram de se virar como puderam. A ocupação das cidades já existentes foi desorganizada e o processo de aproximação dos habitantes mais antigos – os índios – também não aconteceu como o previsto. A Fundação Nacional do Índio (Funai) pensava que cerca de 10 mil índios, a maioria isolados e arredios, viveriam na região da estrada. Não encontrou nem 3 mil e não conseguiu atraí-los.

Pelo menos dois grupos – os araras e uma facção kararaô – recusaram-se a aceitar os contatos propostos pelos sertanistas. Infiltraram-se ainda mais na mata, não responderam aos chamados e se negaram a receber os brindes deixados. Apesar disso, não houve nenhum atrito sério entre os índios e os peões das construtoras e apenas um incidente de maiores proporções foi registrado: um grupo de parakanãs parou um caminhão que trafegava pela rodovia e obrigou o motorista a seguir com eles para Marabá (PA). Lá, os índios saquearam lojas e bares e assustaram a população andando nus pelas ruas.

Em outro caso, a aproximação resultou numa surpresa aos integrantes da Funai: depois de viajar oito dias de barco, uma expedição de sertanistas topou com uma tribo de índios de olhos azuis da margem do igarapé Ipixuna, afluente do rio Iriri, na região de Altamira (PA).

Com menos índios e colonos do que imaginava, o governo inaugurou a estrada em 1974, alojando menos de 1% dos 5 milhões de desabrigados nordestinos. E nem esses poucos moradores receberam o prometido: o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) só conseguiu dar terra e infra-estrutura a 900 famílias. No ano da inauguração da estrada, existiam cerca de 5 mil famílias de colonos vivendo precariamente em barracos de palha e pau-a-pique na beira da Transamazônica.

A péssima conservação da estrada – que só seria asfaltada em cerca de 10% de sua extensão – também contribuiu para isolar eternamente aqueles moradores e dificultar a chegada de novos investimentos. A obra mais ambiciosa do governo militar não passava de uma via de terceira categoria, com 20 centímetros de cascalho e pontes de madeira que desabavam nos meses de chuva (ou seja, metade do ano).

Oásis de progresso

Apesar do abandono e da dificuldade de acesso, algumas cidades às margens da rodovia, como Altamira, se desenvolveram com a chegada da estrada. Praticamente um lugarejo de 5 mil habitantes no início das obras, Altamira pulou para 18 mil habitantes em quatro anos. Pela sua localização, a cidade foi escolhida pelo governo para ser a capital da Transamazônica. Ali foi instalado o mais completo projeto de colonização. Os investimentos públicos – cerca de 50 mil cruzeiros por família de colono nos primeiros cinco anos da estrada, o equivalente hoje a 35 mil reais– superaram todos os outros da região. Ruas foram asfaltadas e ganharam iluminação de mercúrio. Bares, restaurantes e hotéis foram abertos. O número de estabelecimentos comerciais passou em quatro anos de seis para 480, incluindo aí casas de tecidos, empórios, lojas de calçados, bebidas, ferragens e materiais de construção. Os preços dos aluguéis triplicaram, assim como as novas construções. O poder aquisitivo da população de Altamira aumentou dez vezes com a chegada da Transamazônica. Mas, quando as empreiteiras foram embora, o dinheiro deixou de circular e a cidade mergulhou novamente no ostracismo, com dificuldade em retomar sua vocação tradicional em atividades como extração de castanha, borracha e minério.

O mesmo aconteceu com a pequena Medicilândia, também no Pará, que foi criada para ser uma das agrovilas às margens da estrada e recebeu esse nome em homenagem ao general presidente Médici. Conhecido por ter as melhores terras para agricultura ao longo da estrada, o lugarejo teve 3 mil hectares cobertos com o plantio de cana-de-açúcar.

O Incra descobriu que a média de produtividade canavieira de Medicilândia era três vezes maior que a de Pernambuco, o maior produtor de cana da América do Sul. Uma grande usina açucareira, a Abraham Lincoln, foi construída pelo governo. O Incra esperava dar emprego direto a pelo menos 550 colonos com a usina, que colocaria no mercado, anualmente, 3,5 milhões de litros de álcool. A previsão deu certo. A usina funcionou por quase três décadas, garantindo a subsistência da população local. No final de 1990, entretanto, foi desativada. Era muito difícil escoar o produto, em função das barreiras e crateras da estrada. Privados daquela que era praticamente a única fonte de renda do município, os habitantes ganharam o mesmo destino dos demais povoados ao longo da rodovia: o retrocesso.

Engolidos pela selva

Três décadas depois da inauguração, a Transamazônica permanece um esboço mal acabado de uma estrada, que trouxe no seu rastro, pela falta de planejamento, uma história de subdesenvolvimento. Em sua margem, hoje moram pequenos colonos, que vivem da agricultura de subsistência. Os excedentes das pequenas plantações de cacau, pimenta-do-reino e café não chegam aos grandes centros consumidores.

“Nos meses de chuva tudo tem que vir de avião para cá, até mesmo um comprimido. Esse desprezo das autoridades federais com a manutenção da estrada tem condenado nossa região ao total isolamento”, afirma Cincinato Pereira da Costa, secretário municipal de Saúde da cidade de Medicilândia. A mesma queixa faz Gerson Campos, prefeito de Porto de Moz, no Pará, e vice-presidente da Associação dos Municípios da Transamazônica, entidade que congrega 21 cidades. “O governo federal não injeta um centavo e cada um aqui se vira como pode, contratando máquinas e operários com seus próprios recursos”, diz.

Durante as chuvas, quando a estrada vira um rio de lama, as prefeituras contratam tratores para rebocar os poucos caminhões que se arriscam no trajeto, que pode levar até 15 dias de viagem para transpor o pior trecho, os 1569 quilômetros dentro do estado do Pará, dos quais apenas 180 são asfaltados.

Em seu gabinete na cidade de Belém, Evandilson Freitas de Andrade, coordenador da Unidade de Infra-Estrutura Terrestre do Ministério dos Transportes, não esconde os problemas da Transamazônica. “Quando não há chuvas, a estrada é trafegável com dificuldades em alguns pontos. Na estação chuvosa, a situação se complica e não há verba que consiga dar jeito.”

Sentado à margem da estrada, vendo os poucos carros passarem, Luís Augusto Melo, dono do hotel em Altamira que recebia ministros e presidentes 30 anos atrás, faz um balanço do feito dos militares. “Fizeram tudo isso para dar uma oportunidade aos nordestinos e hoje não se vê ninguém por aqui. Todos foram embora”, diz.

Do começo ao fim da picada
Em sete estados brasileiros, mais de 4 mil quilômetros de pura lama
Rurópolis (PA)

Este vilarejo, no encontro da Transamazônica com a Santarém–Cuiabá, já teve um hotel de luxo, erguido pelo Incra na década de 70, que recebia ministros e presidentes da República durante a construção e inauguração da rodovia. Com o passar dos anos, o hotel virou um bordel e hoje está desativado. Restaram suas ruínas

Lábrea (AM)

Às margens do rio Purus, é nesta cidade do Amazonas que acaba a Transamazônica. Lugar isolado do restante do país, tinha uma escola que, na época da construção da estrada, servia aos alunos leite em pó fabricado na Nova Zelândia, fornecido pelo governo dos Estados Unidos.

Assaré (CE)

Quando entra no Ceará, no meio do sertão, a Transamazônica ganha sua verdadeira feição: uma picada e não uma rodovia. Passa perto de pequenas cidades, como Assaré, terra do poeta Patativa do Assaré, morto em 2002. Quando era perguntado sobre os benefícios da estrada, o poeta dizia: “Lugar de nordestino é no Nordeste”

João Pessoa (PB)

Já está quase tudo tomado pelo mato, mas os mais atentos poderão perceber o obelisco de concreto, a 10 quilômetros de João Pessoa, na Paraíba, onde fica o marco zero da Transamazônica. No início, parece de fato uma rodovia: há asfalto, sinalização e movimento, sobretudo de caminhões

Medicilândia (PA)

Esse pequeno lugarejo, uma das tantas instituições batizadas com o nome do presidente Médici, nasceu para ser uma das agrovilas de colonos e depois virou município. Conhecida por ter a terra mais fértil de toda a região, ótima para o plantio de cana, a cidade não tem acesso fluvial e fica isolada nos meses de chuva

Altamira (PA)

Depois de atravessar o Nordeste, a “rodovia da integração nacional” entra no Pará, onde percorre 1569 quilômetros, (só 180 asfaltados). Nos anos 70, na região de Altamira, uma expedição da Funai deparou com uma tribo de índios de olhos azuis que jamais haviam tido contato com a civilização

Carga pesada
O jornalista Fernando Morais e o fotógrafo Alfredo Rizzuti foram os primeiros a cruzar Transamazônica
Antes mesmo de a estrada ficar pronta, o jornalista e hoje escritor Fernando Morais (autor de bestsellers como Olga e Chatô – O Rei do Brasil), foi o primeiro repórter a trafegar pela Transamazônica. Destacado pelo Jornal da Tarde, onde trabalhava em 1970, percorreu com o fotógrafo Alfredo Rizzutti, de avião, barco e até em lombo de burro, o caminho que depois viraria estrada.

Nessa primeira viagem, os dois foram presos confundidos com guerrilheiros do Araguaia. Depois da ajuda do jornal, acabaram soltos e puderam levar aos incrédulos colonos da região a notícia da construção que mudaria suas vidas. Em 1974, quando o governo anunciou a conclusão das obras, os dois voltaram até lá. Fizeram a primeira viagem para relatar ao Brasil como era a estrada. Dessa vez foram num jipe Gurgel Xavante e toparam com 4 mil quilômetros de obstáculos.

O jipe foi colocado em uma carreta e enviado para Belém (PA). Os jornalistas foram de avião para a capital do Pará e, de lá, seguiram no carro pela Belém-Brasília até Estreito (cerca de 700 quilômetros à frente). Nessa cidade, partiram de fato para a aventura de desbravar a Transamazônica. Quase 4 mil quilômetros à frente, os dois chegaram a Rio Branco com o carro praticamente intacto, não fosse um amortecedor quebrado. “Como me disse um caboclo, à entrada de Rio Branco, um amortecedor quebrado não é nada para o primeiro carro a percorrer a Transamazônica inteira, de ponta a ponta”, diz Fernando.

O jornalista conta que fazer a viagem em duas etapas – antes e depois da conclusão da obra – possibilitou uma visão ampla dos impactos causados. “Em 1970, havíamos percorrido 5296 quilômetros em cima de uma promessa e de um projeto que só existia nos mapas. Partimos de João Pessoa, na Paraíba, e chegamos a Cruzeiro do Sul, na fronteira do Acre com o Peru. Vimos índios, onças, quatis, pássaros em profusão. Quatro anos depois, só a pesca abundante lembrava a aventura anterior. Os pássaros haviam se refugiado no interior da mata, a estrada espantara os animais selvagens e os índios estavam confinados em reservas.”Depois de transpor 136 rios, em seis balsas, e cruzar 130 pontes de madeira, os repórteres chegaram ao final da estrada sem a certeza de que ela traria os benefícios prometidos à região. Alfredo e eu ainda tínhamos dúvidas e nos perguntávamos: valeu a pena?”, diz Fernando. A reportagem, com a íntegra da viagem, foi publicada no Jornal da Tarde, em setembro de 1974, em 20 páginas distribuídas em cinco edições do jornal.

Saiba mais
Livros

Cem Quilos de Ouro e Outras Histórias de Um Repórter, Fernando Morais, Companhia das Letras, 2003 - O livro reúne 12 reportagens do autor. Entre elas está “O Sonho da Transamazônica”, de 1974, quatro anos depois de Morais ganhar o Prêmio Esso com uma matéria sobre a rodovia

Transamazônica, a Redescoberta do Brasil, Flávio Alcaraz Gomes, Cultura, 1972 - Livro-reportagem que aborda a abertura da rodovia no meio da floresta Amazônica

Revista Aventuras na História

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