domingo, 10 de março de 2019

A busca por cidades saudáveis

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Fabio Angeoletto
Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Mato Grosso, Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil.

Vivemos indubitavelmente no Planeta Cidade. O início do século XXI marca um ponto de viragem importante na odisseia dessa espécie peculiar de primata, o Homo sapiens. Pela primeira vez na história da humanidade, a população global é eminentemente urbana. Através de metáforas com seres vivos e enfermidades, algumas bastante felizes (carros como dinossauros metálicos), outras menos inspiradas (calvície humana, representando a perda de cobertura vegetal nas cidades), Paulo Saldiva (2018) apresenta no seu livro de divulgação científica Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles1 o surgimento, o crescimento e os principais dilemas das cidades, tendo como “laboratório” a cidade de São Paulo. Ainda que Saldiva refira-se, inclusive no título de seu livro, às metrópoles, os desafios dos citadinos, gestores, legisladores, cientistas e urbanistas na busca por cidades saudáveis é uma verdade não apenas para São Paulo, mas para todas as cidades brasileiras.

Já na apresentação, o autor faz uma defesa enfática da necessidade de incorporarmos a ecologia urbana aos valores fundamentais dos direitos humanos. Saldiva não define - e essa poderia ser uma sugestão para as próximas edições do livro - o conceito de ecologia urbana, o ramo da ecologia que combina teorias e metodologias das ciências naturais e das ciências humanas para estudar os ecossistemas urbanos. É, sem embargo, meritório que um médico escreva sobre ecologia urbana, ciência pouco conhecida no Brasil, inclusive entre os biólogos.

Saldiva dedica um capítulo, o primeiro “Cidades como ponto de encontro”, a uma breve perspectiva sobre o surgimento e desenvolvimento das cidades, e de como essas invenções fantásticas, que são a decorrência mais importante do comportamento gregário da espécie humana, criaram beleza, arte e ciência. O autor não se furta a descrever também as sombras urbanas e suas misérias, a exclusão, ou a insalubridade que parecem ser atávicas. O capítulo seguinte, “A biologia urbana”, peca pela falta da apresentação do que o seu título sugere. É justo, no entanto, afirmar que, ao longo do livro, escrevendo com simplicidade, mas sem abrir mão do apuro técnico, Saldiva apresenta exemplos da complexidade dos ecossistemas urbanos, relacionando-os à saúde humana. Curiosamente, porém, essas questões estão ausentes no segundo capítulo.

No terceiro capítulo do livro, “Obesidade”, para quedarmos em um desses exemplos da complexidade dos ambientes urbanos, Saldiva descarta a obesidade como a conta simples de calorias acumuladas, e esmiúça (sempre tendo o cuidado de manter a linguagem simples e direta) os múltiplos fatores que interagem para o aumento da obesidade entre os brasileiros. Mais da metade dos brasileiros tem excesso de peso. Ainda mais espantoso, o sobrepeso infantil atinge mais de 30% das crianças. A obesidade tem causas genéticas. Também é preciso recorrer à evolução humana para explicá-la: nosso genoma evoluiu para que nossos ancestrais aproveitassem cada oportunidade de ingerir tantas calorias quanto possíveis. A odisseia humana é uma história de escassez: as cidades e sua abundante oferta de junk food são fenômenos muito recentes. O que era uma vantagem adaptativa, nas cidades torna-se um problema. Há ainda os fatores epigenéticos, que são reações químicas e outros processos que modificam a atividade do DNA humano, mas sem alterar sua sequência. Câmbios epigenéticos na expressão gênica podem aumentar o risco de obesidade (e novamente, é notável que Saldiva explique esses mecanismos moleculares em linguagem corrente). Há os fatores culturais: as mulheres que, em busca de uma educação mais aprimorada e de uma melhor inserção no mercado de trabalho, retardam a gravidez, o que aumenta o risco do nascimento de bebês mais predispostos à obesidade. E finalmente há os fatores ambientais: a violência urbana e o estímulo ao transporte individual motorizado espalham o sedentarismo. Até mesmo a poluição emitida pelos veículos automotores engorda, ao alterar o metabolismo da insulina em recém-nascidos, estimulando o ganho de peso, nos informa o autor.

No capítulo 4, “Doenças mentais”, Saldiva descreve, como no caso da obesidade, os fatores sociais, ambientais, genéticos e epigenéticos causadores de enfermidades como depressão, ansiedade e consumo excessivo de álcool ou drogas. Essas doenças são mais frequentes quanto maior é a cidade. Em Porto Alegre, por exemplo, a prevalência de depressão é de 12%, e na cidade de São Paulo, de 20%.

No capítulo 5, “Contagiosidade”, o autor volta a demonstrar a complexidade dos ambientes urbanos: o excesso de chuvas podem causar inundações e disseminação de leptospirose e hepatite, enquanto a escassez de água pode causar queda de pressão na tubulação de distribuição, e aspiração de sujidades para dentro das tubulações, provocando contaminações e aumento de doenças diarreicas.

O capítulo 6, “Poluição atmosférica e imobilidade”, é o mais interessante, e sintetiza a contribuição do cientista Paulo Saldiva, com dezenas de artigos científicos publicados sobre os enormes impactos sociais e ambientais da poluição atmosférica - com destaque à fumaça emitida pelos dinossauros de lata. O autor alerta para a responsabilidade coletiva da emissão de poluentes ao afirmar que nas cidades brasileiras os veículos são a principal fonte emissora de poluentes atmosféricos. A imagem de gananciosas corporações capitalistas e suas imensas chaminés cobrindo cidadãos indefesos e as paisagens de cinza envelheceu. Nossos carros, nosso estilo de vida são parte do problema, e isso é verdade, de fato, não apenas para metrópoles como São Paulo. Leandro (2017, p.70), em um estudo de biomonitoramento da poluição atmosférica em Rondonópolis (cidade do Mato Grosso, com população de 222.000 habitantes), constatou que o aumento da frota de veículos privados, que triplicou na última década, e o intenso fluxo de caminhões pelas BR 163 e 364, são os principais emissores de poluentes na sua mancha urbana. Saldiva fala, portanto, a muitas cidades brasileiras.

Os impactos sociais do predomínio do transporte individual nas urbes brasileiras são explicados pelo autor com estatísticas simples, mas que transmitem uma mensagem poderosa. As perdas econômicas decorrentes da imobilidade urbana (ou mobilidade urbana claudicante) equivalem a 7,5% do PIB da cidade de São Paulo. O desperdício inclui as doenças causadas pela poluição veicular, mas há outros impactos, e Saldiva recorre ao conceito de velocidade social para explicar que os mais pobres, independentemente do modal de trânsito, gastam uma fração maior de seu tempo para pagar pelo seu deslocamento. Um tempo precioso, que poderia estar sendo investido em estudos, em convívio social ou em desfrutes biofílicos.

No capítulo 7, “Ilhas de calor urbano, alterações do regime de chuvas”, Saldiva demonstra como extremos climáticos podem matar, não apenas de frio, os miseráveis que habitam o olho da rua, mas também pelas doenças que esses extremos exacerbam, como infartos do miocárdio e derrames cerebrais. A seguir, no capítulo 8, “Violência e seus dramas”, ele apresenta uma faceta menos discutida da violência nas cidades, a percepção da violência, e seus impactos à saúde. Embora a violência, expressa em ocorrências anuais de homicídios, venha caindo em São Paulo - hoje o trânsito mata quase tanto na Grande São Paulo quanto o crime -, o sentimento de insegurança é um importante gerador de estresse, o qual contribui para o agravamento de enfermidades mentais, hipertensão arterial e diabetes.

A essa altura do livro os leitores estarão se perguntando: o que fazer? Saldiva encerra seu livro com o capítulo intitulado “Soluções, as esperanças, as necessidades”, onde, ao contrário do que promete o título, apenas informa aos leitores sobre a existência de milhares de soluções técnicas eficazes para incrementar a qualidade de vida urbana, e elenca alguns exemplos. O autor prefere, como ele mesmo explica, desviar o rumo do texto. Nessa inflexão, Saldiva explicita o seu assombro pela dificuldade em compreender os motivos que impedem as cidades brasileiras de avançarem na direção do bem-estar humano e da sustentabilidade. Mas o autor arrisca mesmo assim algumas explicações, sendo a principal delas a política minúscula, ou as práticas políticas liliputianas, nas palavras de Saldiva: o aumento do capital eleitoral à custa do prejuízo para todos. A política nauseante da cabalagem de votos, traduzida na ocupação de mananciais urbanos (moradias iguais a votos, mesmo que à custa de um gigantesco impacto), ou na imposição de modais de transporte absurdamente poluidores.

O autor tem razão, mas um agravante ao submundo criminal ao qual pertence uma parcela significativa da classe política brasileira é o fato de ainda sermos o país do você sabe com quem está falando?. E essa assimetria de poder, que permite tudo a quem tudo pode, não está materializada apenas naqueles que mandam no Brasil, mas também no cotidiano dos brasileiros comuns. “O brasileiro vê o bom motorista como babaca”, declarou o antropólogo Roberto Da Matta ao jornal Zero Hora, por ocasião do lançamento do seu livro Fé em Deus e pé na tábua, em 2010. As mais comezinhas regras de trânsito são desrespeitadas. Elas valem para os outros, os otários. Não é necessário um aparato antropológico para constatar a incapacidade dos brasileiros em contribuir para a urbanidade no trânsito, basta caminhar pelos estacionamentos dos nossos supermercados. As vagas para idosos, grávidas e deficientes físicos quase nunca estão ocupadas por eles. A aversão dos brasileiros pelas leis que a todos deveriam igualar é, portanto, parte da resposta sobre os motivos da inércia das urbes brasileiras. Essa aversão é ademais um dos nossos impasses urbanos.

Como parte de sua estratégia de abordar assuntos científicos complexos de maneira simples, Saldiva lançou mão de apenas onze gráficos, adequadamente explicados ao longo dos capítulos, e de três imagens, cuja qualidade deixa a desejar. A parcimônia com as ilustrações do livro, todas em preto-e-branco, barateia os exemplares. O público potencial de Vida urbana e saúde é amplo, compreendendo estudantes e professores de graduação e pós-graduação em arquitetura e urbanismo, biologia, ciências ambientais, geografia, e ciências da saúde, e ainda, servidores públicos, cidadãos e integrantes de organizações não governamentais interessados em contribuir para o incremento da qualidade de vida e sustentabilidade urbanas. Por isso, reduzir os custos de publicação da obra é um passo lógico para sua disseminação. Mesmo assim, um maior cuidado com os gráficos e ilustrações seria bem-vindo. Por exemplo, a foto da página 73, que poderia ilustrar de maneira contundente os danos da poluição atmosférica aos pulmões dos paulistanos, demanda um pouco de imaginação para ser compreendida.

Do mesmo modo, e pelo mesmo motivo de atingir uma ampla audiência, o autor foi econômico com as citações de referências bibliográficas. São apenas onze, durante as 125 páginas do livro. Sem embargo, como sugestão para as próximas edições de Vida urbana e saúde, Saldiva poderia compilar, para cada um dos capítulos, listas de artigos acadêmicos e livros destinados aos leitores interessados em aprender mais. Essas listas seriam especialmente úteis no caso das soluções que o autor menciona ao longo do texto e especialmente no último capítulo, mas sem deter-se sobre elas.

Saldiva conclui seu livro com um chamamento. Ao descrever os impasses urbanos, ele nos recorda que cabe a nós, urbanistas, resolvê-los. Elenquei vários méritos de Vida urbana e saúde, mas o principal deles, ainda que o autor não o diga explicitamente, é a mensagem clara que emerge ao concluirmos sua leitura: as cidades, em sua complexidade, demandam planejamento, e as múltiplas formações acadêmicas e atores sociais precisam estar envolvidos nesse labor. Oliver L. Gilbert (1991, p.314), no seu livro The Ecology of Urban Habitats, afirma que o fomento à biodiversidade nas cidades é uma operação muito intricada para ser deixada [apenas] nas mãos dos ecólogos. Não é uma provocação, mas a constatação da complexidade da ecologia das cidades. Podemos afirmar o mesmo para o planejamento das cidades, um esforço demasiadamente difícil para ser deixado apenas sob a responsabilidade de arquitetos e urbanistas e engenheiros civis. Médicos, biólogos, geógrafos, ecólogos, educadores, advogados, sociólogos, comunicadores sociais, e um amplo leque de profissionais, além de, é claro, arquitetos e engenheiros, devem colaborar.


NOTA
1O texto de compõe como um comentário ao livro Vida urbana e saúde, de Paulo Saldiva (2018.)

REFERÊNCIAS

GILBERT, O. L. The Ecology of Urban Habitats. Torquay, Devon: Springer Science & Business Media. 1991. [ Links ]

LEANDRO, D. S. Qualidade ambiental em Rondonópolis-MT: Formas de controle e análises para a implantação de políticas públicas contra o aumento da poluição atmosférica em cidades médias. Rondonópolis, 2017. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Mato Grosso. Rondonópolis, 2017. 

SALDIVA, P. Vida urbana e saúde: Os desafios dos habitantes das metrópoles. São Paulo: Contexto, 2018. 

Fabio Angeoletto é doutor em Ecologia pela Universidade Autônoma de Madrid, professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Rondonópolis. @ - fabio_angeoletto@yahoo.es
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