Por Jennifer S. Holland
Foto de David Doubilet
Largas faixas de coral, visíveis ao largo da costa leste da Austrália, assinalam o limite entre a plataforma continental e as águas mais profundas.
Pouco abaixo da superfície do mar de Coral, onde fica a Grande Barreira, os dentes dos peixes-palhaço roem as pedras, as garras dos caranguejos estalam em disputas por locais de refúgio e uma garoupa de 275 quilos se anuncia com um baque impetuoso ao fazer pulsar sua bexiga natatória. Tubarões passam como relâmpagos. Braços de anêmonas se agitam e minúsculos peixes parecem saracotear. Tudo o que não consegue se agarrar a algo rígido é arrastado e revirado a cada onda do oceano.
A diversidade do recife explica em parte por que essa barreira de coral foi batizada de grande. Ela abriga nada menos que 5 mil tipos de molusco, 1,8 mil espécies de peixe, 125 variedades de tubarão, além de incontáveis organismos microscópicos. Porém, o mais fascinante de tudo isso - e o que fez do lugar um Patrimônio da Humanidade - é a vasta extensão de corais, desde o Acropora cervicornis, que mais parece uma flor, até matacões recobertos de pardacentos corais nodosos, tão semelhantes ao couro quanto uma sela de montaria. Os corais moles se sobrepõem aos duros, as algas e as esponjas definem o colorido das rochas e todas as fendas servem de lar para algum tipo de animal. Não há biodiversidade equivalente em nenhuma outra parte do mundo.
O tempo, as marés e um planeta em constante mutação deram origem à Grande Barreira há milhões de anos. Agora, porém, todos os fatores que contribuem para o crescimento do recife estão se alterando em um ritmo jamais registrado.
Descoberta pelo Ocidente
Os europeus tiveram as primeiras notícias da Grande Barreira de Coral por intermédio do capitão James Cook, um explorador britânico que a descobriu por acaso. Em um crepúsculo de 1770, ao ouvir o som de madeira chocando-se contra rochas, Cook não fazia ideia de que seu barco havia topado com a maior estrutura viva do planeta: mais de 26 mil quilômetros quadrados de faixas e ilhotas de coral que aparecem e somem de forma sinuosa por 2,3 mil quilômetros.
Cook explorava as águas ao largo do atual estado australiano de Queensland quando seu navio, o HMS Endeavour, acabou preso no labirinto de recifes. Logo abaixo da superfície, torres aguçadas de coral penetraram o casco da embarcação e interromperam o seu avanço. Enquanto o madeirame se rompia e permitia a entrada da água do mar, a tripulação reuniu-se no convés, "com semblantes que exprimiam o horror diante da nossa situação", conforme Cook anotaria mais tarde em seu diário. O capitão e seus homens, porém, conseguiram chegar até a foz de um rio, onde puderam reparar a embarcação.
Na época em que os europeus se chocaram contra as rochas, a região já vinha sendo ocupada há milênios. Em termos culturais, a barreira de coral era um elemento crucial da paisagem para os povos aborígines e os habitantes das ilhas do estreito de Torres, que ao longo de incontáveis gerações a haviam explorado com canoas e ali pescado e compartilhado mitos sobre as suas criaturas. Décadas após o encontro de Cook com o monstro submerso, o cartógrafo inglês Matthew Flinders - que também enfrentou contratempos ao enveredar por entre os recifes - batizou a formação, inspirado em suas dimensões, de a Grande Barreira de Coral. Se os blocos principais desse recife fossem retirados do mar e postos a secar, as rochas cobririam uma área equivalente à do estado de Sergipe.
Expansão e erosão
O imenso recife deve sua existência a organismos que não são maiores do que um grão de arroz. Os pólipos, os elementos básicos do coral, são animais que vivem em colônias e abrigam algas simbióticas em suas células. Como essas algas são capazes de fotossíntese - ou seja, usam a luz para gerar energia -, cada pólipo tem condições de segregar uma "casa" de carbonato de cálcio, ou calcário. À medida que cada uma dessas casas se sobrepõe a outras, a colônia se expande tal qual uma cidade; criaturas marinhas logo se agarram à estrutura e proliferam, ajudando a consolidar essa estrutura.
Ao largo do litoral leste da Austrália, as condições são bastante favoráveis para essa formação. Os corais crescem sobretudo em águas rasas, límpidas e agitadas, com muita luz para assegurar a fotossíntese. Após milhões de gerações de pólipos, o resultado é um recife que não se mostra como algo definido, e sim como uma mescla de contornos, dimensões e formas de vida, cada qual determinada pelo ponto do oceano em que se encontra - o quão próxima está da costa, por exemplo - e também por outras forças, como a intensidade das ondas. Quando nos aproximamos do mar aberto, até um ponto em que há pouca luz e as águas são profundas, já não encontramos mais nenhum recife.
"Em toda a extensão da Grande Barreira, são os corais que determinam os padrões de vida", diz Charlie Veron, cientista do Instituto Australiano de Ciências Marinhas. Com mais de 400 espécies, "os corais constituem o hábitat de tudo o que vive aqui". A temperatura adequada, a transparência da água e as correntes oceânicas permitem aos corais lamelados, por exemplo, aumentar seu diâmetro em até 30 centímetros por ano. Por outro lado, o recife sofre constante erosão, sendo desgastado pelas ondas, pela composição química do oceano e pelos organismos que ingerem calcário. Essa tendência de desaparecimento é bem mais lenta que o constante acúmulo; mesmo assim, até 90% da rocha se dissipa e forma areia. Por isso, a fina camada de vida que recobre o recife, aquela visão que se descortina para o mergulhador, está em modificação permanente.
As camadas inferiores são recentes, em termos geológicos, com menos de 10 mil anos de idade. Já a verdadeira origem do recife é bem mais antiga. Há 25 milhões de anos, de acordo com Veron, na época em que a massa terrestre de Queensland avançou para as águas tropicais devido à movimentação da placa tectônica indo-australiana, larvas de coral começaram a pegar carona em correntes do Indo-Pacífico que rumavam para o sul, aderindo a estruturas fixas sempre que possível. Pouco a pouco surgiram colônias rochosas, que se expandiram pelo leito oceânico repleto de uma fauna marinha diversificada.
O avanço das pedras
Desde a época em que os recifes se consolidaram pela primeira vez, começaram e terminaram as eras glaciais, as placas tectônicas foram aos poucos avançando e as condições oceânicas e atmosféricas sofreram violentas flutuações. Com isso, os recifes passaram por inúmeros estados - de expansão e contração, sendo desfigurados e reocupados de acordo com os caprichos da natureza. "A história da Grande Barreira", diz Veron, "é um catálogo de desastres" provocados pelo caos planetário. Mas o recife sempre conseguiu se restabelecer.
As mudanças no clima mundial parecem ter um efeito devastador nos recifes. O aumento das temperaturas e a maior exposição aos raios ultravioleta solares causam uma reação de estresse nos corais conhecida como "branqueamento" - as algas coloridas em suas células tornam-se tóxicas e são expelidas, conferindo aos animais hospedeiros uma cor de esqueleto. Em seguida, ervas marinhas carnudas sufocam o que restou.
O aquecimento também está vinculado a um declínio, que se prolonga por seis décadas, no fitoplâncton oceânico - os organismos microscópicos responsáveis pela absorção dos gases do efeito estufa e que são a base da cadeia alimentar nos mares. Os peixes de recifes são igualmente afetados pela água mais quente - por vezes adotando um comportamento agressivo diante de predadores e presas. Alterações no nível do mar, tanto para cima como para baixo, têm impacto calamitoso: nas áreas rasas, com os corais expostos demais aos raios solares, ou, pelo contrário, ao ampliar sua distância da superfície, em profundidades nas quais recebem pouca luz.
Uma preocupação imediata é a de que as maciças inundações ocorridas na Austrália no início deste ano tenham lançado sedimentos e água impregnada de toxinas nos recifes próximos a Queensland. Serão necessários anos para se estimar o dano causado à fauna marinha, mas é possível que ocorram extinções desastrosas.
Além de tudo isso, há o teste crucial do ácido. Em todo o planeta, os ecossistemas coralinos foram muito afetados durante as cinco extinções em massa já registradas, a primeira das quais há 400 milhões de anos. Os gases de efeito estufa aumentaram no decorrer dos milênios e, ao que tudo indica, a liberação maciça de dióxido de carbono nos períodos de maior atividade vulcânica foi um fator importante no aniquilamento dos corais, sobretudo na mais recente extinção, 65 milhões de anos atrás. Naquela época, os oceanos absorveram da atmosfera quantidade cada vez maior de gases estufa, o que causou aumento na acidez da água. O pH mais baixo (ácido) prejudicou a capacidade de os animais marinhos moldarem conchas e esqueletos de calcário.
Em alguns oceanos, o fenômeno está voltando a ocorrer. Os animais mais vulneráveis à ação corrosiva do ácido são os corais ramificados de crescimento rápido e as indispensáveis algas excretoras de cálcio que contribuem para a amalgamação do recife. Quanto mais frágil a estrutura, maior é a chance de ela se romper sob a força de ondas, doenças, poluentes e outros fatores.
Em épocas passadas, muitos corais se adaptaram às alterações na acidez dos oceanos. "Mas há uma diferença: houve longos intervalos entre uma e outra ocorrência, com milhões de anos para que os corais se adaptassem", diz Veron. O grande temor do cientista é que, com as emissões sem precedentes de CO2, enxofre e nitrogênio devido às atividades humanas, acrescidas pelo aumento na liberação de metano ocasionada pelo derretimento do gelo no planeta, boa parte da Grande Barreira acabe despojada de sua fauna no prazo de 50 anos. O que vai sobrar? "Esqueletos de coral recobertos de muco de algas", diz ele.
Passo a passo
Claro que os 2 milhões de turistas que visitam a formação natural a cada ano ainda não se decepcionam. Para quem souber para onde olhar, contudo, os danos são evidentes. O recife exibe uma cicatriz de 3 quilômetros de comprimento, provocada pela colisão de um navio carvoeiro chinês em abril do ano passado. Outros encalhes de barcos e vazamentos de petróleo macularam o hábitat, assim como o escoamento de nutrientes de áreas agrícolas.
No entanto, os australianos não estão dispostos a ficar parados enquanto os recifes se desintegram. Como disse o capitão do barco que me levou a uma área de mergulho, "sem a Grande Barreira, não há nada aqui além de água salgada". Os visitantes conduzidos de barco até as bordas da Grande Barreira injetam mais de 1 bilhão de dólares por ano na economia australiana.
Na visão dos cientistas, o desafio é manter o recife saudável a despeito das mudanças aceleradas. "Para se reparar o motor de um carro, é preciso saber como ele funciona", comenta o biólogo marinho Terry Hughes, da Universidade James Cook. "E o mesmo se aplica aos recifes." Uma das prioridades é avaliar o impacto total da pesca excessiva. Por ser uma atividade tradicional, a pesca comercial continuou a ser realizada mesmo depois que, em 1975, os 344,4 mil quilômetros quadrados de hábitat foram transformados em reserva oceânica. Em 2004, dado o alarmante volume de retirada de peixes, o governo australiano proibiu todo o tipo de pesca em um terço dessa área. A recuperação biológica mostrou-se mais vigorosa e rápida que a prevista; no prazo de dois anos após a proibição, a quantidade de trutas-de-coral, por exemplo, dobrou nos recifes.
Outro interesse dos pesquisadores é descobrir o que torna algumas espécies de coral mais resistentes durante as épocas de mudança. "Sabemos que há recifes que passam por condições mais estressantes que outros", diz o especialista Peter Mumby, da Universidade de Queensland. "Com base em dados acumulados durante décadas sobre a temperatura do mar, hoje temos meios de traçar um mapa dos corais mais aclimatados ao calor e concentrar ali esforços de conservação." Mumby explica que o entendimento de como os corais se recuperam de episódios de branqueamento - e a capacidade de prever onde haverá crescimento de novos pólipos - pode ser muito útil na definição de futuras reservas. Até mesmo o incisivo Veron admite que a sobrevivência dos corais é viável no longo prazo caso as ameaças contra os recifes sejam contidas - logo.
A natureza conta com as próprias defesas. Muitos dos construtores de recife evoluem por meio da hibridação - na qual há a mescla de genes de espécies distintas. No recife, cerca de um terço dos corais se reproduz por meio de uma desova anual em massa. Durante esses eventos, até 35 espécies diferentes em um trecho do recife liberam ao mesmo tempo pacotes de ovos e de esperma, o que significa que milhões de gametas de pais geneticamente distintos se misturam em uma sopa na superfície do oceano. "São oportunidades excepcionais para a geração de híbridos", explica a bióloga marinha Bette Willis. Sobretudo agora, com as mudanças no clima e na composição química dos oceanos, acrescenta ela, a hibridação pode oferecer uma via expressa para adaptação e resistência contra doenças.
Na realidade, uma das lições é que, apesar das ameaças preocupantes da atualidade, a Grande Barreira de Coral não vai se desintegrar com facilidade. Afinal, ela conseguiu resistir e sobreviver a outras mudanças catastróficas. Além disso, a enorme variedade de fauna marinha está ali à disposição para ajudar a manter a integridade dos recifes. Em 2007, os cientistas constataram que nos locais em que prosperam os peixes herbívoros o mesmo se dá com os corais, sobretudo em águas poluídas com excesso de nutrientes. "Quando se eliminam os herbívoros, as ervas marinhas substituem os corais", diz Hughes.
Quem visita os recifes logo nota o trabalho vital realizado pelos peixes. Sob a luz mosqueada de uma tarde na extremidade norte da Grande Barreira, as muralhas de coral elevam-se sobre uma espécie rara de peixe-morcego, com máscara negra e longas barbatanas, que mordisca fiapos de sargaço. E um cardume de peixes-papagaio - com dentes unidos em forma de lâmina, como se fossem um alicate - ataca com vontade tapetes de algas que se instalaram nas rochas.
National Geographic Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário