sábado, 12 de março de 2011

Amazônia - Uma cidade de costas para a selva. Ainda bem

A Zona Franca de Manaus é um bom exemplo
de produção de riquezas e empregos sem exercer
pressão sobre a floresta. Outros polos industriais
semelhantes podem ser criados na Amazônia



José Edward, de Manaus

Fotos Manoel Marques

Sem mexer no mato
Imagem aérea da Zona Franca de Manaus: faturamento anual de 60 bilhões de reais,
o dobro do PIB da Bolívia


A região amazônica é hoje pelo menos duas vezes mais rica do que há três décadas, segundo indica o PIB dos estados que a compõem. Esse crescimento econômico, no entanto, se deu em grande parte graças a atividades que têm como base a destruição da floresta – a exploração madeireira e a pecuária extensiva. Quem estuda a Amazônia a sério concorda que, para evitar que a região continue a ser explorada de forma predatória, é preciso desenvolver atividades econômicas que não exerçam pressão sobre a floresta, promovam riquezas e assegurem emprego e renda à população. A experiência mais bem-sucedida nesse sentido, até agora, é a Zona Franca de Manaus, um enclave de eficiência tecnológica na Amazônia. Criada em 1967, como parte do plano do regime militar de integrar a Amazônia ao restante do país, essa região de livre-comércio compreende uma área de 10 000 quilômetros quadrados, incluindo a capital amazonense. Para viabilizar seu projeto, o governo federal passou a conceder incentivos fiscais às empresas que se dispusessem a instalar fábricas no meio da selva.

A isenção fiscal – sobretudo do imposto sobre produtos industrializados (IPI) para mercadorias que entram e saem da área – resultou na criação de um dos maiores e mais diversificados complexos industriais da América Latina. Pouco mais de quatro décadas após sua fundação, a Zona Franca de Manaus concentra 550 indústrias modernas, que fabricam desde lentes oftalmológicas até motocicletas. No ano passado, essas companhias alcançaram, juntas, um faturamento de 60 bilhões de reais – o dobro do PIB da Bolívia. Nessa conta não estão computados os resultados obtidos pelas duas centenas de empresas dos setores de comércio e prestação de serviços que gravitam em torno das fábricas. "Toda essa riqueza é produzida sem que seja necessário derrubar uma única árvore", diz José Alberto Machado, especialista em desenvolvimento regional e professor da Universidade Federal do Amazonas. "Temos aqui, de fato, uma indústria limpa, de costas para a floresta", acrescenta o economista Alexandre Rivas.

Machado e Rivas são autores de um estudo recém-lançado que demonstra de forma científica o impacto virtuoso que o polo industrial de Manaus exerce sobre a proteção da Floresta Amazônica. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que a existência do complexo industrial atenuou em pelo menos 70% o desmatamento no estado do Amazonas. O trabalho conclui que a dinâmica econômica provocada pelas indústrias instaladas na Zona Franca contribuiu de forma decisiva para que o Amazonas tenha atualmente 98% de sua área de floresta preservada. No vizinho Pará, onde a base da economia se concentra na extração madeireira e na mineração, 20% da floresta já foi destroçada. Em Mato Grosso, que tem a agropecuária como carro-chefe, esse índice chega a quase 40%. De acordo com a pesquisa, a maior parte dos 500 000 empregos – 100 000 diretos e 400 000 indiretos – que o polo industrial de Manaus cria atualmente é ocupada por migrantes do interior do Amazonas e de outros estados da região. "Não fossem essas indústrias, muitos de nós com certeza não teríamos outra opção senão ficar nas mãos das madeireiras", constata o paraense Amauri Faria, que há quinze anos começou a trabalhar como auxiliar de produção na fábrica de motocicletas Honda e hoje gerencia uma unidade automatizada da montadora, na qual comanda 36 operários. "Na região de Óbidos, no Pará, onde nasci, o desmatamento corre solto, em plena calha do Rio Amazonas, por falta de opções de trabalho como as que temos aqui", ele completa.

Até o início da década de 1990, a Zona Franca de Manaus funcionava basicamente como um entreposto para a importação de produtos, sobretudo eletroeletrônicos. Na maior parte dos casos, os equipamentos eram apenas montados lá e, depois, distribuídos para o resto do país. Após a abertura da economia brasileira ao mercado internacional e a redução generalizada das alíquotas de importação, antes restrita à Zona Franca, as indústrias locais tiveram de se reinventar para sobreviver. Graças aos investimentos em tecnologia e à intensa qualificação da mão de obra, elas conseguiram agregar valor à produção e tornar-se competitivas. Atualmente, uma média de 30% dos componentes de seus produtos são fabricados na própria região. Outros 20% são produzidos em outros estados brasileiros. No ano passado, as compras de insumos feitas dentro do Brasil pelas indústrias do polo ultrapassaram a casa dos 14 bilhões de reais. Em algumas fábricas, o índice de nacionalização da produção é muito superior. É o caso da Honda, que tem mais de 90% das peças de suas motocicletas fabricadas no país – no modelo CG 150 Titan, o mais vendido, esse índice chega a 99%. A Honda brasileira é hoje campeã de produtividade: a cada vinte segundos sai uma moto de sua linha de montagem – metade do tempo médio registrado nas outras oito unidades que a multinacional possui fora do Japão.

Obrigada a importar mais da metade dos componentes que integram seus aparelhos celulares – já que o Brasil não dispõe de fábricas de semicondutores –, a finlandesa Nokia, por sua vez, vem investindo para que sua filial em Manaus se transforme em um centro de desenvolvimento de tecnologias para o setor. Para isso, patrocina uma escola profissionalizante de nível médio aberta à comunidade. Mantendo aulas em regime integral, nos últimos dois anos a instituição ficou em primeiro lugar no ranking do MEC para a Região Norte. A Nokia mantém também um instituto de pesquisas onde 300 funcionários, entre os quais mestres e doutores, se dedicam exclusivamente a buscar inovações tecnológicas para seus produtos e processos. Foi de lá que saiu, por exemplo, o equipamento que testa a resistência de aparelhos celulares utilizado atualmente em todas as fábricas da multinacional ao redor do mundo. Várias tecnologias presentes nos aparelhos vendidos mundialmente pela Nokia também foram desenvolvidas aqui, sobretudo na área de softwares.

Para que o polo industrial de Manaus se consolide, falta desatar alguns nós. Um deles é o da infraestrutura logística da região. Manaus é ainda hoje uma cidade praticamente isolada: o acesso a ela só é possível de avião ou por meio de longas viagens de barco ou navio. Há também o gargalo da energia, que, a exemplo do que acontece no restante do estado, é alimentada pelo poluente e caro óleo combustível. Ainda no capítulo da logística, é necessário que a estrutura portuária da cidade seja modernizada. A orla de Manaus, ao longo do Rio Negro, é um verdadeiro caos, com o engarrafamento diário de centenas de embarcações de passageiros e de cargas.

A consolidação da Zona Franca de Manaus passa também pela capacidade das indústrias locais de agregar mais valor a seus produtos. Para isso, ajudaria atrair uma indústria de semicondutores para a região. Atualmente, esses dispositivos, que funcionam como o "coração" de diversos equipamentos, são todos importados – o que encarece muito os custos. "Esse melhoramento só será possível se houver uma decisão política de transformar o polo em um centro de produção de ciência e alta tecnologia, como ocorre no Vale do Silício americano", diz o economista José Alberto Machado. Entre os produtos que utilizam a microeletrônica estão os marca-passos, os aparelhos destinados a suprir deficiências motoras e sensoriais, os vinculados à defesa e à gestão de território e os associados aos conversores da TV digital. A ampliação da Zona Franca de Manaus em direção à alta tecnologia produziria empregos suficientes para modificar a vida de milhares de habitantes da Amazônia.

A criação de polos semelhantes aos de Manaus poderia transformar a economia da Amazônia. Com investimentos maciços em educação e formação de mão de obra, estados cuja economia se baseia no extrativismo e na pecuária poderiam deslanchar como centros industriais capazes de desviar da floresta a atenção de seus habitantes. Em Rondônia, um novo polo que alcançasse metade do sucesso da Zona Franca de Manaus seria suficiente para triplicar o PIB do estado. Em estados menores, como Acre e Amapá, um polo industrial os faria produzir doze vezes mais riquezas do que agora. É o desenvolvimento de costas para a floresta.

Sem usar uma folha da floresta
Fábrica de motocicletas da Honda: a mais produtiva entre as nove que a empresa mantém fora do Japão



O empurrão das multinacionais

O polo industrial de Manaus abriu perspectivas para milhares de trabalhadores progredirem na vida. Muitos fizeram carreira nas multinacionais que se estabeleceram na região. Nascido em Manaus,Fernando Melo, de 35 anos, é um deles. Ele fez o 2º grau em uma escola técnica patrocinada pela fábrica de celulares finlandesa Nokia. Posteriormente, cursou graduação em engenharia elétrica e mestrado em engenharia da produção. Há onze anos, ingressou na fábrica que a companhia tem na capital amazonense como engenheiro júnior e, desde 2007, é gerente de suprimento e distribuição, um cargo alto no qual responde diretamente ao diretor-geral. "A empresa abriu todas as portas para mim", ele diz.



A natureza é ótima comar-condicionado

O advogado e economista Átila Denys, nascido em São Paulo há cinquenta anos, sente-se perfeitamente adaptado à vida na Amazônia. Depois de 32 anos morando em Manaus, incorporou hábitos da região. "Às vezes saio para pescar tucunaré com amigos, navegando pelos rios Negro ou Madeira", conta. Mas, para ele, vida selvagem tem limite. "A proximidade com a natureza é ótima quando se tem ar-condicionado e todo tipo de conforto em volta. A floresta é bonita de ver ali do outro lado do rio", diz. Dono do maior escritório de advocacia do Amazonas, Denys garante que não trocaria Manaus por nenhum outro lugar do Brasil. "Sofro um pouco com o calor. Mas aqui ninguém precisa andar com carro blindado."



3 exemplos de riqueza sem devastação

1 petróleo verde no interior do Pará

Vida nova
Colheita de dendê na Agropalma: renda para famílias que antes viviam
de derrubar árvores

Promover o desenvolvimento da Amazônia e o bem-estar de seus habitantes por meio do extrativismo artesanal tem se revelado uma ilusão. Quando a industrialização de uma matéria-prima da floresta é feita de forma extensiva, porém, os resultados podem ser espetaculares. Desde a década de 80, a empresa Agropalma cultiva e processa em larga escala no município paraense de Tailândia, na região conhecida como arco do desmatamento, a palmeira de dendê. Essa planta é originária das florestas tropicais africanas, mas tem características típicas de palmáceas amazônicas como o inajá e o açaí. A empresa – que pertence ao banqueiro Aloysio Faria, dono do Banco Alfa – instalou-se na região no início da década de 80 e hoje é a maior produtora de óleo de dendê da América Latina. A gordura bruta é extraída em cinco usinas instaladas na própria área de plantação. De lá, é transportada numa balsa pelo Rio Pará até Belém, onde é processada em uma refinaria. O óleo de dendê é usado, basicamente, nas indústrias alimentícias e de cosméticos. Os ácidos graxos que restam após o refinamento são utilizados para fabricar biodiesel. Hoje, metade do óleo de dendê consumido no Brasil é importada. A Agropalma faturou 650 milhões de reais no ano passado e já investiu quase o mesmo valor em todo o empreendimento.

Cerca de 40% da área de 106 000 hectares que a Agropalma tem na região amazônica é voltada para o cultivo de dendezeiros. Desde 2000, as novas plantações ocorrem somente em áreas já desmatadas. Apenas na colheita e no processamento primário do dendê são criados 3 500 empregos diretos. A refinaria e a usina de biodiesel abrem outros 500 empregos. A empresa desenvolve ainda parcerias com dezenas de famílias da região que antes viviam da extração ilegal de madeira e hoje se dedicam ao cultivo de dendezeiros. Os pequenos agricultores recebem assistência técnica e têm mercado assegurado para sua produção. Muitas famílias tiveram a renda média mensal aumentada em dez vezes.

2 O minério que cria empregos

Passo à frente
Fábrica de alumínio da Albras: processar a bauxita produz mais riquezas
do que vendê-la in natura

Quase toda a produção mineral da Amazônia é exportada de forma in natura, ou seja, sem nenhum processamento industrial. A industrialização do minério é um modo de criar alternativas de emprego e renda para pessoas que vivem do desmatamento da floresta nos arredores das jazidas. Um exemplo nessa linha ocorre em Barcarena, no Pará, onde a Alunorte e a Albras transformam parte da bauxita produzida no estado em alumínio. O processamento do minério é responsável por 6 000 empregos diretos – o dobro do que é criado na etapa de extração. Não estão incluídos nessa conta os 20 000 postos de trabalho indiretos formados por fornecedores e prestadores de serviço que atuam ao longo do processo de produção. As duas indústrias injetam anualmente cerca de 1 bilhão de reais na economia paraense com a compra de insumos, o pagamento de salários e o recolhimento de impostos. A agregação de valor da bauxita também resulta em mais divisas para o país. O alumínio exportado pela Albras é vendido em média por 2 600 dólares a tonelada – valor 75 vezes superior ao preço de exportação da tonelada de bauxita bruta.

A redenção do Projeto Jari

O desmatamento caiu
Serraria da fábrica de celulose do Grupo Orsa: manejo florestal
com auditoria alemã

A lendária fábrica flutuante de celulose que o magnata Daniel Ludwig instalou nas margens do Rio Jari, na década de 60, finalmente se transformou num exemplo de empreendimento sustentável no meio da floresta. O Grupo Orsa, que atualmente está no comando da indústria, investiu 200 milhões de dólares em sua modernização tecnológica e ambiental. Foram implantados filtros para redução de poluentes e equipamentos que proporcionam reutilização da água. A companhia desenvolve também um projeto de manejo florestal numa área de mata nativa e se submete a auditorias periódicas comandadas pela ONG alemã Forest Stewardship Council (FSC). Juntos, os empreendimentos criaram 3 500 empregos diretos e são responsáveis por cerca de 80% da movimentação econômica de uma região habitada por mais de 100 000 pessoas. A companhia desenvolve programas de geração de renda para pequenos agricultores que moram em comunidades localizadas na ampla área que está sob sua administração. Depois da implantação desses projetos, o desmatamento ilegal foi reduzido drasticamente na região. "Os moradores transformaram-se em guardiães da floresta", entusiasma-se Sergio Amoroso, presidente do Grupo Orsa.

http://veja.abril.com.br

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