A Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta,
mas apenas 10% dela é conhecida pela ciência.
A falta de pesquisas e as leis contra a biopirataria
impedem que o Brasil aproveite o potencial
de uso da flora e dos microrganismos na medicina
e na indústria
Leandro Beguoci, de Manaus
Araquem Alcântara |
Rainha da floresta |
Em poucos quilômetros quadrados da Floresta Amazônica há mais espécies de plantas do que em toda a Europa. Há mais espécies de animais do que na América Central. Uma única árvore pode servir de lar a 1 700 tipos de invertebrados, que vão de formigas a aranhas, de abelhas a besouros. A Amazônia é a região de maior biodiversidade do mundo – mas nós, brasileiros, só temos uma pálida ideia dessa exuberância viva. Calcula-se que apenas 10% de todas as formas de vida que a Floresta Amazônica abriga já tenham sido estudadas e catalogadas. Essa falta de conhecimento científico sobre o bioma é uma das fragilidades amazônicas. O desconhecimento representa um obstáculo para a produção de riqueza a partir da floresta em pé. É impossível agregar valor ao que não se conhece. Estima-se que a flora, a fauna, as bactérias, os fungos e outros microrganismos da floresta guardem um enorme potencial para a produção de remédios e alimentos e para vários setores da indústria. A riqueza escondida, porém, não vale nada. É preciso mãos e cérebros para descobri-la – e é justamente isso que falta de forma crônica à Amazônia.
O câmpus da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto tem mais pesquisadores do que todo o estado do Amazonas. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem mais que o dobro do número de pesquisadores do Pará, o estado líder na região em matéria de cientistas qualificados. A Universidade de São Paulo tem o triplo de doutores de toda a Amazônia. A região é cenário de 18% das pesquisas em biodiversidade no Brasil, contra 36% da Mata Atlântica, embora essa última represente 2% da Amazônia. A falta de pesquisadores é agravada pela baixa qualidade dos cursos de formação de cientistas. Nenhum curso de mestrado ou doutorado de universidades amazônicas alcança a nota máxima, 7, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), instituição ligada ao Ministério da Educação. A maior parte leva 3, a nota mínima para não fechar as portas.
Um prédio erguido em meio às indústrias da Zona Franca de Manaus serve de símbolo do quadro desolador da pesquisa científica na Região Norte. A construção abriga o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), inaugurado em 2002 e dotado de 25 laboratórios para explorar o potencial da floresta. Há bons motivos para criar um centro de excelência em biotecnologia na Amazônia. O Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, estima que 25% de todas as substâncias usadas para tratamento de tumores no mundo, hoje, venham de florestas tropicais. Só que o CBA virou um elefante branco – ou, como zombam os amazonenses, uma anta branca. O centro já consumiu 67 milhões de reais e ainda não produziu resultado algum.
Após a inauguração do CBA, sua administração foi entregue provisoriamente à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). Desde então, os seis ministérios responsáveis pelo projeto se perdem em discussões burocráticas tentando definir qual deve ser seu modelo de gestão. A primeira opção seria uma empresa pública só de pesquisas, com fins lucrativos, nos moldes da Embrapa. A segunda, um instituto de pesquisa combinado a uma instituição de ensino superior, como o Inpa, com objetivos puramente científicos. Para a Suframa, o CBA é uma batata quente. O órgão não sabe o que fazer dele nem tem autonomia para decidir seus rumos. "O Brasil precisa aprender a transformar pesquisa em dinheiro e o CBA pode fazer isso, mas não é a vocação da Suframa comandar um instituto de biotecnologia", diz o economista Elilde Mota de Menezes, da Suframa. Enquanto isso, semiparalisado, o CBA se limita a fazer análises químicas para instituições de pesquisa e empresas particulares, subutilizando seus aparelhos modernos, avaliados em 20 milhões de reais. Um dos últimos trabalhos do órgão, acredite-se, foi avaliar a resistência ao clima de uma marca de bombons fabricados em Manaus.
Para tirar a Amazônia do limbo científico, é preciso também acabar com um mito tão arraigado quanto o do boto-cor-de-rosa – o mito da biopirataria. Segundo ele, ardilosos cientistas estrangeiros entram na floresta e roubam do país plantas, animais e microrganismos valiosos para a indústria farmacêutica, sem dar satisfação ao país. A partir de 2001, para se precaver contra a suposta biopirataria, um cipoal de decretos e normas burocratizou a produção científica e pôs uma série de obstáculos às pesquisas. "O mesmo governo que financia o pesquisador, com bolsas, desconfia dele e o trata como biopirata em potencial", desabafa o paulista Thomas Lewinsohn, professor da Unicamp e um dos maiores especialistas brasileiros em mapeamento da biodiversidade. Para coletar plantas da floresta legalmente, um pesquisador, brasileiro ou estrangeiro, precisa de uma licença do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), uma autarquia ligada ao Ministério do Meio Ambiente. Para transportar as plantas que encontrar pelo caminho ao laboratório, ele necessita de uma segunda licença do mesmo órgão. A licença pode demorar dois meses para sair. Caso o cientista deseje estudar os usos potenciais da planta que coletou, terá de pedir uma terceira licença a outro órgão, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), formado por representantes de dezenove entidades – entre elas a Fundação Cultural Palmares e a Fundação Nacional do Índio. E quanto tempo demora essa licença? Só o cacique sabe. Não menos do que vários meses. Existem hoje 167 processos desse tipo parados no Cgen. Não é à toa que muitos cientistas desistem no meio do caminho, como o químico Lauro Barata, da Unicamp. "É impossível lidar com a burocracia federal na área de pesquisa", afirma. "Um único parágrafo das leis te enlouquece."
Fotos Cristiano Mariz |
Pesquisa que vira dinheiro |
O resultado da caça às bruxas da biopirataria é a debandada de pesquisadores estrangeiros do país. O Inpa, tradicional parceiro de organismos internacionais, firmou apenas dois acordos de pesquisa entre 2002 e 2007. A retomada só aconteceu em 2008, quando foram firmados seis acordos de cooperação com órgãos de outros países. Diz Ima Vieira, ex-diretora do Museu Paraense Emílio Goeldi: "Os pesquisadores estrangeiros sérios, que estudam biodiversidade, foram embora. Cientista que vem ao país amparado por instituições respeitadas não é biopirata. É mais fácil um turista levar algo ilegalmente da floresta do que um pesquisador". Muitos estrangeiros migraram para a Amazônia peruana ou para a Guiana Francesa, onde o cientista é tratado como parceiro, não como ameaça.
Boa parte do conhecimento que se tem sobre a Amazônia se deve aos estrangeiros. Um dos principais livros sobre a flora da região (e do Brasil) foi escrito no século XIX pelo botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, em que são descritas 22 700 espécies de plantas. A maior coleção de plantas amazônicas está no Jardim Botânico de Nova York. Para saber se uma espécie é nova ou não, é útil recorrer aos americanos. Os dois projetos de mapeamento de biodiversidade da Amazônia mais importantes, hoje, têm participação de cientistas e organizações de outros países. A ONG americana Conservação Internacional é a principal patrocinadora de um estudo que visa a mapear a biodiversidade nas áreas tropicais do mundo. Seu projeto de longo prazo é saber como as mudanças no clima do planeta afetam as espécies. Outro projeto é o Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, que pretende descobrir, enfim, quantas espécies existem na Amazônia e como elas se distribuem. Um de seus idealizadores é o biólogo australiano William Ernest Magnusson, de 57 anos, trinta dos quais atuando na Amazônia. "Nosso papel é dizer para o governo onde ele deve construir uma estrada e onde será mais vantajoso preservar a selva porque existem riquezas potenciais por ali", explica Magnusson. Conhecer o bioma amazônico a fundo é um passo importante para preservar a floresta.
Vida de cientista |
O governo incomoda mais que o mosquito O entomólogo americano William Overal passou 33 dos seus 62 anos como funcionário do Museu Paraense Emílio Goeldi tentando entender por que a Amazônia tem a maior biodiversidade do mundo. Isso significa compreender por que há tantas espécies de abelhas, borboletas e formigas em trechos pequenos de mata e o que influencia sua distribuição. Seus artigos foram publicados nas principais revistas científicas do mundo. Em seu escritório repleto de animais invertebrados de cores e formas variadas, coletados em expedições que lhe custaram cinco malárias, Overal só perde a paciência quando comenta o tamanho da burocracia para fazer pesquisa no Brasil. "O governo precisa encontrar uma vocação melhor do que atormentar pesquisadores", diz ele. "Se o governo usar o que nós sabemos, em vez de criar empecilhos para a pesquisa, ainda dá tempo de salvar a floresta." |
O multiplicador de espécies
O financiamento internacional para seu trabalho secou porque os investidores estrangeiros tiveram medo de ser criminalizados. "Há um vazio de vinte anos de pesquisas básicas sobre a flora", diz Hopkins. |
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