sábado, 6 de junho de 2009

A ameaça norte-coreana e as relações interamericanas: o que a história tem para nos dizer?


Danilo José Dalio
O governo da Coréia do Norte, sob o comando do líder Kim Jong-il, tem ocupado lugar de destaque nos noticiários mundiais das últimas semanas. Não bastasse o lançamento de um foguete, supostamente transportando um satélite, no dia 5 de abril de 2009, o regime comunista norte-coreano confirmou no dia 25 de maio de 2009 ter realizado uma explosão nuclear subterrânea como parte do desenvolvimento de seu programa nuclear. As reações de condenação a essas iniciativas foram imediatas em toda comunidade internacional. A questão é preocupante tanto para a delicada geopolítica asiática (inclusive relançando o debate sobre um possível rearmamento do Japão), como também para a configuração do poder mundial, envolvendo disputas e alianças de outras nações, como Estados Unidos, Rússia e China.

Esta postura do governo de Pyongyang não é, aliás, uma novidade. Em 2006, o ditador Kim Jong-il autorizou um teste secreto de sua primeira bomba nuclear, o que redundou em sanções econômicas à Coréia do Norte pelo Conselho de Segurança da ONU, além da determinação do encerramento das atividades nucleares no país e da proibição do comércio de armas bélicas e de destruição em massa. Acredita-se, por conseguinte, que as recentes violações de resoluções consagradas pelo Conselho de Segurança da ONU têm o propósito de pressionar por um abrandamento das sanções econômicas a que se submete o país asiático.

Mas que desdobramento esses fatos recentes poderiam ter sobre a política interamericana? Que nação no continente, além dos Estados Unidos, pode ser afetada pelos acontecimentos asiáticos? Vale a pena recuperarmos a história.

No início da Guerra Fria, as disputas por áreas de influência entre Estados Unidos e União Soviética mostraram sua face mais agressiva na península coreana entre os anos de 1950 e 1953. Quando foi proclamada a República Popular Democrática da Coréia, em setembro de 1948, pelos revolucionários comunistas, os Estados Unidos desembarcaram suas tropas na ilha e estabeleceram um governo ao sul sob a direção do nacionalista pró-americano Syngman Rhee, dividindo a Coréia em norte e sul. Ainda em 1948, as revoltas antiamericanas no sul e assassinatos de líderes pró-unificação voltaram a acirrar as tensões no país. O envio de tropas norte-americanas para Formosa e Coréia, sob comando do General Mac Arthur, e a invasão ao sul do paralelo 38 pelos norte-coreanos, em junho de 1950, deram início ao conflito. A ausência soviética na Coréia e as manobras norte-americanas permitiram ao Conselho de Segurança da ONU, capitaneado pelos Estados Unidos, enviar tropas multinacionais para a Coréia, sob o comando de oficiais americanos.

No início de outubro de 1950, o general Mac Arthur impôs vitória militar aos norte-coreanos, retornando-os aquém do paralelo 38 e afirmando a continuidade da luta até as fronteiras da China. O líder chinês, Mao Tsé-Tung, no entanto, advertiu aos Estados Unidos que não toleraria a destruição da Coréia do Norte. Em novembro aviões soviéticos sobrevoaram e bombardearam a Coréia. Ao mesmo tempo, tropas chinesas entraram no território coreano e impuseram vitória às tropas norte-americanas. Mac Arthur reagiu por meio da operação “Killer”, lançando bombas de napalm e ameaçando a China com o uso de bombas atômicas. Depois de certo equilíbrio militar definido no final de 1951, o governo Truman concertou um acordo de acomodação em torno do paralelo 38. A Coréia, um dos palcos de confronto direto da Guerra Fria, ficou sob escombros. Apesar de concentrar-se exclusivamente na Ásia, o conflito coreano no alvorecer da Guerra Fria reverberou por todo continente americano, de forma que o questionamento de princípios como segurança e estabilidade – fundamentais à manutenção de equilíbrio bipolar – lançassem os olhares vigilantes dos Estados Unidos sobre a região a qual acreditavam estar sob seus inabaláveis auspícios.

Em virtude do acirramento das tensões da bipolaridade, os países latino-americanos foram convocados a contribuir fosse com o fornecimento de matérias-primas ou com o envio de tropas militares para o conflito coreano. Para tanto, e também com o intuito de legitimar sua política de segurança sobre o próprio continente, os Estados Unidos no início de 1951 pleitearam a realização da IV Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, oportunidade em que a delegação diplomática brasileira capitaneou em uníssono as demandas econômico-financeiras dos países latino-americanos contra as pretensões meramente militaristas do governo de Washington. Diante da dissensão de perspectivas e posturas entre os Estados Unidos e as nações ao sul do Rio Grande, a delegação norte-americana adotou a estratégia de negociar bilateralmente com as principais economias do continente, em troca da aprovação multilateral das resoluções de segurança militar que lhes interessavam. A Colômbia, contudo, foi o único país do continente a enviar um batalhão para a península asiática.

Naquela oportunidade, o governo brasileiro sob Getúlio Vargas negociou a formação da Comissão Mista Brasil – EUA para o Desenvolvimento Econômico, com perspectivas de financiamento de projetos em infra-estrutura na ordem 300 milhões de dólares, e do Acordo Militar Brasil-EUA, que previa o auxílio técnico-militar norte-americano em retribuição às exportações de matérias-primas brasileiras. Ao contrário da cooperação econômica, encerrada em dezembro de 1953 e sem cumprir as expectativas que o governo varguista esperava, o acordo de colaboração militar perduraria até 1977 quando foi denunciado pelo governo militar de Ernesto Geisel, a fim de dar ênfase à produção nacional de armamentos.

Passados mais de 50 anos, a recente ameaça norte-coreana renova as velhas expectativas que de fato nunca foram definitivamente solucionadas, pois desde a divisão da península coreana em dois países, as duas Coréias encontram-se tecnicamente em guerra, já que nenhum tratado de paz foi assinado após o conflito ocorrido entre 1950 e 1953. Em que pese os distintos contextos político e econômico internacionais e domésticos, algumas observações, em comparação, são relevantes.

Se nos anos de 1950 as distâncias geográficas, culturais e históricas e as limitações econômico-financeiras motivaram as resistências latino-americanas aos apelos colaboracionistas norte-americanos, hoje – mais de 50 anos depois – as oportunidades e as perspectivas são bem diferentes. As “distâncias” que outrora desestimularam a América Latina são atualmente muito menores diante das novas tecnologias e da mundialização financeira. A interdependência econômica e comercial e o destacado papel que os chamados “países emergentes” cumprem na agenda econômica e política deste início de século XXI tornam a atual conjuntura um campo de possibilidades que independem de uma convocação de alguma conferência internacional por qualquer potência hegemônica. Nessas condições é preciso estar atento às oportunidades que imprevistos de qualquer natureza em alguma parte do mundo podem criar.

Sem receio de parecer anacrônico, concluo com as observações do Conselheiro Econômico da Delegação Brasileira a IV Reunião de Consulta, San Tiago Dantas, pela sua surpreendente atualidade. Dantas acreditava que o Brasil, a menos que pretendesse renunciar ao seu crescente prestígio internacional, não deveria alhear-se completamente do esforço de mobilização que o conflito coreano implicava. Entendia, contudo, que esta questão deveria ser tratada com cautela, evitando qualquer sacrifício desnecessário ou antecipado e garantindo compensações adequadas, sem ferir a opinião pública do país. Antevia, por outro lado, a possibilidade de expansão das tarefas diplomática do Brasil na Ásia, que pudessem projetar a cooperação política naquela região e, ao mesmo tempo, esclarecer o que se passava no Oriente. Em suas palavras: “Mas porque não falar, primeiro, em diplomatas para a Coréia? Se corrermos o risco de que alguém um dia solicite a presença de nossos soldados em algum lugar, temos de começar por mandar observadores a êsse lugar. (…) porque assim se inicia a saturação da opinião pública, em relação a um problema que ela hoje considera mais remoto do que é” (GV 51.04.00/1, carta de San Tiago Dantas a Sá Freire Alvim – GV. Arquivo Getúlio Vargas. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) / Fundação Getúlio Vargas – FGV).

Danilo José Dalio é Mestrando em Ciência Política, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (djdalio@bol.com.br).

Boletim Meridiano 47

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