terça-feira, 2 de junho de 2009

O ódio aos valores dos ocidentais

Charges de Maomé e discurso do
papa ganham proporções absurdas


CONTRA OS EUROPEUS: protesto diante de embaixada dinamarquesa

Os debates entre o Ocidente e o mundo islâmico são muitos - políticos, religiosos, culturais. O caso, no entanto, parece não se restringir a uma saudável discussão de idéias. As reações à citação feita pelo papa Bento XVI em 2006 e às charges de Maomé publicadas por jornais dinamarqueses em 2005 demonstraram que os muçulmanos, mais do que ter pontos de vista diversos dos da civilização ocidental, odeiam-na. Um ódio que se mantém velado em parte do tempo, mas que, ao emergir, revela-se profundo e perigoso. Os rompantes de fúria costumam ser desproporcionais aos motivos que os originam. Acontecimentos banais tomam proporções absurdas. A intolerância, é claro, também existe do Ocidente em relação aos islâmicos. No entanto, valores como liberdade, tolerância e direitos humanos, praticados pelos ocidentais, ajudam-nos a evitar que discórdia se transforme em violência. A Igreja Católica, ao incorporar esses valores, pôs fim à guerra santa cristã. A jihad, no entanto, continua derramando sangue.

No episódio da fala do papa, que citou Manuel II Paleólogo, imperador bizantino do século XIV ("Mostre-me o que Maomé trouxe de novo e encontraremos apenas coisas más e desumanas, como a ordem para espalhar pela espada a fé que ele pregava"), um pedido de retratação da parte dos muçulmanos seria razoável. O papa o fez. Não foi suficiente. O mundo islâmico alargou a extremos o sentimento de ofensa e, antes mesmo que o texto fosse traduzido para o árabe ou outra língua acessível à maioria da população muçulmana, multidões enfurecidas atiçadas pelos clérigos belicosos tomaram as ruas no Paquistão, na Indonésia e em quase todo o Oriente Médio. Na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, palestinos atacaram sete igrejas cristãs com coquetéis molotov. Na Somália, uma freira foi morta a tiros dias depois de o xeque Abubakar Hassan Malin, a principal autoridade religiosa do país, orientar os fiéis a matar cristãos em represália.

Das charges ao terror - O outro caso exemplar originou-se na Dinamarca. As primeiras reações à publicação de doze charges, dez delas com caricaturas do profeta Maomé, no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, foram uma manifestação pacífica de muçulmanos nas ruas de Copenhague e um abaixo-assinado produzido por organizações da comunidade islâmica no país. Entregue no gabinete do primeiro-ministro da Dinamarca, o documento pedia a punição do jornal. Não foi atendido. Pouco tempo depois, os desenhos publicados no pequeno jornal de um país igualmente pequeno tonaram-se o estopim de uma crise global.

Isso porque líderes de países muçulmanos e clérigos extremistas deliberadamente aproveitaram a indignação dos fiéis com as charges para promover um surto de ataques ao Ocidente e à democracia. Nações de maioria islâmica chegaram a boicotar os produtos dinamarqueses e a chamar de volta os embaixadores em Copenhague. O Irã foi ainda mais longe e suspendeu qualquer relacionamento comercial com a Dinamarca - um gesto simbólico, pois o comércio era mínimo. Houve ainda protestos nas ruas, ataques a embaixadas e aparições de líderes da Al Qaeda na televisão ameaçando novos atentados.

Vida pública e privada - Reações histéricas como essas demonstram o fosso de valores, idéias e hábitos entre o mundo islâmico e o Ocidente. Desde a Guerra Fria não se via com tanta clareza a existência de dois mundos crescentemente hostis e que, rapidamente, esquecem o muito que têm em comum exacerbando o pouco, mas fundamental, que os separa. É um sinal dos tempos - e também um paradoxo. O abismo se torna mais intransponível exatamente num mundo interligado por comunicações instantâneas e pela intensificação do comércio global.

Como o diálogo se tornou impossível ainda é uma questão sem resposta precisa. O que se pode dizer é que parte da incompatibilidade do mundo muçulmano com o Ocidente moderno se explica pela noção de que no Islã político não deve haver separação entre vida pública e vida privada, entre religião e política. O diálogo fica difícil com quem se recusa a aceitar que as escolhas humanas possam estar acima das leis que considera emanadas por seu deus.

Revista Veja

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