domingo, 26 de abril de 2009

Agitações na Ordem sob a Conjuntura da Crise Financeira Internacional


Artur Andrade da Silva Machado
A conjuntura internacional que se estabelece na passagem entre 2008 e 2009 teve sua dinâmica conformada por transformações que entram em fricção com os ordenamentos sistêmicos para os campos econômico e securitário. O que há de diferente na conjuntura, portanto, não é o surgimento de novas forças para sua composição, mas sim a absorção de mudanças nas tendências encontradas em conhecidos componentes estruturantes da Ordem internacional. Tal leitura é subsidiária da arquitetura de cenários que prescrevem demandas multilaterais e multifacetadas de mudança para uma Ordem internacional mais justa.
As peças, princípios e atores envolvidos com a estabilização de ambos os campos securitário e econômico formatam aspecto central para o delineamento das características da ordem vigente no sistema internacional. Para a epistemologia vinculada ao estudo do posicionamento de tais fatores, o sistema internacional fornece ótimo objeto de análise de movimentos históricos cíclicos. Para os mais materialistas, o ordenamento sistêmico resulta de interesses de Estados hegemônicos que evocam a responsabilidade pela pacificação do meio internacional, pela organização social, pela imposição de regras e pelo provimento de bens públicos, do qual é exemplo a própria economia internacional. Mudanças na estrutura de tal ordenamento seriam, portanto, um epifenômeno de mudanças mais elementares na estrutura de poder do sistema, fruto da configuração de um movimento deliberado de outros atores revisionistas em relação à velha ordem.
Para uma vertente mais ideacional, a ordem atual está vinculada mais especificamente à experiência de nosso próprio período histórico. Em outras palavras, os padrões de ordenamento sistêmico rebuscam também valores mais estruturais de uma Ordem vestifaliana enraizada na Idade Moderna e cuja narrativa vincula-se ao processo da modernização originalmente ocidental. Quando essa modernização histórica se torna tanto um valor quanto um objetivo transportado para o ordenamento social, passa-se a raciocinar em termos de uma modernidade teleológica. A modernidade difere da modernização porque esta é um processo e aquela é ao mesmo tempo um valor e uma meta. É a modernidade, e não a modernização, que centraliza e legitima os valores do discurso ocidental, constituintes dos vários padrões de ordenamento sistêmico desde o nascimento dos Estados nacionais.
Independentemente de que tipo de relação se estabelece entre estruturas materialistas de poder e a configuração do ordenamento sistêmico, sabe-se que de fato existem determinadas funções e serviços que devem ser prestados, bem como certas peças que devem ser arranjadas para a manutenção de tal ordenamento. Em outras palavras, para que entidades políticas autônomas se relacionem de maneira estável é necessário negociar padrões de conduta largamente aceitáveis para reger seu comportamento; para que haja trocas comerciais, exige-se uma mínima garantia de pagamento, preferencialmente em unidades de valor universalmente conversível; e para que haja a disposição para cooperar em tais níveis, é imperial que primeiro se construa confiança no meio e que sejam mitigados os vetores de conflito.
Além disso, muito embora a modernidade não defina diretamente nenhuma existência material, seu valor legitimador é constantemente evocado pelos atores no meio internacional. A capacidade legitimadora da modernidade está assentada nas idéias de progresso e de estabilidade, sendo que esta é catalisadora de e subordinada àquele. O progresso, pode-se dizer, tem duas cabeças: uma material e econômica; outra, promotora de convergência normativa - guiada por valores ocidentais como liberdade, democracia e direitos humanos. A estabilidade é a busca pela redução de tensões destrutivas da Ordem.
Tendo em vista as características e necessidades da Ordem internacional, a conjuntura atual é interessante porque propicia tendências de desmantelamento de aspectos basilares para o ordenamento sistêmico em vigor. A decantação da crise financeira para a economia real, concebida tanto internacional como domesticamente, demonstra, por um lado, a instabilidade cíclica inerente ao progresso promovido pelas forças do livre-mercado e, por outro, a incapacidade dos governos e das instituições internacionais vigentes em lidar com esse tipo de situação. Parelho, o maior espaço atribuído a questões de segurança, bem como simultâneos vetores de rearmamento e tensão colocam em cheque a crença na estabilidade do sistema, que até então mantém uma estrutura unipolar somente em um primeiro plano.
Analisando os desenvolvimentos das conformações econômicas que fundamentam a crença no progresso, a conjuntura atual é crítica. A crise econômica vigente apresenta cifras piores que as da crise de 1973. O crescimento esperado para a economia mundial em 2009, segundo a última atualização das previsões do FMI, é de 0,5% - o mais baixo desde 1945. Os EUA, o Reino Unido e a Zona do Euro, já anunciaram recessão; a China e demais emergentes que mantinham ritmo acelerado de crescimento passam por expressiva contração; os países dependentes da renda da exportação de petróleo certamente terão problemas orçamentários; e a OIT recentemente divulgou que é esperado o surgimento de mais 51 milhões de desempregados para este ano.
O quadro é ainda acompanhado pela incapacidade de ação a partir das alternativas institucionais em todos os planos. Afora os diversos pacotes dos governos nacionais e as reduções nas taxas de juros dos bancos centrais, a comunidade internacional já exauriu as possibilidades de sua vasta gama institucional (União Européia, G-7, OCDE, OPEP, FMI, G-20) com o debate sobre as alternativas para solucionar a crise. Entre todos os esforços, o único que merece atenção é o compromisso firmado na reunião do G-20 em Londres de inundar a economia com um pacote que pode chegar a US$5 trilhões até 2010.
Outro patente apontamento para o diagnóstico levantado é a deterioração da capacidade da economia norteamericana para autorrecuperação. Os EUA abrigam 5% da força de trabalho do mundo, que responde por 20% da produção e 22% do endividamento externo. Vinte anos atrás, em 1989, a América Latina completava uma década com crescimento próximo de 1% ao ano, por consequência de crises de endividamento amalgamadas pelas moratórias de México, Brasil e Argentina. No ápice da crise, a relação entre dívida externa e PIB da região era de 57%. Atualmente, depois de uma sequência de anos administrando gigantesco déficit no Balanço de Pagamentos (que tende a aumentar com a crise), a dívida externa norteamericana representa quase 90% do PIB nacional.
Apesar da amenização das consequências negativas devido ao bom influxo de investimentos diretos no país, a situação das contas externas dos EUA está assentada em números igualmente preocupantes para o orçamento interno. Depois do último pacote de financiamento monstro do governo norteamericano, a dívida pública subiu para mais de US$ 11 trilhões. Isso significa dizer que se US$ 11 trilhões caíssem dos céus nas ruas de Washington, o governo norteamericano poderia escolher entre comprar todos os produtos que os outros países do mundo colocam no mercado global ou pagar o que foi emprestado de seus próprios nacionais.
Em uma perspectiva temporal mais extensa, revelam-se ainda preocupações com a sustentabilidade do progresso econômico, em grande medida dependente de exploração excessiva dos recursos planetários. De 1945 até os dias de hoje, a população mundial duplicou enquanto o comércio internacional foi multiplicado por 100. Projeções internacionais indicam que para sustentar a população planetária com o padrão de consumo dos EUA, seriam necessários mais de 5 planetas.
Rebuscando os desenvolvimentos no campo da segurança, a conjuntura atual novamente lança pressões contrárias a valores de estabilidade e progresso, centrais para a Ordem internacional.
Apesar da manutenção da unipolaridade no primeiro plano da estrutura de poder internacional, a estabilidade internacional convive com sinalizações de expansão armamentista e focos de tensão que estão presentes em diversos flancos do sistema internacional. Na Europa, a Rússia anuncia a decisão de aumentar seu orçamento militar em pleno contexto de crise; no Leste da Ásia, a China ultrapassou os gastos militares japoneses no final do ano passado e a região continua susceptível a tensionamento causado pelas idas e vindas do dilema do arsenal nuclear norte-coreano; no Sul da Ásia, a relação entre Índia e Paquistão, ambos os países munidos de armas nucleares, mantém a cultura de lançamentos balísticos e permanece vulnerável a crises causadas por acontecimentos infra-nacionais sobre os quais os governos não têm controle; e no Oriente Médio, Israel continua alimentando inimizades com outros atores regionais e demonstra que não tem pudor em violar o Direito Internacional na proteção de seus interesses.
No campo motivacional figuram severas considerações contrárias à marcha de uniformização normativa da Ordem sistêmica. A desconsideração da ausência de aprovação pelo Conselho de Segurança para justificar intervenções internacionais nos Bálcãs, desde aquela com caráter humanitário na Bósnia até o reconhecimento da independência de Kosovo, bem como a expansão institucional da Europa Ocidental para o leste são fatores frequentemente apontados como originários dos movimentos de retaliação russos a iniciativas unilaterais do Ocidente. A enorme reincidência de crises humanitárias na África e Ásia, embora não possa ser atribuída a nenhum fator específico, demonstra que a instalação institucional da democracia onde não há estabilidade e tampouco cultura democrática é falha desde o ponto de vista da geração de progresso e, nesse ponto, os EUA ainda têm de administrar o caso emblemático do Afeganistão. Por último, é também muito difícil de acreditar que emergentes como Índia e China ficariam satisfeitos com tentativas de exportar unilateralmente ou de enrijecer o código de direitos humanos acordado multilateralmente.
Toda essa agitação nos campos econômico e securitário leva a crer que o tempo da Ordem internacional ocidental, por vezes alardeada como hegemonia das democracias de mercado, está em xeque. Para os materialistas, não há clareza na estrutura de poder para apontar qualquer cenário mais provável. Para os partidários da finitude dos tempos, no entanto, não é o caso de imaginar demais. Uma vez que “não há” complexo ideacional concorrente ao que formata atualmente a Ordem, o mais racional é esperar que, passada a conjuntura crítica, tudo volte ao habitual. De preferência, aliás, que tudo se arrume já para 2010, quando o FMI prevê retomada do crescimento da economia mundial para níveis razoáveis.
Mas as coisas raramente são tão imediatas assim. A crise econômica atual questiona a crença no progresso de maneira comparável somente ao período do entre-guerras. O principal ator de quem se espera responsabilidade de ação diante da conjuntura não está apto a realizar manobras bruscas, sob pena de despencar em um abismo. Em realidade, dessa vez os EUA estão mais para vítimas que para heróis e o time composto por Obama para lidar com a crise está desfalcado pela metade, em grande parte devido a denúncias de sonegação de impostos. Os desenvolvimentos no campo securitário refletem não somente focos de tensão que podem escalar de modo a fazer esboroar o resto de estabilidade da Ordem, mas também questionamentos de fundo vis-à-vis valores do ordenamento atribuídos à experiência ocidental.
A verdade é que, como costuma ser a regra para as questões em RI, não se sabe que espécie de configuração pode emergir do contexto atual. A conjuntura, ao mesmo passo que fornece questionamentos sobre as bases do ordenamento sistêmico, abre espaço para considerações de Justiça. O que se observa, inclusive, é que nenhum Estado parece forte ou disposto o suficiente para enfrentar a conjuntura sozinho, mas todos eles parecem ter esperanças de que algo vai surgir (do G-20, dos emergentes ou de algum outro lugar) para suprir a incapacidade generalizada.
Tal leitura só permite apostar, contrariamente às teses de estabilidade hegemônica ou de imperialismo, na ascensão de uma Ordem internacional mais multilateral. Interessante exercício de análise que se impõe é procurar, nos desenvolvimentos da conjuntura atual, paralelos históricos que vão além da tradicional comparação entre o desastre da guerra dos Bôeres para o império britânico e o engajamento dos EUA no Iraque ou no Afeganistão. Deve-se rebuscar, ousa-se dizer, a complexa articulação entre os seletos pólos que se destacaram na multidão de participantes do Congresso de Viena, duzentos anos atrás.

Artur Andrade da Silva Machado é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (andradesmachado@gmail.com).

Meriano 47

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