sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A história do aborto no Brasil e no mundo





Por Erica Yazigi Roumieh

Aborto no Brasil e no mundo. Imagem: R. Parrado.

A prática do aborto já é antiga, datando ao começo da humanidade, porém sua história é, muitas vezes, confusa e conturbada. Parte dela foi registrada e estudada, com alguns poucos documentos poupados de modo que hoje podemos desenhar uma linha do tempo para entender como a humanidade tratou o aborto desde o início para entender as circunstâncias dos dias de hoje.

Neste texto, a Politize! disseca os momentos mais importantes da história do aborto no mundo e no Brasil, explicando o contexto histórico e as dificuldades de cada um deles.

A história do aborto e seu começo na Antiguidade

Na Antiguidade, a função de abortista funcionava assim como a de parteira, e muitas vezes era exercida pela mesma pessoa. Apesar do ato ter sido comum na época, é difícil encontrar registros disso, já que foi proibido por diversos grupos em diversas épocas que tinham o interesse em desaparecer com registros de uma prática que eles rejeitavam.

A historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), disse em uma entrevista à BBC News que há relatos de mulheres “que praticavam abortos tanto para prostitutas como para outras mulheres que engravidavam fora do casamento”.

Esses abortos aconteciam de forma natural, com ervas e outros frutos naturais que facilitavam o procedimento e não causavam danos permanentes às mulheres. Estas ervas e frutos eram estudados e utilizados a partir de conhecimentos ancestrais.

Rosin ressalta, por exemplo, que entre os indígenas pré-colombianos “não havia nenhuma restrição ao aborto”, e que a prática era “uma questão resolvida entre mulheres e, mais tarde, por parteiras”.

Grécia e Roma Antiga

Nesse período, o aborto foi considerado imoral, apesar de ter uma grande utilização entre as mulheres, especialmente entre aquelas que se preocupavam extensivamente com a aparência física, o que neste período histórico possuía grande importância no meio social. Assim, o números de abortos cresceu de forma exponencial e então os legisladores passaram a considerá-lo um ato criminoso.

Como consequência foi instaurada a Lei Cornélia que punia a mulher com pena de morte se consentisse com a prática abortiva. Já em relação a quem praticasse o ato, aplicava-se a mesma sanção, porém com a possibilidade de abrandamento caso a gestante não falecesse no processo abortivo.

Ainda existia, porém, uma opção pelo aborto naquela época. Tanto na Grécia quanto na Roma antiga, o feto era considerado parte do corpo da mulher, e então parte da propriedade do homem. Desta forma, o aborto só podia ocorrer com autorização do marido.

Ao mesmo tempo, Aristóteles defendia o aborto como um método eficaz para a sociedade, com o objetivo de limitar os nascimentos e manter estáveis as populações das cidades gregas. Já Platão defendia que os abortos deveriam ser obrigatórios para mulheres com mais de 40 anos, como forma de manter a pureza da raça de guerreiros gregos.
Novo Mundo

Na América colonial, por exemplo, o aborto era visto de forma negativa, além de ser um tabu. Isso se dava ao fato de a prática ter sido incorporada por famílias de colonizadores, especialmente no caso de interrupção de gravidezes oriundas de adultérios.

A ética do aborto ligada à moral religiosa surgiu nos primórdios do cristianismo. Por influência de Tomás de Aquino, achava-se que o feto recebia a alma após 60 dias de sua geração. Assim, se feito antes dos 60 dias, o aborto não era visto como pecado. Essa ideia permaneceu até 1588.

Além disso, muitas doutrinas religiosas medievais consideravam os movimentos da criança em gestação no ventre da mãe como um parâmetro para diferenciar quando a prática do aborto deixava de ser aceitável.

O historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, disse em uma entrevista à BBC News que a “questão religiosa foi sendo construída ao longo do tempo. O mundo antigo era um mundo onde o aborto e o infanticídio eram práticas muito comuns. Isso aparece nos filósofos gregos e no mundo romano (…) O cristianismo se apresenta como uma tentativa de acolher mulheres que não queriam abortar.” Assim, a Bíblia traz em suas escrituras que deve ser punido quem praticar ou for complacente com a prática abortiva.
Século XIX

Foi no século XIX que começaram a surgir leis específicas contra o aborto, inicialmente na Inglaterra e países próximos. Em 1803 o aborto se tornou proibido na Inglaterra e podia ser punido até mesmo com a pena de morte. Lá, o aborto em caso de risco para a gestante só foi autorizado por lei a partir dos anos 1920.

A opinião social e religiosa sobre o aborto se concretizou quando, em 1869, o papa Pio IV declarou todos os abortos como assassinatos. A frase “a vida humana começa no momento da concepção” não foi criada pelo Vaticano, mas surgiu de uma campanha iniciada por médicos no século XIX e ganhou força com os católicos.

No decorrer do século XIX, no auge da revolução científica, médicos, o clero e reformadores sociais, entre outros, conseguiram aprovar leis que proibiram totalmente a prática do aborto.
Século XX

No final do século XIX e no início do século XX, surgiu na Europa, especialmente na Inglaterra e França, movimentos feministas defendendo o direito da mulher ao aborto.

A partir da década de 20, nos países escandinavos e socialistas, houve flexibilidade maior na legislação. Na Rússia, com a Revolução de 1917, o aborto deixou de ser considerado crime e essa legislação influenciou os demais países socialistas nos anos 50. A Suécia e a Dinamarca, países predominantemente protestantes, por volta de 1930, conseguiram uma lei a cerca do aborto com mais facilidade que os países católicos.

O marco mais conhecido aconteceu somente em 1967, no estado do Colorado, nos Estados Unidos, quando foi aprovada a primeira lei permissiva do aborto. Entre 1967 e 1970, cerca de metade dos estados americanos legalizaram o aborto. Porém, todos sob pedido, ou seja, o aborto só poderia acontecer se fosse legalmente concedido até um determinado estágio da gestação, geralmente em torno do primeiro trimestre.

Em 1973, um caso importante no país resultou na Suprema Corte de Justiça dos EUA obrigar todos os estados americanos a adotarem a prática do aborto a pedido durante todos os nove meses de gravidez. Neste momento, o aborto se tornou um direito constitucional da mulher nos EUA.

Isso aconteceu devido ao caso Roe versus Wade, em 1970, em que Norma McCorvey, uma garçonete de Dallas, entrou em um processo histórico para exigir seu direito a abortar uma gestação fruto de estupro. Henry Wade, promotor do Texas na época era completamente contra o aborto. O caso chegou ao Supremo Tribunal, que em janeiro de 1973 decidiu, sete votos contra dois, a favor de Norma, garantindo o aborto até a 23ª semana. Porém, o resultado do processo chegou tarde e McCorvey deu à luz a uma menina em junho de 1970, que deu em adoção.

Sob o pseudônimo com que denunciou, Jane Roe, se transformou em um símbolo da luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e é conhecida hoje como a “decisão mais controversa da história do Supremo”.

A decisão foi contestada inúmeras vezes ao passar dos anos, porém foi em 24 de junho de 2022 que ela foi derrubada. Agora, por seis votos a três, os juízes tiraram o poder de decisão do aborto da mulher e deram aos estados. Com essa decisão, estados americanos estão, aos poucos, derrubando este direito. No dia seguinte à decisão, diversas clínicas que realizavam o procedimento foram fechadas.
O aborto no Brasil:

Para entender mais sobre a questão do aborto, leia também: Aborto: entenda essa questão no Brasil e no mundo!
1940

A primeira vez em que o aborto foi tema no sistema legal foi em 1940, quando o Código Penal estabelece, oficialmente, que aborto é crime, com exceções à casos de estupro ou quando a vida da gestante está em risco.
1987

A primeira mudança nesse tema aconteceu há quase 50 anos, na mesma época em que a Nova Constituição entrou em pauta. A discussão sobre o aborto surgiu durante a Assembleia Constituinte, quando feministas debatiam a interpretação do direito ao aborto como parte do direito à saúde.

Ao mesmo tempo, a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) tentou incluir na Constituição a proteção do direito à vida desde a concepção. A decisão acabou sendo algo intermediário, resultando em um acordo das feministas de não mencionar aborto no texto constitucional nem estabelecer um marco de proteção inicial à vida.
1990 e 2000

É apenas nas décadas de 1990 e 2000 que o Brasil recebe seus primeiros serviços de aborto legal. Para efetuar um aborto, mulheres precisam recorrer à justiça com seus casos individualmente para solicitar o acesso ao aborto, porém apenas em caso de malformações fetais incompatíveis com a vida. Demandas são feitas no Congresso Nacional para expandir as hipóteses do aborto legal já previstas, mas nenhuma foi atendida.
2004

Um caso importante na história do aborto no Brasil e que resultou em um avanço na discussão, aconteceu em 2004 quando a primeira demanda individual de acesso ao aborto chegou ao Supremo Tribunal Federal para um caso de anencefalia.

Com a demora da justiça em seguir com o caso, a mulher acabou passando por um parto e o feto não sobreviveu. O caso trágico inspirou uma ação constitucional que pede que a interrupção da gestação em caso de anencefalia não seja considerado aborto.
2008

O Supremo decide que, seguindo a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) n. 3510, a pesquisa de células-tronco embrionárias não viola o direito à vida. Apesar do caso não ser sobre aborto especificamente, é importante para o tema porque a decisão estabelece uma noção gradual de proteção à vida, determinando diferenças entre distintas fases de desenvolvimento: embrião, feto e pessoas nascidas.
2012

O Supremo autoriza a interrupção da gestação para os casos de anencefalia, marcando a primeira alteração à Lei Penal do aborto desde o Código Penal de 1940. O tribunal entende que essa autorização protege os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana, à saúde e ao direito de não ser submetida a tortura.
Agosto de 2016

Foi apresentada ao Supremo a ADI n. 5581, que pede a reparação de direitos violados pela epidemia do vírus zika. Abrange desde a proteção social às famílias de crianças com deficiência derivada da síndrome congênita do zika, até a possibilidade de realização do aborto por mulheres infectadas por zika e em sofrimento mental pelas consequências da epidemia. Diferente da ação de anencefalia, o pedido de aborto nesta ação não se vincula ao diagnóstico fetal. A ADI se mantém em aberto até o momento desta publicação.
Outubro de 2016

No julgamento do Recurso Especial n. 1.467.888 de Goiás, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) afirmou que a decisão de autorizar o aborto nos casos de anencefalia se aplicava também a outras malformações incompatíveis com a vida.

Isso porque o tribunal condenou um padre a pagar indenização de danos morais a uma mulher e seu marido por haver impedido, com uso indevido de habeas corpus, um aborto que havia sido autorizado pela justiça.

A mulher teve sua gravidez diagnosticada com uma síndrome grave, incompatível com a vida fora do útero, razão pela qual obteve autorização para interrompê-la. Sem jamais ter conhecido o casal, o padre impetrou habeas corpus para interromper o procedimento. A mulher passou 11 dias em trabalho de parto como consequência disso. Ao reconhecer que a mulher tinha direito a ter realizado o aborto e que o padre deveria indenizá-la, o STJ estendeu a decisão do Supremo de 2012 a outras malformações incompatíveis com a vida, e não só anencefalia.
Novembro de 2016

No julgamento do habeas corpus n. 124.306, o Supremo entendeu que não cabia a prisão preventiva de funcionários de uma clínica de aborto clandestina no Rio de Janeiro. Além disso, a maioria da turma da corte seguiu o voto-vista que argumentou pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto nos três primeiros meses de gestação, por violar direitos fundamentais das mulheres.

Apesar de não ter efeito vinculante, a decisão representa a primeira vez que a tese foi defendida durante um julgamento da corte.


2017

É apresentada ao Supremo a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação por violar direitos fundamentais das mulheres, especialmente o direito à dignidade e à cidadania. A ação, que foi discutida em audiências públicas do Supremo em agosto de 2018, segue pendente de julgamento.
Atualmente

No Brasil, a interrupção da gestação somente é permitida em três casos:casos de estupro;
se representa risco de morte para a gestante;
quando o feto é diagnosticado com anencefalia fetal.


Porém, mesmo nos casos que se encaixam no perfil, há muitos obstáculos para concretizar o aborto. Vítimas de violência sexual, por exemplo, são discriminadas e não conseguem interromper a gestação resultado de estupro por negligência, omissão e desinformação, segundo uma reportagem do portal Catarinas.



Muitas vezes, as pessoas grávidas que buscam um aborto podem desistir do processo por vergonha ou intimidação, algo que acontece com certa frequência quando essas são crianças ou não têm acesso à informação.

projetos de lei no Congresso que buscam tanto descriminalizar o aborto quanto fortalecer ainda mais as regras para o aborto já previstas na legislação brasileira, mas não houve grandes mudanças no cenário nos últimos anos.


Como foi dito acima, a história do aborto é complexa e cheia de nuances. Ficou com alguma dúvida? Gostou do conteúdo? Comente aqui!

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