Rosana Pinheiro-Machado
Nós naturalizamos uma lógica insana que trata a informalidade dos pobres como crime e a dos ricos como flexibilização
Nós naturalizamos uma lógica insana que trata a informalidade dos pobres como crime e a dos ricos como flexibilização
Rovena Rosa/Agência Brasil/Fotos Públicas
Manifestantes e trabalhadores informais correm durante dispersão de protesto contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, em janeiro de 2016
Durante os protestos do domingo 18 em São Paulo, uma ambulante que vendia bebidas em um isopor foi brutalmente reprimida por dois policias militares. Ela foi atirada e imobilizada no chão enquanto gritava para que a deixassem em paz. Eu assisti essa cena na televisão de um mercadinho, quando uma senhora muito simpática soltou um comentário: "bando de marginal".
Tanto a mulher apanhando quanto a mulher assistindo recompõem fragmentos de uma cultura mais ampla. São atos banais e cotidianos. A ambulante sendo violada de seus direitos, nesse sentido, só ganha visibilidade e comoção porque se entrecruza com os protestos “Fora Temer”, a violência policial e o grito pela extinção da Polícia Militar.
Longe das manifestações, a invisibilidade, a naturalização e a institucionalização da violência simbólica e física que os trabalhadores de rua recebem diariamente mantêm-se como um dos maiores males do país.
E isso ocorre por uma razão muito simples: ao tacharmos de “marginais” aqueles que querem trabalhar, estamos colaborando para a sua marginalização. Ou muito pior: estamos legitimando a violência policial daqueles que aprendemos a achar que são mais merecedores de cacetes que nós.
É preciso urgentemente reascender o tema da economia informal no debate público, com menos rancor e mais embasamento. A informalidade urbana não é praticada por “vagabundos e desocupados que incomodam as ruas e ganham dinheiro fácil” – para citar alguns dos clichês.
Ela é antes um problema de todos nós porque nenhuma discussão sobre desenvolvimento pode ser feita sem que mudemos a nossa forma de pensar sobre ela.
Nós naturalizamos uma lógica insana – tremendamente burra e autodestrutiva – que trata a informalidade dos pobres como crime e a dos ricos como flexibilização. Tem algo muito errado em uma sociedade que ignora que uma ambulante apanhe em nome da legalidade, mas também faz vista grossa aos sonegadores que vestiram verde amarelo pelo fim da corrupção.
A legalidade é revestida de diferentes pesos jogados sobre diferentes relações de poder.
Aqueles que precisam de incentivo para crescer e se formalizar são humilhados e criminalizados cotidianamente. Aqueles que, por outro lado, já acumularam diversos capitais para além do econômico – incluindo prestígio e boas relações sociais – são vistos como vítimas de um sistema tributário injusto.
Ou seja, nós temos um aparato social, econômico e cultural que torna o trabalho dependente de uma classe restrita que faz de tudo para reproduzir, por gerações e gerações, a sua fortuna e o seu monopólio.
Aqueles que, por baixo, querem entrar na esfera produtiva são literalmente postos para correr. Enquanto isso, no andar de cima, busca-se mais flexibilização, terceirização e aumento da carga-horária de trabalho.
Ora, está tudo errado nesta lógica de classificar diferentemente a informalidade de acordo com a classe social. A régua da legalidade, que idealmente deveria ser aplicada a todos de forma indiscriminada, na prática só vale para a base da pirâmide. Quando foi que nós vimos gangsteres da política e do mercado nacional sendo chutados como vira-latas pela polícia?
Por outro lado, por que estamos tão acostumados a ver os camelôs correndo da fiscalização – e até achamos graça da cena?
Uma informalidade é considerada limpa, justa e legítima; a outra, suja, injusta e perigosa.
Mas colocando na escala da justiça social, essas duas manifestações de informalidade são iguais? É claro que não. O Brasil é um país construído sobre feridas profundas de desigualdade social e racial e, portanto, uma mulher da periferia que vende de bebidas nas ruas não compete no mercado com os privilégios de quem sonega milhões. Há diferenças em todas as escalas de discussão.
Sim, eu defendo dois pesos e duas medidas aqui. É preciso taxar e fiscalizar as grandes fortunas do Brasil, de um lado. De outro, temos o desafio mais difícil: reconstruir um sistema burocrático, tributário e, principalmente, social e simbólico que seja mais aberto e amigável aos trabalhadores informais urbanos de baixa renda.
No meio disso tudo tem o pequeno empreendedor, que tenta pagar todos os impostos e se sente injustiçado pela competição do ambulante. Quando esse comerciante, dono da padaria ou do mercadinho se queixa, alegando que ele faz um esforço brutal para manter funcionários, ele tem razão. O que nós precisamos, portanto, é mudar o entendimento de onde se situa o injusto.
A criminalização do trabalho informal
Camelôs da região do Brás, em São Paulo, protestam contra a morte do trabalhador Carlos Braga por um policial militar, em 2014
Historicamente, desde o século XIX, a sociedade brasileira tende a marginalizar e criminalizar a parte de baixo da sociedade, associando o trabalho de rua à vadiagem, vagabundagem e bandidagem.
Nessa lógica, esse é o país que não deu certo. Mas isso não passa de uma construção histórica, moldada por interesses particulares e, portanto, passível de mudança.
Todo mundo que conhece a realidade da economia informal urbana de perto, sabe que, com raras exceções, ninguém gosta de correr da polícia, não ter regulamentação e apanhar sol, chuva, vendo, calor e frio. É uma questão identitária, de reconhecimento social.
Não é à toa que muitos dos camelôs com quem eu interagia por muitos anos, emolduravam a autorização municipal e exibiam-na em suas bancas. Eles acreditavam no valor de seu trabalho, dos bens que levaram à população mais carente. Colocavam perfume nos produtos e neles próprios: “é para que os clientes entendam que somos limpos” – dizia uma amiga camelô.
Mas, reproduzindo a mesma crítica que eles sofriam dos comerciantes do varejo, eles próprios também criticavam o ambulante irregular, que não precisava pagar aluguel de banca no camelódromo. Em certa medida, todo mundo se acha honesto e acha que o sistema é desleal.
E é.
Portanto, temos um problema de foco de atenção. A crítica deve recair sobre aqueles que, tendo todas as condições e privilégios, ainda sim desviam milhões por meio de sonegações de impostos, retirada de direitos trabalhistas e licitações fraudulentas.
O meu ponto é que nós precisamos valorizar a força produtiva popular, nossa classe trabalhadora. Isso só vai ocorrer se nós pararmos para escutá-la e, assim, retirar diversas camadas que a demonizaram ao longo da história.
De um lado, urge que o sistema burocrático e tributário seja mais flexível com os ambulantes e pequenos comerciantes. São todos empresários à sua moda, fazendo a roda da economia girar.
É bem verdade que eu posso aqui ser facilmente acusada de “liberal”. Mas minha perspectiva é outra: eu concordo com Akhil Gupta (no livro Red Tape) que considera a burocracia uma forma de violência estrutural para com os mais pobres, uma máquina de matar e deixar morrer. É simplesmente uma questão de equação e justiça social.
Da mesma forma, é perfeitamente possível ter uma polícia mais tolerante e preventiva. Uma polícia que informe, dialogue e que não “esculache” – para usar a expressão de Lenin Pires, antropólogo que estuda economia informal.
De outro lado, na busca de um sistema mais equilibrado, precisamos avançar na discussão do que interessa: na taxação dos ricos e na fiscalização de suas fortunas.
Nós vivemos num mundo que – como recentemente analisou Keith Hart, que cunhou o conceito de setor informal nos anos 1970 – a informalidade tomou conta do mundo no século 21 e se legitima sob o guarda chuva da flexibilização do trabalho e do capital.
Mas essa legitimação da informalidade não vale para todos. Só para os ricos.
Eu ainda tenho clara em minha memória a cena do camelô Carlos Braga, que morreu nas ruas de São Paulo em 2014 com um tiro na cabeça de um policial militar. Sangue frio. Não houve confronto. Ele apenas tentava defender o seu colega.
Diversos vídeos mostram claramente que ele morreu gritando “deixem ele trabalhar”. Os policias foram absolvidos e o caso nunca virou notícia de grande repercussão. Afinal, é apenas um marginal morto. Quiçá, um bandido a menos nas nossas costas.
Tudo é mais fácil quando temos um inimigo, uma história pronta na cabeça que nos autorize a acreditar na safadeza alheia. Tudo é mais complicado, mas infinitamente mais recompensador, quando optamos pelo caminho mais difícil, da escuta e da compreensão histórica.
Desenvolvimento só existe quando as pessoas trabalham. Desenvolvimento só será viabilizado por meio do entendimento de que os criminosos não são aqueles que vendem “dez pilha a um real”, mas os que, de terno e gravata, assinam contratos obscuros e fraudam licitações.
Formalizar, incluir, legitimar o trabalho daqueles que querem trabalhar é uma tarefa urgente e necessária, mas que está ainda muito longe de nossos horizontes, de nossa cultura legal e de nosso julgamento de sofá.
Não há desenvolvimento social, e nunca haverá, enquanto tratarmos a nossa classe trabalhadora– aquela mesma que segura o país do colapso durante as crises econômicas – como o nossa principal inimiga. Nossos inimigos são outros. E eles estão no poder.
Revista Carta Capital
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