sábado, 20 de agosto de 2011

Por que a África está deixando a Europa para trás


WILLIAM WALLIS
DO "FINANCIAL TIMES"

Os africanos estão desfrutando uma espécie de inversão de papéis. As antigas potências coloniais europeias enfrentam crises de dívida, orçamentos de austeridade, desemprego crescente e turbulência social. Contrastando com isso, boa parte da África subsaariana pode apontar para seu crescimento robusto, situação financeira melhor e entradas crescentes de capital. Este cenário inusitado encerra uma oportunidade: para a África, a de afirmar-se no palco global; para os países europeus, aproveitar sua pegada história na África, estimulando a expansão comercial para o sul. Mas não está nem um pouco claro se qualquer um dos lados vai aproveitar essa oportunidade.

Os problemas enfrentados pelos governos ocidentais são fartamente conhecidos pelos países africanos. Também estes tiveram seus serviços públicos esvaziados nos anos 1980 e 1990 pelas condições rígidas impostas pelos pacotes de resgate do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Nos casos mais graves, a autoridade do Estado foi fatalmente enfraquecida, enquanto a insatisfação explodiu nas ruas.

Hoje, contrastando com isso, eles podem apontar para cifras econômicas melhores, uma classe média fortalecida e, em alguns lugares, um controle social possivelmente mais eficaz. Nem mesmo Lagos --uma capital muito maior, mais pobre, mais violenta e com disparidades de renda maiores que as de Londres-- já testemunhou saques na escala dos que aconteceram na semana passada na capital do antigo império, embora os habitantes da megacidade nigeriana com certeza já competiram com os de Londres em matéria de incêndios criminosos.

A África vem se comprazendo com essa inversão de papéis. Quando a violência se espalhou de Londres para outras cidades britânicas, o Ministério do Exterior sul-africano tomou a medida incomum de emitir um aviso de viagem, aconselhando seus cidadãos a não viajarem ao Reino Unido. Houve também retaliações por críticas anteriores à capacidade da África do Sul de organizar a Copa do Mundo de 2010, com questionamentos sobre a confiabilidade de Londres para sediar uma Olimpíada com segurança.

A resposta oferecida pelos políticos de Westminster tampouco foi vista como exemplar. Como me disse ironicamente um diplomata nigeriano veterano, o primeiro-ministro David Cameron pareceu ecoar o coronel Muammar Gaddafi, da Líbia --que atribuiu a insurgência que está chegando à sua porta a "terroristas"--, quando, de modo simplista, atribuiu a pior violência vista no Reino Unido em gerações a "criminosos".

Se a sociedade britânica está doente e o projeto europeu está em dificuldades sérias, é claro que existem na África pacientes em estado muito mais grave. Bastou a aparição improvável do secretário britânico do Desenvolvimento, Andrew Mitchell, esta semana em Mogadício --cidade que nenhum ministro britânico tinha visitado desde 1992-- para deixar isso bem claro.

A visita de Mitchell teria sido mais ousada se tivesse ocorrido no ano passado, quando as sementes da fome generalizada atual já tinham sido plantadas e a ausência de um Estado que funcionasse como tal estava assolando a região com pirataria e extremismo islâmico. Mas ela serviu como contraste com a abdicação da responsabilidade pela crise no Chifre da África por parte dos líderes regionais.

São governos e organizações humanitárias ocidentais, ao lado da ONU, que vêm ocupando o vazio africano, fornecendo os recursos financeiros e o trabalho especializado necessários para administrar uma crise que já deixou milhares de mortos e pode ter repercussões na região por anos ainda. Apesar de todos os fracassos da África, contudo, o Ocidente não deve tirar as conclusões erradas. É tentador enxergar nada mais que um quadro já familiar de fraqueza africana. Sob alguns aspectos, porém, a fome na região é um capítulo que destoa dos tempos atuais.

Nos dez anos ou mais passados desde que a China começou a esboçar os termos de seu novo engajamento com a África, o continente passou por uma transformação em suas relações com o mundo externo. Um palco antes dominado por doadores ocidentais cautelosos e ex-potências coloniais cansadas e descrentes hoje abrange brasileiros, indianos, russos, turcos e outros que fazem fila para agarrar as oportunidades dos recursos e mercados africanos. O relativo declínio da influência e do domínio comercial ocidentais faz parte dessa mesma narrativa.

Os contornos desta nova ordem ainda estão sendo definidos. Mas nem os governos europeus, nem os africanos parecem ter agarrado a oportunidade apresentada: para os governos africanos, a chance de definir um papel mais independente e conquistar voz maior nos assuntos mundiais, e, para os europeus, a chance de se desvincularem do paternalismo pouco saudável do passado e competir em termos mais equitativos pelas oportunidades de negócios trazidas pela expansão econômica acelerada que acontece na África.

David Cameron pareceu ter entendido isso pelo menos parcialmente em sua viagem recente à África do Sul e Nigéria. Ele abandonou seu tom geralmente crítico, fazendo uma avaliação otimista do potencial comercial da África. Mas, em comparação com a busca implacável pelas atenções africanas realizada por representantes da China e outras potências emergentes, sua visita representou um incidente que mal foi perceptível, entre uma crise doméstica e outra.

Muitos dos pares ocidentais de Cameron parecem ainda não ter consciência de quão irritante é, para africanos, ouvirem sermões sobre redução de pobreza, corrupção e probidade financeira, à luz dos fracassos recentes de governança em seu próprio território. Afinal, os africanos podem legitimamente indagar se não foi uma falha de governança que causou a crise financeira global de 2008, entre os muitos outros problemas que acometeram os governos ocidentais.

A Europa já perdeu a posição moral superior e o domínio comercial na África. Mas ainda não está tarde demais para reverter esse processo. Com relação ao primeiro quesito, pelo menos, europeus e americanos têm sido de longe os maiores doadores no combate à fome, uma área na qual as vozes africanas e de países emergentes têm silenciado. Com relação ao segundo, a recuperação econômica da África acaba de começar.

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