sábado, 16 de agosto de 2008

A cartilha é idêntica

por Alexandre de Freitas Barbosa

Você conhece um país do Hemisfério Sul que cresce bem abaixo da média das nações em desenvolvimento? Que adota uma política econômica ortodoxa, mas a compensa com uma postura externa ativa? Que critica o excesso de poder dos países desenvolvidos, mas exerce a liderança no espaço regional por meio de investimentos de multinacionais?

É uma nação com níveis de desigualdade social e racial alarmantes, comandada por um partido que se auto-intitula de esquerda. E cujo governo, apesar de apoiado pelos movimentos sociais, mantém vigorosos laços com o empresariado nacional conservador e a finança global. Apesar das semelhanças com o Brasil, esse é cenário que se apresenta a quem visita a África do Sul, mais de dez anos depois do fim do apartheid.

Também lá, depois de ter lutado contra a ditadura, a elite partidária se converteu ao status quo e prega a necessidade de respeito aos contratos, enquanto é flagrada em negociatas e negócios escusos. Ainda assim, recebe apoio dos segmentos mais excluídos, que vêem, nos últimos anos, o nível de renda aumentar marginalmente, depois de décadas de autoritarismo político e econômico.

Entre 1999 e 2004, o número de beneficiários dos programas de transferência de renda saltou de 2,6 milhões para 7 milhões. Essa mesma elite não consegue acionar mudanças substantivas nos níveis de desemprego e pobreza e acredita que a economia só dará resultados se forem seguidos os preceitos de Wall Street, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional.

Mais recentemente, rachaduras no partido dominante, a proximidade das eleições e um pouco de sensatez fizeram com que se admitisse um papel mais ativo do Estado na economia. Um rápido percurso pelos indicadores da África do Sul mostra que a transição do regime político esteve carregada de continuidade no plano das relações sociais e raciais. A começar pelo mercado de trabalho.

Segundo a definição oficial, a taxa de desemprego chegou a 25,5% em 2006. O porcentual, contudo, oculta um quadro mais grave. A taxa expandida de desemprego, que engloba trabalhadores que desistiram de procurar vagas, situa-se em torno de 37%. A informalidade representa 30% da população ocupada, se incluídos os empregados domésticos, que perfazem 7% do total de trabalhadores, tal como no Brasil.

Enquanto 60% da força de trabalho transita entre a inatividade, o emprego instável e a situação de desemprego, cerca de metade da população encontrase abaixo da linha oficial de pobreza. Ao olhar do visitante, a realidade pode ser percebida em um dia de céu limpo e azul, quando o verde do parque, em frente ao pomposo Parktonian Hotel, em Johannesburgo, serve de colchão para dezenas de negros esparramados, que sonham com outros mundos.

A segregação fica patente quando se comparam negros com brancos. Com a democracia, algumas mudanças concretas ocorreram, como a redação de uma Constituição nas 11 línguas oficiais do país. Os princípios podem ser lidos no edifício onde hoje fica a Corte Suprema e antes fora uma prisão que alojou Gandhi e Mandela. Uma parte da prisão foi demolida e os tijolos serviram de alicerce para o novo órgão do Poder Judiciário.

O outro lado da história passa pelo nome de Thabo Mbeki. O atual presidente da República Sul-Africana, e também do ANC (Congresso Nacional Africano), principal partido do país e que encabeça a coalizão de poder, construiu uma trajetória de forma cautelosa, mas com a imposição de metas ambiciosas.

Filho de Govan Mbeki – líder à esquerda de Mandela, marxista e fundador do brço armado do partido –, seguiu a carreira política como protegido do outro grande líder, Oliver Tambo, que se tornou presidente do partido no exterior, quando o mesmo foi banido pelo regime do apartheid. Com conhecimento de economia, obtido em Sussex, e pragmatismo de social-democrata europeu, Mbeki iniciou a sua trajetória “dormindo com o inimigo”.

Reunia-se a portas fechadas com os barões do empresariado branco e com o grande capital internacional no fim dos anos 80, justamente quando os movimentos populares colocavam uma pá de cal nas pretensões de continuidade do regime pró-apartheid. Daí seria um pulo até a nomeação a vicepresidente do partido, em 1993, e a vicepresidente da República em 1994. Conseguira apoio do partido e de segmentos da esquerda, para depois colocar os anseios de nacionalização e de redistribuição de renda “para debaixo do tapete".

Convenceria Mandela da necessidade de um plano de ajuste estrutural, estilo Consenso de Washington. O diagnóstico parecia simples. Em um contexto pós-Guerra Fria, optou-se por um modelo econômico baseado na atração de capital externo, redução das tarifas comerciais, contenção de gasto público, moderação salarial e elevação do investimento em infra-estrutura, por meio da privatização.

No lançamento do plano, em 1996, e enfrentando as críticas da esquerda, em tom de menosprezo, Mbeki diria bombasticamente “apenas me chamem de thatcherista”, como relata o jornalista e cientista político William Gumede. A maior preocupação de Mandela e Mbeki era garantir a confiança do capital internacional, que poderia pôr em risco a transição para uma democracia multirracial.

Ironicamente, o rand sul-africano sofreria fortes desvalorizações em 1996 e 1998. A economia não cresceu e as taxas de desemprego dispararam. O capitalismo sul-africano reciclou-se, de mãos dadas com a elite ex-apartheid, e ampliou a exclusão social. Manteve-se o que a esquerda chama de “capitalismo colonial e racial".

Eleito presidente em 1999 e reeleito em 2004, Mbeki lançou, em 2006, um plano de aceleração e participação no crescimento (Asgisa), que prevê maior investimento público em infra- estrutura e habitação, apesar de as taxas de juro continuarem elevadas e de a moeda se valorizar de forma permanente, mantendo a inflação controlada.

A diferença com o Brasil é que a África tem déficit comercial, especialmente com os países desenvolvidos, e chegou a um saldo negativo nas transações correntes de 5% no ano passado. A meta para 2014 é reduzir o desemprego pela metade. Detalhe importante: 11% da população é portadora do vírus HIV, o que explica a expectativa de vida de apenas 47 anos.

O indicador faz com que o país se situe na posição de número 121 no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). No plano internacional, o governo da ANC tem exercido um papel de protagonismo. Além de negociador nas crises políticas, lançou o Nepad (Nova Parceria para o Desenvolvimento da África), que nos termos pouco cautelosos da sua diplomacia levaria a uma Renascença africana.

O programa possui um viés africanista, mas também compra muito do discurso de boa governança, importado do Ocidente, quando conclama os países do continente a resolver seus próprios problemas, antes de exigir a contrapartida das potências. Das cem maiores empresas multinacionais dos países em desenvolvimento, três são brasileiras e nove, sul-africanas.

Do total do capital produtivo do Continente Africano no exterior, 70% provém do país. Os investimentos externos vão desde o setor de mineração, papel e indústria química, até telecomunicações, imprensa, comércio e transportes. Ainda que cerca de 90% se dirijam para a Europa e para os Estados Unidos, o restante que fica no continente é suficiente para colocar a África do Sul como maior investidor externo de pequenos países da região.

Um setor moderno e globalizado aproveita-se de relações de trabalho precárias internamente, enquanto assume posições vantajosas num continente fragmentado. Para tanto, encontra apoio do governo democrático, que permite a ascensão de alguns segmentos da classe média negra e distribui benefícios sociais aos “perdedores”. Procura assim sanar a sua dívida com o passado, mas a conta- gotas.

A democracia multirracial, ao se curvar de forma irrestrita ao mercado, perde boa parte do potencial utópico e transformador, tornando-se quando muito um slogan para consumo externo. Mas a história vive de contradições, e na África do Sul parece ter apenas começado.
carta escola
Ao grande professor que tive na UFRJ....Joel Rufino dos Santos(escreveu)....uso suas explicações até hoje em sala...grande alma

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