quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

A natureza dá a solução


O novo Relatório Mundial da ONU sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos defende a adoção de métodos naturais para melhorar o gerenciamento do uso da água. Algumas dessas soluções já mostram economia de recursos e aumento de produtividade


Zonas úmidas cobrem apenas cerca de 2,6% da superfície do planeta, mas têm impacto direto na qualidade da água (Foto: Konradlew)


As soluções baseadas na natureza podem ter um papel importante na melhora do abastecimento e da qualidade da água e na redução do impacto dos desastres naturais, segundo a edição de 2018 do Relatório Mundial da ONU sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, “Soluções baseadas na natureza para a gestão da água”. O estudo, apresentado em março por Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, e Gilbert Houngbo, diretor do UN Water (ONU Água, em tradução livre), no 8º Fórum Mundial da Água, em Brasília, propõe que reservatórios, canais de irrigação e estações de tratamento de água não sejam os únicos instrumentos de gestão hídrica à disposição.

Em 1986, o estado do Rajastão (Índia) viveu uma de suas piores secas. Nos anos seguintes, uma ONG uniu-se às comunidades locais para definir estruturas de coleta de água e regenerar solos e florestas na região. Com a iniciativa, houve aumento de 30% na cobertura florestal, de alguns metros nos níveis das águas subterrâneas e de produtividade das terras aráveis.

Tais medidas são exemplos de soluções baseadas na natureza (SbN) defendidas na mais recente edição do relatório da ONU. O novo relatório reconhece a água não apenas como um elemento isolado, mas como parte de um processo natural complexo que envolve evaporação, precipitação e absorção da água pelo solo. A presença e a extensão da cobertura vegetal – como pastagens, zonas úmidas e florestas – influenciam o ciclo da água e podem representar o foco de ações para a melhoria da quantida­de e da qualidade da água disponível.

A chamada infraestrutura “verde”, em oposição à tradicional infraestrutura “cinza”, concentra-se em preservar as funções dos ecossistemas, sejam naturais ou artificiais, e na engenharia ambiental, em vez da engenharia civil, para melhorar a gestão dos recursos hídricos. A infraestrutura verde apresenta vários usos na agricultura, de longe o maior consumidor de água. Contribuindo para o desenvolvimento de sistemas de irrigação mais efetivos e econômicos, por exemplo, a infraestrutura verde pode reduzir as pressões sobre o uso da terra, limitando a poluição, a erosão do solo e as necessidades hídricas.
Vantagens múltiplas

Desse modo, o Sistema de Intensificação do Arroz, inicialmente desenvolvido em Madagascar, ajuda a restaurar o funcionamento hidrológico e ecológico dos solos, em vez de usar novas variedades de plantio ou produtos químicos. Esse sistema propicia uma economia de 25% a 50% na necessidade hídrica e de 80% a 90% em sementes, enquanto aumenta a produção de 25% a 50%, dependendo da região na qual está implantado.

A produção agrícola mundial poderia crescer cerca de 20% se fossem usadas práticas mais verdes de gestão da água. Um estudo citado pelo relatório avaliou projetos de desenvolvimento agrícola em 57 países de baixa renda e descobriu que o uso mais eficiente da água, aliado à redução do uso de pesticidas e a melhorias na cobertura do solo, elevou o rendimento das colheitas em 79%.
No árido Rajastão, ações para regenerar solos e florestas elevaram o nível das águas subterrâneas (Foto: Tonyja44)

Soluções verdes também mostram grande potencial em áreas urbanas. Além de “paredes verdes” e jardins nos terraços, as opções incluem medidas para reciclar e coletar água, reservatórios para recarga de águas subterrâ­neas e proteção de bacias hidrográficas que abastecem áreas urbanas. A cidade de Nova York tem protegido suas três maiores bacias desde o fim dos anos 1990. Dispondo do maior abastecimento de água não filtrada dos Estados Unidos, a metrópole agora poupa mais de US$ 300 milhões por ano em tratamento de água e custos de manutenção.

Confrontados pela necessidade cada vez maior de água, países e cidades têm demonstrado interesse crescente por soluções verdes. A China iniciou recentemente o projeto Cidade Esponja, para melhorar a disponibilidade de água em núcleos urbanos. Até 2020, serão construídas 16 cidades-esponja pilotos no país. A meta é reciclar 70% da água da chuva por meio de uma permeação maior do solo, por retenção e armazenamento, e pela purificação da água e restauração de zonas úmidas adjacentes.
Impacto direto

As zonas úmidas cobrem apenas cerca de 2,6% da superfície da Terra, mas têm um impacto direto na qualidade da água, filtrando substâncias tóxicas, de pesticidas a descargas industriais e da mineração. Existem evidências de que essas áreas, sozinhas, podem remover­ de 20% a 60% dos metais presentes na água e reter de 80% a 90% dos sedimentos de escoamento. Alguns países chegaram a criar zonas úmidas para tratar águas residuais industriais. Nos últimos anos, a Ucrânia tem utilizado zonas úmidas artificiais para filtrar produtos farmacêuticos de águas residuais.

Mas os ecossistemas, sozinhos, não conseguem executar 100% das funções de tratamento da água. Eles não filtram todos os tipos de substâncias tóxicas despejadas na água, e suas capacidades têm limites. Existem pontos críticos além dos quais os impactos negativos da carga de poluentes em um ecossistema se tornam irreversíveis. Vem daí a necessidade de se reconhecer os limites existentes e gerenciar os ecossistemas de maneira adequada. As zonas úmidas também agem como barreiras naturais que absorvem e captam água da chuva, reduzindo a erosão do solo e os impactos de inundações e outros desastres naturais. Com a mudança climática, prevê-se um aumento da frequência e da intensidade dos desastres naturais.

Alguns países já começaram a se precaver. O Chile anunciou medidas destinadas a proteger suas zonas úmidas litorâneas após o tsunami de 2010. O estado de Louisiana, no sul dos EUA, criou a Autoridade de Proteção e Restauração Costeira depois da passagem do furacão Katrina (2005), cuja devastação foi ampliada pela degradação das zonas úmidas no delta do rio Mississípi.

Entretanto, o emprego de soluções baseadas na natureza ainda é secundário, e quase todos os investimentos são canalizados para projetos de infraestrutura cinza. A fim de satisfazer a crescente demanda por água, no entanto, infraestruturas verdes parecem ser uma solução promissora, complementando abordagens tradicionais. Os autores do relatório da Unesco sugerem um maior equilíbrio entre as duas, sobretudo considerando que as soluções baseadas na natureza estão mais alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável adotados pela ONU em 2015.


Revista Planeta 

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