Análise: Fantasma do autoritarismo paira sobre o Egito
BBC BRASIL
Ahmad Harara raramente é visto sem seus óculos de sol da Ray-Ban. Mas para esse dentista egípcio de 33 anos, o acessório não é uma mera questão de estilo.
Quando ele tira os óculos, é para mostrar dois olhos que já não podem ver. O da esquerda é uma prótese e vem com uma pesquena inscrição: "hurriya", que em árabe significa liberdade.
A luta pela liberdade custou a visão de Harara. Ele perdeu cada um dos olhos em um momento diferente no ano de 2011. Nas duas vezes, recebeu tiros da polícia, segundo conta.
Os estilhaços de uma bala lhe roubaram a visão direita no dia 28 de janeiro, dias após o início dos protestos que culminaram na queda do ex-presidente Hosni Mubarak, um dos pontos altos da Primavera Árabe.
O segundo olho foi atingido por um fraco-atirador, em novembro, segundo ele.
"Eu nem sou a pessoa que está pagando o maior preço por tudo isso", diz, enquanto fuma e se serve de café ao estilo turco no Cafe Riche, ponto de encontro de dissidentes políticos no Cairo há mais de meio século.
"Há outros com sequelas muito piores, e eles estão seguindo em frente", diz.
MILITARES, INTOCÁVEIS
Harara também segue em frente e não deixou de lutar contra o regime que o deixou às escuras e que, ele diz, ainda não foi derrubado.
"O sistema continua o mesmo", diz. "O Exército mantém sua posição. Ninguém é responsabilizado por nada. Ninguém fiscaliza. Pelo contrário, eles conseguiram ainda mais privilégios", diz.
"Os militares controlam o Egito desde 1952 e não vem razão para qualquer mudança apenas porque os jovens foram para as ruas", afirma.
Os jovens ainda ocupam as ruas egípcias, ainda que em grupos menores que os vistos em 2011. Ele enfrentam gás de pimenta, canhões de água, sob o risco de pagar com a própria vida, desafiando a lei draconiana que agora proíbe manifestações no país.
Ativistas de direitos humanos dizem que a lei é uma tentativa de aplacar um dos principais ganhos da revolução - a liberdade de expressão.
Dezenas de ativistas foram presos ao desafiar a nova lei. O principal alvo são os simpatizantes do ex-presidente Mohammed Morsi, derrubado pelos militares, além de membros do seu movimento político, a Irmandande Muçulmana.
Detenções
A revolução que derrubou Mubarak abriu caminho para os islamistas chegarem ao poder, liderados por Morsi.
O líder da Irmandade Muçulmana ficou apenas um ano no poder, como o primeiro presidente civil eleito por voto livre.
Morsi acabou derrubado pelos militares em julho deste ano, em um movimento com forte apoio de setores seculares e outros descontentes com a crescente influência religiosa em seu governo. Antes do afastamento, milhares foram às ruas do Egito pedir a saída de Morsi.
Os islâmitas reagiram, e foram reprimidos. Em agosto, as autoridades disperaram com violência duas manifestações pró-Morsi, matando centenas de simpatizantes.
Desde então, milhares foram detidos, incluindo vários membros do alto escalão da Irmandade Muçulmana, incluindo o próprio Morsi, acusado de traição à pátria.
A RESISTÊNCIA ISLAMITA
Tantos "irmãos" muçulmanos estão atrás da grade que a reportagem foi buscar as "irmãs", membros do movimento.
Encontramos um trio no distrito de Nasr City, no Cairo. Uma delas é Wafaa Hefny, uma professora universitária, bastante expansiva.
"Nunca vou desistir", diz ela. "Puxei o meu avô".
Foi seu avô, Hassan al-Banna, quem fundou a Irmandade Muçulmana em 1928. Wafaa diz que o grupo está, na pior das hipóteses, em uma crise, mas está se adaptando à atual realidade.
"Toda a cúpula foi presa", diz. "Em cada distrito, o primeiro, o segundo e até o terceiro grau de liderança foi preso. Mas nós já promovemos os substitutos. Não há lugar vago", diz, com entusiasmo.
Sem divisão
A reportagem acompanhou Wafaa em uma visita a uma jovem viúva, Alshaimaa Abdallah, cujo marido foi morto em agosto.
Alshaimaa nos recebeu coberta com o hijab. Ela disse que seu marido não era um membro da Irmandade Muçulmana, era "apenas um devoto muçulmano, defendendo o Islã".
Agora que ele está morto, Alshaimaa diz que ela e sua família estão prontos a se juntar à Irmandade Muçulmana.
Apesar da dura realidade, de ter de dizer ao filho de quatro anos que o pai morto "está viajando", Alshaimaa se diz "otimista" com o futuro do Egito, dizendo que o país não vai se dividir.
"É muito difícil nos separar. Nos bairros, as pessoas são muito próximas às outras, mesmo se têm posições políticas diferentes", diz.
Culto ao general Sisi
A realidade que se apresenta, no entanto, é de uma dolorosa e amedrontadora divisão na sociedade egípcia.
O que se vê, na terra dos faraós, é a busca por estabilidade e por um líder forte.
Quem tem se apresentado a assumir esse papel é o homem por trás da deposição de Morsi, o general Abdul Fattah al-Sisi, comandante do Exército.
Se Sisi se candidatar a presidente em 2014, e tudo indica que ele o fará, a previsão é que ganhe com folga.
Na praça Tahrir, onde a multidão derrubou o ex-presidente e líder militiar Hosni Mubarak, hoje outra pequena multidão clama para que outro militar seja conduzido ao poder.
"Te amamos, Sisi", cantam os manifestantes, onde antes se ouviam gritos pedindo liberdade e democracia.
"Sisi é uma coroa na cabçea dos egípcios", diz um velho homem na praça Tahrir. "Ele evitou um mar de sangue".
No Egito, muitos dizem que Sisi evitou uma guerra civil ao depor Morsi. O culto ao general é tamanho que seu rosto estampa latas de óleo, pijamas, embalagens das mais variadas e até doces.
No Chocolate Lounge, um café popular entre os diplomatas, o rosto de Sisi enfeita cupcakes e macaroons. Segundo o dono do lugar, os produtos que homenageiam o general são os campeões de venda.
MENOS ESPERANÇA
Para quem lutou pela queda de Mubarak, todo esse culto a Sisi deixa um gosto amargo.
"O regime militar é a contrarrevolução", diz Harara, o dentista que perdeu a visão.
"Eles ainda tentam controlar o país. O Exército nos enganou", diz.
Há no Egito a sensação de que a revolução ainda não é uma obra acabada. Ainda que dois presidentes tenham sido derrubados em três anos, a velha ordem não foi demolida.
O Exército mantem o poder e a esperança de um novo Egito se dilui.
O país não está muito diferente de antes da revolução, segundo Tamara Alrifai, da ONG Human Rights Watch.
"A liberdade de expressão parece ter ficado pior que antes de 2011", diz.
"Há pouco espaço para a oposição na imprensa e há uma onda de detenções e desaparecimentos de qualquer um que ouse desafiar a atual situação. É frustrante ver que quase voltamos ao ponto onde estávamos, três anos atrás", diz.
'OUTRO MUBARAK'
No próximo ano, os egípcios vão votar por uma nova constituição, um novo presidente e um novo Parlamento.
À primeira vista, tudo parece dentro do rito democrático, mas essa não é a realidade, segundo analistas.
"Sisi controla a polícia, o Exército, o Judiciário e a imprensa", me disse um analista independente, que não quis revelar o nome.
"Ele é popular e vai conseguir muitos votos. O temor é que, uma vez no poder, ele nunca vai querer sair. Sisi pode ser apenas um outro Mubarak".
Quando ele tira os óculos, é para mostrar dois olhos que já não podem ver. O da esquerda é uma prótese e vem com uma pesquena inscrição: "hurriya", que em árabe significa liberdade.
A luta pela liberdade custou a visão de Harara. Ele perdeu cada um dos olhos em um momento diferente no ano de 2011. Nas duas vezes, recebeu tiros da polícia, segundo conta.
Os estilhaços de uma bala lhe roubaram a visão direita no dia 28 de janeiro, dias após o início dos protestos que culminaram na queda do ex-presidente Hosni Mubarak, um dos pontos altos da Primavera Árabe.
O segundo olho foi atingido por um fraco-atirador, em novembro, segundo ele.
"Eu nem sou a pessoa que está pagando o maior preço por tudo isso", diz, enquanto fuma e se serve de café ao estilo turco no Cafe Riche, ponto de encontro de dissidentes políticos no Cairo há mais de meio século.
"Há outros com sequelas muito piores, e eles estão seguindo em frente", diz.
MILITARES, INTOCÁVEIS
Harara também segue em frente e não deixou de lutar contra o regime que o deixou às escuras e que, ele diz, ainda não foi derrubado.
"O sistema continua o mesmo", diz. "O Exército mantém sua posição. Ninguém é responsabilizado por nada. Ninguém fiscaliza. Pelo contrário, eles conseguiram ainda mais privilégios", diz.
"Os militares controlam o Egito desde 1952 e não vem razão para qualquer mudança apenas porque os jovens foram para as ruas", afirma.
Os jovens ainda ocupam as ruas egípcias, ainda que em grupos menores que os vistos em 2011. Ele enfrentam gás de pimenta, canhões de água, sob o risco de pagar com a própria vida, desafiando a lei draconiana que agora proíbe manifestações no país.
Ativistas de direitos humanos dizem que a lei é uma tentativa de aplacar um dos principais ganhos da revolução - a liberdade de expressão.
Dezenas de ativistas foram presos ao desafiar a nova lei. O principal alvo são os simpatizantes do ex-presidente Mohammed Morsi, derrubado pelos militares, além de membros do seu movimento político, a Irmandande Muçulmana.
Detenções
A revolução que derrubou Mubarak abriu caminho para os islamistas chegarem ao poder, liderados por Morsi.
O líder da Irmandade Muçulmana ficou apenas um ano no poder, como o primeiro presidente civil eleito por voto livre.
Morsi acabou derrubado pelos militares em julho deste ano, em um movimento com forte apoio de setores seculares e outros descontentes com a crescente influência religiosa em seu governo. Antes do afastamento, milhares foram às ruas do Egito pedir a saída de Morsi.
Os islâmitas reagiram, e foram reprimidos. Em agosto, as autoridades disperaram com violência duas manifestações pró-Morsi, matando centenas de simpatizantes.
Desde então, milhares foram detidos, incluindo vários membros do alto escalão da Irmandade Muçulmana, incluindo o próprio Morsi, acusado de traição à pátria.
A RESISTÊNCIA ISLAMITA
Tantos "irmãos" muçulmanos estão atrás da grade que a reportagem foi buscar as "irmãs", membros do movimento.
Encontramos um trio no distrito de Nasr City, no Cairo. Uma delas é Wafaa Hefny, uma professora universitária, bastante expansiva.
"Nunca vou desistir", diz ela. "Puxei o meu avô".
Foi seu avô, Hassan al-Banna, quem fundou a Irmandade Muçulmana em 1928. Wafaa diz que o grupo está, na pior das hipóteses, em uma crise, mas está se adaptando à atual realidade.
"Toda a cúpula foi presa", diz. "Em cada distrito, o primeiro, o segundo e até o terceiro grau de liderança foi preso. Mas nós já promovemos os substitutos. Não há lugar vago", diz, com entusiasmo.
Sem divisão
A reportagem acompanhou Wafaa em uma visita a uma jovem viúva, Alshaimaa Abdallah, cujo marido foi morto em agosto.
Alshaimaa nos recebeu coberta com o hijab. Ela disse que seu marido não era um membro da Irmandade Muçulmana, era "apenas um devoto muçulmano, defendendo o Islã".
Agora que ele está morto, Alshaimaa diz que ela e sua família estão prontos a se juntar à Irmandade Muçulmana.
Apesar da dura realidade, de ter de dizer ao filho de quatro anos que o pai morto "está viajando", Alshaimaa se diz "otimista" com o futuro do Egito, dizendo que o país não vai se dividir.
"É muito difícil nos separar. Nos bairros, as pessoas são muito próximas às outras, mesmo se têm posições políticas diferentes", diz.
Culto ao general Sisi
A realidade que se apresenta, no entanto, é de uma dolorosa e amedrontadora divisão na sociedade egípcia.
O que se vê, na terra dos faraós, é a busca por estabilidade e por um líder forte.
Quem tem se apresentado a assumir esse papel é o homem por trás da deposição de Morsi, o general Abdul Fattah al-Sisi, comandante do Exército.
Se Sisi se candidatar a presidente em 2014, e tudo indica que ele o fará, a previsão é que ganhe com folga.
Na praça Tahrir, onde a multidão derrubou o ex-presidente e líder militiar Hosni Mubarak, hoje outra pequena multidão clama para que outro militar seja conduzido ao poder.
"Te amamos, Sisi", cantam os manifestantes, onde antes se ouviam gritos pedindo liberdade e democracia.
"Sisi é uma coroa na cabçea dos egípcios", diz um velho homem na praça Tahrir. "Ele evitou um mar de sangue".
No Egito, muitos dizem que Sisi evitou uma guerra civil ao depor Morsi. O culto ao general é tamanho que seu rosto estampa latas de óleo, pijamas, embalagens das mais variadas e até doces.
No Chocolate Lounge, um café popular entre os diplomatas, o rosto de Sisi enfeita cupcakes e macaroons. Segundo o dono do lugar, os produtos que homenageiam o general são os campeões de venda.
MENOS ESPERANÇA
Para quem lutou pela queda de Mubarak, todo esse culto a Sisi deixa um gosto amargo.
"O regime militar é a contrarrevolução", diz Harara, o dentista que perdeu a visão.
"Eles ainda tentam controlar o país. O Exército nos enganou", diz.
Há no Egito a sensação de que a revolução ainda não é uma obra acabada. Ainda que dois presidentes tenham sido derrubados em três anos, a velha ordem não foi demolida.
O Exército mantem o poder e a esperança de um novo Egito se dilui.
O país não está muito diferente de antes da revolução, segundo Tamara Alrifai, da ONG Human Rights Watch.
"A liberdade de expressão parece ter ficado pior que antes de 2011", diz.
"Há pouco espaço para a oposição na imprensa e há uma onda de detenções e desaparecimentos de qualquer um que ouse desafiar a atual situação. É frustrante ver que quase voltamos ao ponto onde estávamos, três anos atrás", diz.
'OUTRO MUBARAK'
No próximo ano, os egípcios vão votar por uma nova constituição, um novo presidente e um novo Parlamento.
À primeira vista, tudo parece dentro do rito democrático, mas essa não é a realidade, segundo analistas.
"Sisi controla a polícia, o Exército, o Judiciário e a imprensa", me disse um analista independente, que não quis revelar o nome.
"Ele é popular e vai conseguir muitos votos. O temor é que, uma vez no poder, ele nunca vai querer sair. Sisi pode ser apenas um outro Mubarak".
Folha de S. Paulo
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