Os “exocometas” ao redor de Beta Pictoris diferem dos observados em nosso próprio Sistema Solar
Essa impressão artística mostra enxames de exocometas orbitando a jovem estrela Beta Pictoris.
Lee Billings
Em 1986, enquanto observava uma estrela a cerca de 63 anos-luz chamada de Beta Pictoris, a astrônoma francesa Anne-Marie Lagrange e seus colegas perceberam algo profundamente estranho. Eles estavam realizando observações porque, dois anos antes, outros pesquisadores estudando a jovem estrela de 23 milhões de anos perceberam o brilho infravermelho do que parecia ser um disco gigante de gás e poeira em rotação, semelhante ao que deu origem ao nosso próprio sistema solar há muito tempo.
A Beta Pictoris parecia estar nas últimas fases de produzir seu próprio sistema planetário, e astrônomos tinham uma posição privilegiada para assistir.
Estudando a luz estelar que passava pelo disco, Lagrange observou indícios inesperados de movimentos de ida e vinda durante horas e dias, quase como se alguma estrutura sombria que absorvia luz ficasse passando por ali. Durante meses, Lagrange e seus colegas se esforçaram para explicar as observações; eles consideraram pulsos estelares, grãos de poeira à deriva e outros fenômenos, mas nenhum das explicações se adequava aos dados.
Desesperados, em 1987 eles tentaram uma última explicação absurda, que mais tarde se provou verdadeira: eles estavam vendo a luz estelar brilhando através de plumas gigantes de gás saindo de objetos gelados que caíam pelo disco na direção da estrela.
Ou seja, eles estavam vendo cometas rasantes – também conhecidos como exocometas – anos antes das primeiras descobertas de exoplanetas.
Lagrange dedicou seu trabalho de doutorado à Beta Pictoris sob a orientação do astrônomo francês Alfred Vidal-Madjar, do Instituto de Astrofísica de Paris (IAP), e em 2008 conduziu uma equipe que descobriu e produziu imagens de um planeta gigante, o Beta Pictoris b, que acabava de se formar ao redor da estrela.
Quase 30 anos após a descoberta do disco e cometas de Beta Pictoris, o sistema é um dos objetos mais monitorados do céu.
Em 22 de outubro, Lagrange e sua equipe de outros astrõnomos franceses adicionaram mais uma faceta à compreensão que os astrônomos têm do sistema planetário embrionário, anunciando o censo mais completo de seus exocometas já realizado. Suas descobertas foram publicadas na Nature. (Scientific Americané parte do Nature Publishing Group).
Usando oito anos de dados de arquivo do espectrógrafo de busca planetária HARPS, do Observatório Europeu do Sul, a equipe catalogou um número sem precedentes de cometas rasantes ao redor de Beta Pictoris, detectando quase 500 deles por meio da absorção de luz estelar provocada por suas caudas gasosas passando diante da estrela como vista da Terra.
Algumas outras estrelas também são conhecidas por abrigar exocometas, astrônomos nunca haviam mapeado números tão altos desses pequenos corpos gelados, tão longe de nosso sistema solar.
“Esse é um estudo louvável, e a determinação desses pesquisadores é impressionante”, elogia Aki Roberge, astrônoma do Centro Goddard de Voos Espaciais, da Nasa, que escreveu um comentário para acompanhar o artigo. “Por um lado, cometas rasantes foram descobertos ao redor de Beta Pictoris há muito tempo mas esse estudo só foi possível por meio de um monitoramento dedicado e constante durante muitos anos”.
Ao analisar cuidadosamente as velocidades e tamanhos estimados de cada nuvem de gás de cometa selecionada entre mais de mil observações do HARPS, a equipe descobriu que os cometas ficam divididos em duas famílias distintas – uma família externa que circula serenamente a estrela a distâncias comparáveis à separação entre Mercúrio e o Sol, e uma família interna que exibe uma ampla gama de velocidades, em órbita cada vez mais próxima. De maneira curiosa, a família mais distante da estrela parece estar produzindo muito mais gás que os cometas mais próximos – o exato oposto do que seria esperado, dado que cometas em nosso sistema solar tendem a ficar mais ativos quanto mais se aproximam do intenso calor de nosso Sol.
De acordo com o principal autor do estudo, Flavien Kiefer, astrônomo do IAP, a explicação mais provável é que a família interior é composta de cometas mais antigos que já quase esgotaram seus reservatórios de gás e poeira, enquanto a família exterior é composta de cometas mais jovens ou maiores, produzidos a partir da fragmentação recente de um corpo comum maior.
Com base na orientação de suas órbitas próximas, a família interna de cometas também parece estar presa em uma ressonância orbital ao redor da estrela pela influência gravitacional de um planeta massivo próximo – talvez Beta Pictoris b, ou talvez outro mundo ainda não visto.
“Essa ressonância é muito semelhante à influência de Júpiter em nosso sistema solar, que produz a maior parte dos cometas de período curto ao redor do Sol”, explica Kiefer. “Nós poderíamos estar vendo alguns dos restos ejetados da formação de Beta Pictoris b. É como se estivéssemos observando uma versão muito mais jovem de nosso Sol, logo após a formação de seus planetas”.
Um mistério ainda sem solução é a natureza do corpo comum que produziu o cinturão externo de cometas ao redor da estrela.
Kiefer aponta que esse corpo comum pode ter sido um cometa extra-grande oriundo do cinturão interno, preso em ressonância com Beta Pictoris b. Se o cometa gigante passou muito perto do planeta, forças gravitacionais podem tê-lo destruído, expondo materiais novos à luz estelar, fazendo-os evaporar.
Mas Roberge aponta que o progenitor do cinturão externo poderia ter o tamanho de um planeta.
Em 2013, ela integrou uma equipe que utilizou o rádiotelescópio ALMA, no Chile, para descobrir duas nuvens gigantes de monóxido de carbono nas fronteiras externas do sistema Beta Pictoris. Uma possível explicação para o posicionamento e a forma das nuvens era a escultura gravitacional provocada por um planeta gigante ainda não visto distante da estrela; outra explicação é a colisão recente e destrutiva de dois mundos gélidos com a massa de Marte.
Fragmentos de uma colisão assim poderiam cair nas partes internas do Sistema como um enxame de cometas massivos. “Se os aglomerados de monóxido de carbono foram causados por essa suposta colisão massiva, então isso poderia estar conectado aos fragmentos que observamos agora”, explica Roberge. “Eu não sei se esse realmente é o caso, mas eu ficaria muito feliz se tudo isso fosse verdade”.
Identificar a plausibilidade desse cenário alternativo de formação dependerá da modelagem dinâmica dos fragmentos produzidos por uma colisão tão cataclísmica, além de observações futuras de nuvens orbitais de monóxido de carbono.
Além da origem dos cometas, seu maior mistério é: Onde está sua água? Astrônomos ainda não viram qualquer indicação dela, apesar de anos de buscas. “Se esses cometas realmente forem gélidos e ricos em água como esperamos que sejam, esperaríamos ver fotoevaporação de água sendo dissociada em hidrogênio e oxigênio – e nós ainda não vimos isso”, aponta Roberge.
“Ninguém ainda fez uma previsão sólida sobre quanta água deve haver por lá, e se poderíamos já tê-lo vista ou não, mas tudo que temos é essa pergunta incômoda. Alguém provavelmente vai começar a investigar isso em breve”.
Se investigações mais profundas não conseguirem mostrar algum sinal de água nos cometas de Beta Pictoris, explica Kiefer, pode ser que eles sejam muito diferentes de nossos próprios cometas.
Os cometas podem, talvez, ser compostos principalmente de gelo de monóxido ou dióxido de carbono, em vez de água – um prospecto para astrobiólogos esperando que a maioria das estrelas abriguem mundos habitáveis ricos em águas.
Kiefer e seus colaboradores já estão planejando mais estudos profundos sobre os cometas da estrela, e também dos cometas de uma de suas irmãs, nascida na mesma maternidade estelar – uma estrela chamada HD 172555 que já se sabe ter exocometas próprios. Roberge também está estudando vários exocometas recentemente encontrados ao redor de outra estrela, a 49 Ceti.
Observando a história recente de uma estrela distante, mas próxima de seu coração, Lagrange se sente vingada pelas ondas constantes de descobertas. “Nos anos 80, eu não esperava continuar trabalhando na Beta Pictoris depois de 30 anos”, admite ela, adicionando que não estava animada para estudar a estrela em seu doutorado. “Muitas pessoas ficaram céticas em relação ao cenário dos cometas, e não acreditaram que era possível detectar cometas fora do sistema solar; mal sabíamos que os cometas do sistema solar às vezes passavam perto do Sol e evaporavam. Eu fico feliz que esse cenário de cometas tenha sobrevivido a todos esses testes com o passar dos anos”.
Scientific American Brasil
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