segunda-feira, 19 de abril de 2010

Azerbaijão – Uma Visão da Situação no Cáucaso (sobre os atentados em Moscou e Daguestão)



Azerbaijão – Uma Visão da Situação no Cáucaso (sobre os atentados em Moscou e Daguestão)
Paulo Antônio Pereira Pinto

Imagine-se uma região apertada pelo Irã – ao Sul – Rússia - ao Norte - e Turquia - a Oeste - banhada tanto pelo Mar Negro, quanto pelo Mar Cáspio. Se o Cáucaso já não fosse as mais alta cadeia de montanhas da Europa, tais pressões políticas, certamente, teriam forçado a terra a levantar-se e criar tal cordilheira.

Escolha, agora, um grande conquistador: Genghis Khan, Alexandre o Grande, Imperadores Persas, Pedro o Grande, Hitler e Stalin, todos reivindicaram ter conquistado a região caucasiana. Pense numa religião: Muçulmanos Shiitas, ao Sul, Sunnis, ao Norte, e três expressões do Cristinismo em diferentes localidades. Todas convivem nesta parte do mundo.

O escritor Essad Bey, a propósito de outras diversidades regionais, escreve amplamente sobre príncipes e ladrões, no Cáucaso.1 Revela, então, as diferentes formas que legitimavam as duas “categorias sociais”. Ademais, com frequência, segundo o autor, um membro de um grupo transitava para o outro, passando de príncipe a assaltante de caravana ou de saqueador a nobre, com perfeita naturalidade.

Um príncipe caucasiano distingue-se de um europeu, por diferentes razões, além da ausência de brazão de realeza.. Assim, no Azerbaijão, até o início do século XX, antes da invasão soviética, havia: príncipes com terras próprias e súditos; com terras, mas sem súditos; com súditos e sem terras; ou sem terras nem súditos. O ladrão poderia herdar sua profissão ou conquistá-la, por mérito pessoal. Cabia-lhe cobrar tributos dos mais favorecidos, em troca de proteção, ou simplesmente proceder ao saque, no caso de resistência do contribuinte. O Cáucaso, no momento, tem sido objeto de noticiário, não pelos roubos de seus príncipes ou méritos de seus ladrões, mas pelos atos terroristas em Moscou e no Daguestão.

Procuro expor, a seguir, que tais atos de violência são resultado, ainda, da forma desordenada como ocorreu o processo de desintegração da União Soviética. Isto porque, na medida em que o mecanismo ideológico que a sustentava desapareceu, sobreviveram rivalidades criadas e consolidadas pelo modelo de governança stalinista. Este privilegiava lideranças das chamadas “repúblicas soviéticas” que, após o desaparecimento da URSS, insistem em defender prerrogativas próprias que lhes foram outorgadas pelo “velho regime”.

Tais privilégios diziam respeito, principalmente, ao conceito de “autodeterminação”, que veio a provocar o surgimento de “repúblicas soviéticas” – etapa intermediária para a consolidação do socialismo – com capacidade de decisões próprias, com o emprego, até mesmo, de forças armadas a sua disposição. O objetivo final, após aquele período, seria a inserção de todos estes mini governos na moldura de governança maior da então poderosa União Soviética. A etapa posterior, sabe-se, ocorreria, com a universalização do poder do proletariado. A dialética marxista garantiria que, com o desaparecimeto da luta de classes, as referidas repúblicas se dissolveriam, em favor do interesse maior compartilhado por todos, ansiosos por serem conduzidos ao comunismo.

Nessa perspectiva, a origem dos problemas que ainda permanecem no Caúcaso, Norte e Sul – segundo literatura disponível sobre o assunto – encontra-se na complexa interpretação stalinista sobre o significado de “nação”. Em termos reconhecidamente simplificados, é possível entender que, para aquele líder soviético – natural, como se sabe, da Georgia caucasiana – caberia distinguir nação, de raças, tribos, grupos linguísticos ou pessoas que simplesmente habitassem o mesmo território. A nação, segundo ele, seria uma comunidade que teria “evoluído historicamente e se tornado estável”. Tal conceito poderia ser definido em termos de uma cultura comum, a incluir “idioma, território, vida econômica e características psicológicas semelhantes”.

Coerente com o raciocínio do “materialistmo histórico”, Stalin idenficaria, como contradição principal, o surgimento do nacionalismo, principalmente, como resposta à opressão por algum outro grupo social. Isto é, a consciência nacional – da mesma forma que a de classe – surgiria em função da circunstância de que uma comunidade nacional se encontrasse subordinada a outra.

A diferença entre o conceito stalinista de nação e o pensamento “burguês” sobre o tema é, como entendido aqui, que, para este “o nacionalismo seria o caminho para a guerra e o imperialismo”. Para os seguidores do líder soviético, no entanto, apenas um sistema político, que permitisse a nações exprimirem seu desejo de autodeterminação, evitaria conflitos e eliminaria a burguesia do poder. Tal autodeterminação, contudo, deveria ser claramente percebida como sendo “em benefício dos interesses do proletariado”.

Dessa forma, por exemplo, não seria permitido a líderes religiosos revindicarem autodeterminação de uma área, apenas para satisfazer anseios de muçulmanos ou cristãos. Os interesses dos trabalhadores, como um todo, deveriam ser levados em conta, para obter o benefício em questão.”

A integração do Cáucaso à União Soviética – objeto deste estudo – era descrita como “a determinação voluntária de seus povos de unirem-se à classe proletária ao Norte”. Na prática, tratava-se de reviver o antigo Império Russo. Nesse processo, houve tentativas de tratar a região como um agrupamento regional próprio, inclusive com a criação de uma Federação de Repúblicas Soviéticas do Transcáucaso, sobre a qual não haveria espaço para tratar neste texto, que pretende ser sucinto.

O importante para este exercício de reflexão, no entanto, é o fato de que, em meados da década de 1930, foram reconhecidas, em Moscou, três “Repúblicas Autônomas”, ao Sul do Cáucaso, a saber: Armênia, Georgia e Azerbaijão. Ao Norte das referidas montanhas, outras regiões – que interessam a esta pesquisa – foram criadas, com o mesmo nível de autonomia das vizinhas autrais e configuração territorial semelhante à existente nos dias atuais:a Noroeste, o Daguestão tornou-se unidade administrativa; e a Chechênia adquiriu status semelhante. Estas regiões administrativas ao Norte e ao Sul do Cáucaso podiam reivindicar algum nível de legitimidade, em termos de contornos étnicos e certo grau de vínculos culturais e econômicos entre seus habitantes.

Fica claro, hoje, que a liderança da URSS não poderia antecipar, então, que as fronteiras que estavam traçando, viriam, a partir da década de 1980, tornarem-se pretexto para explosões de violência, em defesa, justamente das prerrogativas que tais delimitações geográficas viriam a beneficiar pessoas ou grupos de indivíduos.

Na medida em que novas classes dirigentes foram se consolidando nessas “Repúblicas”, métodos de governança soviéticos vieram a ser adotados, tais como julgamentos e execuções sumários, e “desaparecimentos”. Enquanto estas “modalidades de controle social” íam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades fortaleciam as elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais.

A fase pós-Stalin testemunhou a subida ao poder de nova geração, adepta de métodos menos truculentos para se preservar no Governo, na medida em que as repúblicas soviéticas foram se tornando estados-nações. Ao Sul do Cáucaso, “déspotas esclarecidos” assumiam a direção na Armênia – Karen Demirchian (1974-88) – no Azerbaijão – Heydar Aliyev (1969-82) – e na Georgia – Eduard Shervadnadze (1972-85) . Os três se beneficiaram da ânsia por estabilidade decorrente da turbulência e terror vigentes na fase stalinista. Todos consolidaram feudos virtuais em seus domínios. O problema é que, cada vez mais, grupos fortaleciam seus interesses recíprocos, em detrimento do benefício maior dos habitantes do territórios sobre sua autoridade.

Ao Norte da região, não se desfrutava de processo idêntico. Ao contrário da busca da estabilidade, mesmo que fosse com a consagração de ambições pessoais, Chechênia, e Daguestão – entre as áreas objeto deste estudo que, cabe reiterar, busca identificar explicações gerais para problemas atuais, sem reivindicar exatidão científica – foram marcadas por período de turbulência política, com o início da fase pós-soviética da década de 1990 e início do milênio.

A Rússia, como é sabido, envolveu-se em duas guerras na Chechênia, no período de 1994-96, durante o Governo de Yeltsin, e 1999, no de Putin. Desnecessário lembrar os massacres na escola de Beslan, Ossétia de Norte, e em teatro em Moscou, por combatentes pela independência daquela região ao Sul da Rússia..

De acordo com documentação aqui disponível, haveria três pricipais explicações para tais conflitos e atos de violência. A primeira diria respeito ao fato de que, no Norte do Cáucaso, como ao Sul, revindicações étnicas por antigas classes dominantes foram incorporadas por novas lideranças políticas – já referidas repetidas vezes acima – como argumentos legítimos, de forma a se perpetuarem no poder. A segunda envolve disputas fundiárias históricas, que passaram a alimentar ímpetos genocidas, no interesse de grupos sociais, sempre dispostos a consolidar suas prerrogativas. A terceira pode ser encontrada no repetido emprego da força, por governos de Moscou, tanto para eliminar opositores, quanto para manter governantes que lhe fossem simpáticos. Este último fator contribuiu, sem dúvida, para polarizar as tensões regionais.

Mais importante, com a fase pós-soviética, chegou ao Norte do Cáucaso outra forma de mobilização, expressa no fundamentalismo islâmico. Rapidamente, o discurso radical foi assimilado pelos militantes chechênios, com pesada herança de combate contra os russos, seja contra o Império, na década de 1840-50, seja contra a dominação soviética. Em momento algum – sempre de acordo com a literatura disponível aqui – tais lutas tiveram conotação religiosa, na forma adotada após a implosão da URSS.

Cabe notar, a propósito, que os guerrilheiros passaram a adotar vocabulário de combatentes islâmicos em outros cenários de guerra. Assim, os russos passaram a ser chamados de “infiéis”, seus mortos passaram a ser “mártires” e os simpatizantes de Moscou denominados “hipócritas”. Houve, no entanto, inovações nos procedimentos de relações públicas. Assim, enquanto o rebelde chechênio Imam Shamil 2, no século XIX, escrevia cartas ao Sultão Otomano, hoje, os líderes daquela região criam “sites”, como o “Book of a Mujahideen” e cobram acesso por múltiplos cartões de crédito.

Este texto tem procurado argumentar, portanto, que a violência ocorrida, no Cáucaso, após a desintegração da URSS, decorre, por um lado, da fraqueza e forma desordenada de extinção do Estado Soviético e, por outro, da determinação dos “governos nacionais” que o sucederam – tanto os que obtiveram reconhecimento internacional, quanto os que não o conseguiram, no sentido do emprego da força para preservarem seus egoismos pessoais ou regionais. Não representam, nessa perspectiva, exatamente a defesa histórica de identidade ou destino nacionais.

Assim, reitera-se, cada parte que se envolveu em conflito havia sido privilegiada, durante o período soviético, com uma chamada “administração autônoma”. Daí, a classe dirigente destes enclaves, sem querer renunciar a prerrogativas consagradas, decidiu recorrer ao emprego da força – com o benefício do abundante material militar deixado pelos exércitos soviéticos, em retirada – para transformar antigas instituições soviéticas em novos estados. Não fossem as estruturas administrativas herdadas e certas ambições pessoais que motivavam a preservação de privilégios adquiridos, as guerras pós-soviéticas talvez não tivessem ocorrido.

Na medida em que tais conflitos foram adquirindo vida própria, disputas que, conforme já reiterado, tinham origem pessoal ou regional, passaram a adquirir conotação étnica. Hoje, os conflitos são lembrados como lutas de libertação nacional ou lutas trágicas em defesa de integridade territorial da mãe pátria. Uma geração completa de crianças cresceu sustentada por tais afirmações patrióticas.

Segundo consta, em algumas regiões que hoje reivindicam autonomia, currículos escolares foram reescritos, para convencimento de gerações futuras de que haveria conecção entre supostos estados antigos e atuais.

Em resumo, a desordem pós-soviética no Caúcaso não foi resultado de rivalidades naturais, entre nações em busca de independência, mas, sim, o reflexo da capacidade da comunidade internacional de tolerar algumas formas de secessão e não outras. Assim, secessões bem sucedidas, como as da Armênia, Azerbaijão e Georgia, foram legitimizadas com o reconhecimento internacional e admissão em organizações internacionais.

Aqueles regimes não reconhecidos – Nagorno-Karabakh, Abcássia e Ossétia do Sul – foram vistos, no exterior, como tentativas desesperadas de racionalizar a secessão. Uma diferença óbvia, entre os reconhecidos e não reconhecidos foi, simplesmente, o tamanho. Os não reconhecidos eram insignificantes, em termos populacionais: menos de 200.000 na Abcássia e Nagorno-Kabakh, e talvez ao redor de 70.000 na Ossétia do Sul. Representavam, no entanto, parte expressiva do território dos países reconhecidos, dos quais queriam se separar: cerca de 15% da Georgia e do Azerbaijão.

No início do milênio – segundo dados disponíveis – era difícl para visitantes identificar diferenças de estilo de vida, a ponto de estabelecer identidades nacionais distintas, entre as terras ocupadas pelos habitantes de estados reconhecidos ou não. A falta de eletricidade e outras deficiências de infra-estrutura, a corrupção, a ausência de governança e de governabilidade eram as mesmas.

As diferenças se encontravam, apenas, entre os projetos dos personagens que não queriam renunciar aos privilégios e prerrogativas obtidos durante o período soviético. Suas ambições, no entanto, eram idênticas, através do Cáucaso, fossem seus países reais ou imaginários: manter-se no poder.

Conclui-se afirmando que, no final da década de 1990, e início dos anos 2000, reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre o Cáucaso, continuavam a ressugir, sem que modalidades de governança adotadas durante aquelas sete décadas de escuridão tivessem sido desmanteladas.

Assim, velhos hábitos ligados à doutrina stalinista perduravam, mesmo diante do colapso da estrutura do Estado Soviético. Ao mesmo tempo, partes do Caúcaso, vinculadas a estas práticas antigas mantinham mitos consgrados nos lugares de sempre. Isto tem sido possível, em virtude do legado do pensamento stalinista de vincular nações a territórios, bem como à disponibilidade de armamento soviético, deixado para trás, quando do recuo de seus exércitos, alimentando, assim, a capacidade de destruição mútua das partes que retomaram seus conflitos históricos.

Apenas quando houver o compromisso de desenterrar o passado recente e os responsáveis pelos erros cometidos, durante o período de dominação soviética, tenham seus erros devidamente avaliados, poderia haver mudanças significativas nas formas de governança ou desgovernança no Cáucaso, Sul e Norte.

Nesta região, o presente parece repetir o passado recente, enquanto príncipes e saqueadores continuariam a conviver e confundir-se, sempre em proveito de projetos pessoais.

Notas
1 Essad Bay, “Blood and Oil in the Orient”..Bridges Pulblishing. Germany. 2008.
2 Nicholas Griffin. “Caucasus – A Journey to the Land between Christianity and Islam”. The Chicago University Press. 2004.


Paulo Antônio Pereira Pinto é Diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriorimente, como Cônsul-Geral em Mumbai e, a partir da década de 1980, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com).

Meridiano 47

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