Aos 185 anos, instituição estuda alguns dos maiores mistérios da astronomia atual
Relíquia. A luneta 46, de 90 anos de idade, em cúpula do observatório: equipamento obsoleto só serve para fins educativos devido à poluição luminosa da cidade
FOTOS DE DIVULGAÇÃO/OBSERVATÓRIO NACIONAL
RIO - No início do século XIX, a astronomia moderna ainda engatinhava. Pouco mais de cem anos depois de Isaac Newton publicar sua Teoria da Gravitação Universal, os cientistas ainda recorriam a ideias surgidas na Antiguidade, como o éter e a quintessência, para explicar como o Universo funcionava. Neste contexto, em outubro de 1827 Dom Pedro I criava o Observatório Nacional (ON). A princípio, a instituição tinha objetivos bem práticos e mundanos: aferir a hora oficial do país e demarcar as fronteiras da então recém-nascida nação brasileira, ambas ações dependentes de medições astronômicas em uma época em que não existiam sistemas de posicionamento por satélite como o GPS, e os viajantes usavam bússolas e o posicionamento das estrelas para se orientarem.
— O Observatório Nacional acompanha o Brasil desde seu nascimento, tendo sido criado apenas cinco anos depois da Independência — lembra Teresinha Rodrigues, pesquisadora da instituição que prepara para publicação em breve do livro “Observatório Nacional — Protagonista do desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil”. — Ele teve papel central no levantamento de coordenadas geográficas, fundamental para determinação das fronteiras do país que nascia.
Balão vermelho para indicar o meio-dia
Já a aferição da hora certa foi além de sua função para a navegação, entrando no dia a dia dos moradores do Rio de Janeiro, então capital do país, conta Teresinha. Desde o século XIX e até o início do século XX, um balão vermelho era içado em uma torre no topo do prédio da instituição, no antigo Morro do Castelo, pouco antes das 12h, e seu recolhimento do mastro marcava a chegada do meio-dia.
— Muitas relojoarias da cidade instalavam balões próprios e “retransmitiam” o sinal do observatório, que assim corria toda a cidade — diz a pesquisadora. — Quando da transferência do observatório para São Cristóvão, em 1921, o balão já estava gasto e a torre foi demolida, mas por força do costume e exigência da população o observatório criou um sistema de luzes que continuou marcando a chegada do meio-dia até a completa demolição do morro.
Mas se ao longo de boa parte de sua história o Observatório Nacional foi importante para o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil, sua atuação foi mais modesta no âmbito das pesquisas mundiais. Isso não impediu, no entanto, que a instituição por vezes assumisse um papel de coadjuvante de luxo em algumas descobertas significativas. Jailson Alcaniz, chefe do Departamento de Astronomia, lembra, por exemplo, a participação que os astrônomos da instituição tiveram em uma expedição inglesa em 1919 que veio ao Brasil para acompanhar um eclipse total do Sol na cidade de Sobral, no interior do Ceará, com o objetivo de verificar a previsão feita apenas alguns poucos anos antes por Albert Einstein.
Em 1915, o cientista alemão havia publicado sua Teoria da Relatividade Geral, que desde então tomou o lugar da teoria de Newton como a mais completa a explicar como funciona a gravidade. Pelos cálculos de Einstein, a luz de uma estrela distante deveria sofrer uma deflexão maior do que a prevista pela física newtoniana ao passar pelas proximidades do Sol, em razão da curvatura que sua gravidade provoca no espaço-tempo, o que foi confirmado pela expedição inglesa.
— Foi o primeiro teste e a primeira evidência de que a Teoria da Relatividade Geral estava certa e isso aconteceu com uma participação ativa do Observatório Nacional — destaca Alcaniz.
Hoje, o Observatório Nacional se debruça sobre alguns dos maiores mistérios da cosmologia e astrofísica atuais — a matéria e a energia escuras que comporiam cerca de 96% de tudo que há e cuja natureza desconhecemos, o que curiosamente remete às explicações “esotéricas” para o funcionamento do Universo, como o éter e a quintessência, que os estudiosos usavam no tempo de sua fundação.
— Como todas as ciências, a astronomia mudou muito no último um século e meio — diz Alcaniz. — Naquele tempo, nossa compreensão do Universo era completamente diferente da que temos hoje e não se imaginava que o espaço fosse o quase completo vazio que sabemos que é. Saímos de um quadro obscuro para um de maior entendimento, um movimento enorme graças a muita tecnologia, novos instrumentos e teorias. Mas agora voltamos a um estágio de desconhecimento do Universo que achávamos que tínhamos superado. Temos pela frente o desafio de explicar o que são esses 96% de tudo que há, isto é, a matéria e a energia escuras, que simplesmente desconhecemos.
Essa mudança na astronomia, porém, não se deu só pela tecnologia envolvida, mas também na forma de trabalhar. Antigamente, era comum aquela figura do pesquisador solitário, o astrônomo que passava noites sozinho observando o céu, enquanto hoje a ciência está marcada pelas grandes colaborações, projetos que envolvem pesquisadores e equipamentos espalhados ao redor do mundo. Um destes casos é o Levantamento Astrofísico de Javalambre para a Física do Universo em Aceleração (J-PAS, na sigla em inglês), uma parceria entre Brasil e Espanha que está construindo um telescópio e uma câmera que terão como principal missão investigar a natureza da matéria e energia escuras.
Instalado no topo de uma montanha de 2 mil metros de altura, na serra espanhola de mesmo nome, o Observatório Astronômico de Javalambre terá um telescópio com um espelho de 2,5 metros de diâmetro equipado com a segunda maior câmera do mundo, com uma resolução de 1,2 gigapixels. Chamada de J-CAM, ela está sendo produzida no Brasil e é uma das principais contribuições do país para o projeto, que tem um orçamento total de 30 milhões de euros.
O conjunto deverá começar a varrer o céu em 2014, produzindo, num prazo de quatro a cinco anos, um mapa em três dimensões do Universo até uma distância de mais de 8 bilhões de anos-luz. Com os dados, os cientistas esperam conseguir medir a influência da energia e da matéria escuras na distribuição das galáxias, desvendando assim uma parte de suas características.
— Independentemente de a matéria ser escura ou luminosa, ela age gravitacionalmente, o que faria as galáxias responderem — explica o astrônomo Luiz Nicolaci, também pesquisador do Observatório Nacional e que coordena a participação brasileira em outra grande colaboração internacional, o Levantamento sobre Energia Escura (DES, na sigla em inglês).
Marcas na estrutura do Universo
Mas se a ação gravitacional da matéria escura — que responderia por 80% de toda matéria do Universo, com os 20% restantes compostos pelos átomos e partículas comuns que formam as galáxias, estrelas e nós mesmos, conhecida como matéria bariônica — a torna mais fácil de ser detectada, apesar de invisível, o mesmo não acontece com a energia escura. Neste caso, são várias as teorias dos cosmologistas para explicar sua aparente ação repulsiva, que estaria compensando a gravidade das matérias escura e bariônica e acelerando a expansão do Universo. Por isso, projetos de levantamentos amplos sobre a estrutura do Cosmo como o J-PAS e o DES, que já opera outra poderosa câmera instalada em um telescópio no Chile, são promissores. Neles, os cientistas esperam ver sinais da chamada oscilação acústica bariônica, o “eco” deixado no Universo pelas primeiras formações de matéria logo depois do Big Bang, há cerca de 13,7 bilhões de anos.
— Voltamos a engatinhar na nossa compreensão do Universo. O próprio termo “energia escura” é uma manifestação disso e descobrir o que ela é pode ter implicações profundas na física fundamental, talvez exigindo uma revisão da Relatividade Geral de Einstein — diz Nicolaci. — Durante muito tempo o Observatório Nacional teve uma posição um tanto irrelevante para as pesquisas mundiais, mas agora ele está inserido nos assuntos mais quentes da cosmologia, participando de forma ativa de estudos de ponta, em um processo de integração e interação com quem é quem na astronomia mundial, o que é muito bom para a formação de nossos jovens estudantes. Nossa próxima geração de astrônomos estará muito capacitada e em contato com os principais centros de pesquisa do mundo de uma forma que era inconcebível até um passado recente.
Alcaniz tem uma opinião parecida:
— O Observatório Nacional é uma instituição antiga, mas não está parada no tempo. Minha visão para o ON é de um futuro ainda mais vibrante, com novos resultados e pesquisas sobre algumas das principais questões da astrofísica e da cosmologia atuais.
Jornal O Globo
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