segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Haiti

Um forte terremoto atingiu o Haiti na última terça-feira (12) causando a queda de diversos prédios. Entre eles estão a sede da ONU e o palácio presidencial. O epicentro localizado dentro do território haitiano, a cerca de 15 km da capital, teve profundidade de 10 km. Em 2004, Horizonte Geográfico publicou reportagem que mostra a vida, a cultura e os costumes da população do país.


Metade da população é analfabeta, a economia é de subsistência e o país vive uma intervenção das forças de paz da ONU. apresentamos o lugar mais pobre do continente americano

Que país é esse?, você se pergunta ao chegar. Estamos nas Américas, mas parece algum lugar da África. Não se vêem brancos em lugar nenhum. Deve ser por isso que tenho a sensação de que todos estão me observando. O que faz esse ser raro, coberto de protetor solar e um boné com a bandeira do Brasil andando na rua em meio a um mar de rostos chocolate e cor de mel?

A população haitiana, dizem as estatísticas, é 95% negra. “Às vezes, eu acho que é 99%”, comenta Raymond Flambert, fundador de uma das maiores empresas de material de construção do Haiti e um dos membros da elite local, formada historicamente por mulatos. Raça é algo que faz parte marcante da história do país desde os primórdios da colonização. O Haiti já foi rico, mas era um lugar bem pior que hoje. Pois a riqueza de poucos era baseada na escravidão de muitos.

Primeira colônia da América a libertar os escravos, o Haiti hoje é uma espécie de pária internacional. O país só recebe dois tipos de visitantes estrangeiros. Funcionários – das Nações Unidas, de governos, de ONGs –, ou jornalistas, a minha categoria. Há também os militares da força de paz da ONU, que incluem 1.200 brasileiros do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais.

Fonte de renda

Além desses “visitantes estrangeiros”, há, é claro, os “turistas nativos”, haitianos que moram nos Estados Unidos e visitam seus primos pobres. São fáceis de reconhecer no aeroporto pelas roupas novas ou pelas jóias de ouro. O dinheiro enviado pelos haitianos trabalhando nos Estados Unidos virou uma das principais fontes de renda do país, o que ajuda a entender o grau de pobreza do mais pobre país do continente.

O turismo chegou a ser uma boa fonte de renda nesse país caribenho. Não é mais. Mesmo assim, esperançosamente, os vendedores mantêm o que se poderia chamar de galerias de arte armadas nas ruas. “Espero que quando chegar mais pessoal da ONU eles comprem, por enquanto ninguém está comprando nada”, comenta Paul Batisse, que pinta alguns dos seus quadros com temas como a vida nas favelas, mulheres transportando água, barcos à vela e brigas de galo.

A economia haitiana é principalmente de subsistência. Mercados de rua são numerosos, as calçadas vivem tomadas por camelôs. Mas muitas vezes as mercadorias são apenas a fruta da estação (nessa época do ano, mangas), ou produtos essenciais, como o arroz.

O país chegou a ser um razoável produtor de arroz. Hoje, ele é importado, principalmente dos Estados Unidos, país que sustenta boa parte do Haiti com suas doações. Mesmo o açúcar, o grande produto da era colonial, parou de ser produzido. É mais comum milhares e milhares de haitianos irem trabalhar na colheita de açúcar da vizinha República Dominicana do que fazerem o mesmo no seu país. Mas, mesmo sem açúcar, o Haiti ainda produz um rum de boa qualidade, como o da tradicional marca Barbancourt.

Lutas de libertação

A ilha caribenha de Hispaniola, na qual o Haiti ocupa o terço oeste, começou desde cedo a ser colonizada pelos europeus. No lado oeste, onde hoje fica a República Dominicana, a capital, Santo Domingo, foi fundada já em 1496 por um irmão de Cristóvão Colombo, Bartolomeu, meros quatro anos depois da viagem da “descoberta” pelo irmão mais famoso.
Só no século 17, o lado oeste da ilha começou a ser colonizado, mas por franceses, que chamaram a colônia de Saint-Domingue. A fórmula era a mesma do restante do Caribe e também do Brasil colonial: a cultura de café e açúcar tocada por escravos negros africanos em grandes plantações. A elite colonial branca era certamente próspera.

Influenciados pela Revolução Francesa de 1789, defensora da “liberdade, igualdade, fraternidade”, os escravos – maioria da população – rebelaram-se e viraram a ilha de cabeça para baixo. Um brilhante líder militar e ex-escravo, Toussaint L’Ouverture, tomou toda a ilha, tornando-se governador vitalício, mas depois foi preso e enviado à França, onde morreu. A independência foi conquistada em 1804, tornando-se o Haiti a segunda nação independente das Américas, depois dos Estados Unidos.

Em 1° de janeiro de 2004, o Haiti comemorou seu bicentenário da independência. Triste e ironicamente, ocupado por mais uma força multinacional de intervenção, das tantas que lá estiveram nesses dois séculos. Desta vez, o motivo foi manter a ordem depois que distúrbios políticos levaram ao exílio o presidente Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro. Nessa força estavam tropas dos Estados Unidos, que intervieram mais de uma vez no país, além de ocupá-lo de 1915 a 1934, e da velha metrópole colonial, a França, além do Canadá e Chile.

A capital, Porto Príncipe (Port-au-Prince), foi o palco da maior parte dos dramas políticos desses duzentos anos e cerca de trinta golpes de Estado. Palco é uma boa definição. A cidade lembra um anfiteatro em face do mar, uma baía com águas profundas que facilitam a docagem de navios. Recentemente, quatro desses navios eram da Marinha do Brasil, levando o equipamento do pessoal da força de paz.

Entre os dramas políticos desse povo, o mais famoso foi a longa ditadura de François Duvalier, o “Papa Doc”, de 1964 a 1971. Seu governo incluía doses aperfeiçoadas de pão, circo e violência. Ele encorajava e fazia uso pessoal do culto africano do vodu e do “esporte” nacional, a briga de galo; empregava uma brutal polícia política, os “tontons macoutes”; e não descuidava de servir a todos a dieta básica da população – arroz com feijão. “Papa Doc” foi sucedido pelo filho Jean-Claude, o “Baby Doc”. Quando este caiu, fugindo para a França em 1986, teve início mais uma era de anarquia e governos militares, culminando com a eleição do ex-padre de esquerda Jean-Bertrand Aristide em 1990.

Favelas por toda parte

Como toda cidade colonial, a parte central e mais próxima do porto da capital haitiana inclui os prédios do governo, as principais igrejas, os escritórios dos grandes comerciantes. Mesmo com o descaso, alguns prédios ainda revelam uma singular beleza arquitetônica. Apesar de trabalhar ali, a elite local prefere viver longe dessa área. O Haiti – e isso inclui também a capital – tem muitas regiões montanhosas. Quanto mais alto, mais ameno o clima.

“No Rio de Janeiro, me diziam que os ricos viviam em baixo e os pobres em cima do morro. Aqui, no Haiti, é o contrário. Quanto mais alto, mais rico”, diz o diplomata Lafontaine Saint-Louis, que foi embaixador no Brasil de 1980 a 1984. Ele próprio, um funcionário público de classe média alta, mora em um lugar alto, mas não tão alto. Sua casa, como toda casa de classe média na maior parte das grandes cidades brasileiras, tem grades de ferro, cadeados e cachorro bravo.

O relevo acidentado de Porto Príncipe produz aberrações urbanísticas que lembram um pouco o Rio de Janeiro. Há favelas haitianas também nas encostas dos morros, penduradas precariamente. Alguns morros mostram as marcas do desmatamento e da erosão. Num país com muitos pobres, é preciso madeira ou carvão para cozinhar. Não há dinheiro para comprar querosene (combustível mais usado que o gás). Logo, toda árvore vira rapidamente combustível. E com isso as encostas dos morros ficam vulneráveis às chuvas.

Assim acontecem alguns desastres “naturais” apenas no nome. Dois terços do país são montanhosos. A população do interior muitas vezes opta por viver em vales, mais férteis e menos elevados. Apenas um terço do território é arável. E nos vales acontecem as inundações que podem matar centenas, como ocorreu este ano ao longo da fronteira com a República Dominicana.

Contrastes urbanos

Você pode visitar um dos mais chiques, talvez o mais chique restaurante do país e na saída avistar uma favela vertical de alvenaria. É o caso de quem sai do tradicional Chez Gerard e olha para a esquerda. O restaurante, fundado em 1970, já teve entre seus clientes boa parte da elite político-econômica do Haiti, desde as ditaduras dos Duvaliers, dos generais dos anos 80 e dos populistas de esquerda de Aristide nos anos 90.

O Chez Gerard fica perto de Pétionville, um bairro de classe média, onde estão situados os hotéis El Rancho e Le Crèole, dois dos três melhores do país (o terceiro é o Montana, mais alto na colina e mais chique). Pétionville tem lojas de grifes, restaurantes, supermercados para a elite, cybercafes, galerias de arte. Mas descendo até a região central, as cenas vão deixando de lembrar o Caribe dos turistas para lembrar que aqui é o Haiti, o país mais pobre etc.

No caminho, avistam-se favelas de alvenaria, em geral de blocos de cimento cinza. Mais abaixo começam as favelas mais chocantes, com casas de madeira, papelão, telhas de zinco, de qualquer material que possa servir para tapar e cobrir. Lama, lama, lama. Lixo, lixo, lixo.

Tento registrar em foto na favela próxima ao porto, a Wharf Jeremy, a imagem de carroceiros que empurram uma carroça empacada na lama, transportando madeira. Ao lado, passa uma patrulha de fuzileiros navais americanos, tensos como se estivessem em Bagdá. Eles me avistam fazendo a foto. A patrulha pára, assume posição de combate esperando informações do “point man”, o patrulheiro na frente. Estão indignados, querendo confiscar minha máquina digital por que imaginam que tive a ousadia de fotografá-los. Com a ajuda de Bárbara Walker, americana que me dava carona, o incidente internacional é contornado.

Pobreza crescente, população pobre crescente, problemas políticos endêmicos, a segunda intervenção no país em uma década das Nações Unidas. O Haiti vai precisar de muita sorte nos próximos meses e anos.

Revista Horizonte Geográfico

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