quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O lugar da China no comércio exterior brasileiro


O lugar da China no comércio exterior brasileiro
por Diego Pautasso
19/01/2010
A China tornou-se o maior parceiro comercial brasileiro em 2009, superando os EUA depois de décadas. No entanto, as relações entre Brasil e China indicam mais do que a alteração na hierarquia dos parceiros comerciais brasileiros, mas uma mudança tanto das nossas relações exteriores quanto da própria correlação de forças no sistema internacional. O objetivo do presente artigo de conjuntura é, pois, tentar captar o lugar da China no comércio exterior brasileiro em face das transformações sistêmicas que se aprofundam desde o fim da Guerra Fria.

A mudança das relações exteriores do Brasil tem coincidido com grandes transformações da política e dos negócios internacionais. Durante o século XIX, a Grã-Bretanha tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, em substituição a Portugal; e, durante o século XX, os EUA tomaram o lugar da Grã-Bretanha nos negócios com nosso país. Em outras palavras, a ascensão dos pólos hegemônicos do sistema mundial e as reestruturações do capitalismo têm tido repercussão direta sobre a inserção internacional do Brasil. Dessa forma, a virada do século XX-XXI marca a mudança de lugar da China nas relações exteriores brasileiras, indicando transformações que representam desafios e oportunidades de longa duração para o comércio exterior e a diplomacia do Brasil, justamente num quadro de transição sistêmica.

Em 2009, a China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil, com um fluxo de comércio de 36,1 bilhões de dólares. Isto contribuiu para o país oriental torna-se o principal destino das exportações brasileiras, totalizando um valor de 20,1 bilhões de dólares ou mais de 13,1% do total exportado, enquanto o Brasil é destino de apenas 1,3% das exportações chinesas. E, se considerarmos Taiwan, Hong Kong e Macau, estes últimos que foram integrados real e formalmente à China, em 1997 e 1999 respectivamente, nas estatísticas oficiais do Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior (MDIC), a importância chinesa tem um acréscimo de quase 6 bilhões de dólares na corrente comercial brasileira.

Em razão da crise financeira, os EUA tornaram-se o segundo maior parceiro brasileiro, com 35,9 bilhões de dólares de fluxo comercial em 2009, bem abaixo dos 53,4 bilhões de 2008, em parte devido ao recuo de 42,4% de nossas exportações para o mercado norte-americano. Na verdade, devido à crise, o comércio internacional foi afetado e o brasileiro recuou 22% em relação a 2008, segundo o MDIC, constituindo-se na maior retração desde o início da série histórica em1950. Dessa forma, a crise contribuiu para acelerar a tendência de superação dos EUA pela China como maior parceiro do Brasil.

Neste ano de crise (2009), a Ásia foi o único continente que apresentou crescimento das exportações brasileiras, com aumento de 5,9%. Para a China, as exportações cresceram 23,1%, fazendo o país asiático subir na hierarquia dos parceiros do Brasil e assumir a liderança. Para outras regiões, a queda das exportações brasileiras foi expressiva, pois além da já citada retração de 42,4% dos EUA, a Europa Oriental recuou 38,6% e o Mercosul, 29,9% (com destaque para o recuo de 30,9% da Argentina).

O lugar da China no comércio exterior brasileiro reflete, portanto, um processo mais amplo de diversificação dos negócios realizados pelo Brasil, bem como de mudança da geografia econômica mundial. No âmbito do comércio exterior brasileiro, as iniciativas do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, intensificaram as relações exteriores do país com países periféricos desde o início do governo Lula, em 2003. Os países periféricos, excluindo a OCDE, passaram de 40% em 2003 para quase 54% do comércio exterior do Brasil neste ano (2009).

No âmbito das transformações sistêmicas, o lugar da China nos negócios com o Brasil reflete o processo de multipolarização em curso, com destaque para a ascensão estrutural da economia chinesa e da Ásia Oriental no comércio internacional. O comércio exterior chinês passou de 38 bilhões de dólares em 1980 para 2,5 trilhões em 2008, com um crescimento de mais de 67 vezes em menos de três décadas. A participação chinesa no comércio internacional saltou de 1,02% em 1980 para 6,9% em 2008. A China que ocupava apenas a 16ª colocação em 1997, com exportações de 24,5 bilhões de dólares, tornou-se o maior exportador mundial em 2009, com um total de 1,2 trilhões de dólares, 16% menos do que 2008 (PAUTASSO, 2009). A crise fez o comércio chinês recuar 13,9% na comparação com o ano anterior, atingindo 2,21 trilhões de dólares, com superávit comercial chinês de 196,1 bilhão de dólares, 34,2% menor que 2008, conforme informou a agência Xinhua.

No caso das relações com o Brasil, a China partiu de um comércio de 19,4 milhões de dólares em 1974, ano do reatamento das relações diplomáticas, para 1,2 bilhões duas décadas depois (1994), chegando a 36,1 bilhões em 2009. A tendência de aumento da participação chinesa no comércio exterior do Brasil, tornou-se ainda mais evidente em 2002, quando a China suplantou o Japão como principal destino das exportações brasileiras na Ásia. De uma forma geral, o Brasil tem tido superávits no comércio bilateral, exceção ao período de 1996 a 2000, em que acumulamos déficit de cerca de 551 milhões, somente com a China. Somente em 2009, o superávit brasileiro foi de 4,1 bilhões de dólares com o país oriental.

Com efeito, a crescente importância da China no comércio exterior do Brasil, sugere um conjunto de desafios e oportunidades. Os desafios do Brasil ligam-se à primarização das exportações brasileiras e a falta de preparação para lidar com um novo parceiro como a China, tanto do ponto de vista da formulação de políticas industriais, comerciais e tecnológicas (ICT), quanto do amadurecimento das estratégias de negociação com os chineses.

O risco da especialização produtiva em commodities reflete-se na pauta de exportação do Brasil para a China. Cerca de 70% das exportações brasileiras são formadas de minério de ferro (31,4%), soja (31,4%), petróleo (6,6%), sendo que os outros produtos são essencialmente primários ou semimanufaturados. Como a China cresceu sua participação nas exportações brasileiras e estas estão centradas em commodities, consequentemente a pauta de exportação brasileira foi primarizada. Isto é, as exportações de produtos manufaturados recuaram mais (-27,3%) do que os semimanufaturados (-23,4%) e básicos (-14,1%) em relação a 2008, segundo o MDIC. Já a China, que exportava essencialmente petróleo (97%) para o Brasil entre 1980 e 1984, agora tem uma pauta de exportação centrada em manufaturados, sobretudo, componentes e aparelhos eletrônicos e máquinas, com uma diversificação muito grande de itens (BECARD, 2008).

Nota-se que China e Brasil adotaram opções diversas de inserção internacional no Pós-Guerra Fria. As políticas de ICT no Brasil foram precárias durante o ciclo de liberalização da década de 1990. A abertura comercial sem contrapartidas e planejamento (ou seja, com reforço do protecionismo e apoio às indústrias nacionais nos países centrais), elevação de juros e carga tributária, valorização cambial, restrição do crédito e baixos investimentos em logística reduziram a competitividade do Brasil, dificultando as exportações e favorecendo as importações. O resultando foi uma combinação oposta à opção chinesa de inserção internacional: o fechamento dos mercados externos e a abertura do mercado doméstico. Assim, houve uma quase-estagnação do comércio exterior do Brasil, que passou de 96,4 para apenas 107,6 bilhões de dólares entre 1995 e 2002, sendo que o déficit acumulado foi de cerca de 24,5 bilhões no período da paridade cambial (1995-2000).

Durante o governo Lula, a combinação de ações governamentais com a mudança de conjuntura internacional acabou por favorecer o comércio exterior brasileiro. Ou seja, o governo direcionou o Itamaraty para a busca de novos mercados, atuando em parceria com comitivas de empresários; fortaleceu os quadros técnicos e a dotação orçamentária da APEX; e ampliou o crédito para as exportações através de órgãos como o BNDES. Além disso, capacidade de resposta das empresas brasileiras ao aumento na demanda mundial (PUGA, 2006), combinou-se com a conjuntura internacional de valorização das commodities, como ferro, soja e petróleo, por exemplo, favorecendo a balança comercial. Com isso, o comércio cresceu de 121,5 bilhões de dólares em 2003 para 370,9 em 2008, antes da crise.

Como a China é um parceiro estratégico do Brasil (OLIVEIRA, 2004), as relações bilaterais representam novos desafios nos negócios internacionais do país. Por um lado, os desafios do Brasil nas relações com a China persistem, pois referem-se tanto à adversa política cambial brasileira e ao desvio de comércio com vizinhos (como Argentina), até a falta de preparo da elite brasileira, governamental, intelectual e empresarial, para lidar com esta nova realidade econômica, política e cultural. Por outro lado, abrem-se oportunidades para o Brasil aprofundar sua condição de global player, desbravando o mercado chinês, criando oportunidades de cooperação técnica (como o satélite sino-brasileiro CBERS – Chinese-Brazilian Earth Resources) e diplomática.

O lugar da China no comércio exterior brasileiro reflete, pois, um conjunto de processos de longa duração, representando mais do que uma questão conjuntural ou bilateral. Primeiro, a emergência da China como principal parceiro comercial do país para as próximas décadas, representando desafios e oportunidades inéditos. Segundo, o aprofundamento da diversificação dos negócios internacionais brasileiros, com destaque para a ampliação do peso dos países periféricos. Terceiro, a evolução do processo de multipolarização, cuja emergência dos grandes países da periferia (Brasil, China, Índia) são as principais expressões. Quarto, o fortalecimento de relações Sul-Sul, tornando mais complexo os negócios e as relações internacionais. Quinto, as conseqüentes aproximações sino-brasileiras no campo diplomático, como atestam a criação do Fórum de Cooperação Ásia do Leste-América Latina/FOCALAL (2001), do G20 voltado à OMC (2003) e do grupo BRIC (2009), por exemplo. Em suma, é preciso buscar captar a complexidade das relações sino-brasileiras no século XXI.


Referências bibliográficas
BECARD, Danielly. O Brasil e a República Popular da China. Brasília: FUNAG, 2008.
MDIC. Balança comercial brasileira – países e blocos. Disponível em: [http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=2033&refr=576]. Acesso em: 17/01/2010.
OLIVEIRA, Henrique. Brasil-China: trinta anos de uma parceria estratégica. In: Revista Brasileira de Política Internacional. 47 (1), 2004, pp. 7-30.
PAUTASSO, Diego. O comércio exterior na universalização da Política Exterior da Chinesa no século XXI. In: Meridiano 47 – Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais. Brasília-IBRI v. 113, p. 14-16, 2009.
PUGA, Fernando. Por que crescem as exportações brasileiras? In: TORRES FILHO, Ernani (Org.). Visões do desenvolvimento. Rio de Janeiro, BNDES, 2006.

Diego Pautasso é Mestre e doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é pesquisador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT-UFRGS) e professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM (dpautasso@espm.br).

Meridiano 47

Haiti: Humanitarismo e Política Internacional


Haiti: Humanitarismo e Política Internacional
por José Flávio Sombra Saraiva
18/01/2010
O mundo se curvou aos fatos. O esforço humanitário é urgente para garantir o mínimo diante das conseqüências indeléveis do terremoto no Haiti. A cooperação é o lema e todos querem estar junto aos difíceis trabalhos de salvamento e proteção de desamparados pela imperiosa natureza e pela imprudência dos homens.

A tragédia haitiana, no entanto, se faz dentro da reedição das duras disputas da política internacional do momento. Depois de Copenhague, onde pesou o arranjo sino-americano, o Haiti é o novo palco para a exibição dos interesses e das quedas de braço do sistema internacional em momento de redesenho de hierarquias. Abandonadas pelas grandes potências, que minguaram recursos e esforços diplomáticos para o alívio da pobreza no Haiti e em países miseráveis que o mundo ainda abriga, são essas mesmas potências que agora coordenam a operação do aplainar os cemitérios do país caribenho.

Silenciou-se repentinamente o discurso monocórdio do combate irracional e linear ao chamado terrorismo internacional, conceito ainda não bem definido, de Bush a Obama. Tudo agora é humanitarismo nas lágrimas de crocodilos dos líderes cínicos quando apenas agora, já tarde, ouvem-se discursos de desdobrada atenção ao drama do Haiti. Atores e músicos famosos fazem o cordão de proteção ao humanitarismo renovado do Norte. Não faltarão festivais em estádios e cordões de solidariedade romântica aos pobres haitianos.

Politiza-se a ajuda internacional, como no caso do clima, dos direitos humanos, e outros temas da agenda renovada das relações internacionais, quando o que importa é o esforço de salvar vidas. Os chineses foram os primeiros a chegar à ilha caribenha. Inflacionaram o aeroporto combalido da capital do país e deixaram apenas espaço modesto para aeronaves dos Estados Unidos, da Europa, do Canadá e do Brasil. Os Estados Unidos correram atrás dos chineses uma vez que o Caribe é área natural de hegemonia natural e concêntrica dos ianques. Apresentaram-se como os únicos capazes de salvar os flagelados.

Acompanhar a cobertura internacional, das agências britânicas, francesas e alemãs, na Europa desses dias, é hilário. O Haiti preencheu o noticiário monótono do frio polar e da neve. É como se no Haiti não houvesse passado, mas apenas terra arrasada, em descoberta tardia das responsabilidades internacionais antes não reconhecidas. O silêncio das grandes potências em relação aos projetos brasileiros, apresentados anos atrás, de construção de infra-estruturas e autonomia energética no Haiti, é gritante.

O Brasil - em seu esforço de governo, da sociedade organizada e suas ONGs, mas em especial dos sacrifícios pessoais dos militares brasileiros, em missão convertida e gerenciada pela ONU no Haiti – vem sendo apenas discretamente reconhecido. Obama agora quer oferecer os famosos 100 milhões de dólares que o Brasil já havia solicitado para obras de infra-estrutura no país. Aqui, na Europa, nada se sabe acerca da obra de Zilda Arns no Haiti, nem que ministro brasileiro foi a primeira autoridade internacional a pisar o solo tremente da ilha. A lógica é mostrar Obama, Sarkozy e outros líderes do Primeiro Mundo isolados, a domesticar a opinião pública e os interesses eleitorais. Espero que o Brasil não faça o mesmo.

A coordenação dos esforços de construção do Haiti deve ser multinacional, a recordar que o esforço humanitário é apenas uma etapa para o longo prazo, de fortalecimento das instituições e da cidadania, ao lado da reconstrução social e econômica do país. Passada a comoção do momento, valerá acompanhar o dia seguinte. O esquecimento é em geral o que se espera. Pois que se tome uma lição do Haiti para a política internacional: o pêndulo está excessivamente angulado no realismo global e nos egoísmos nacionais. Era hora de movê-lo para a dimensão humana das relações internacionais, que prescinde do humanitarismo, para ser apenas humana a face desejável dos sonhos de um mundo melhor.

José Flávio Sombra Saraiva é Professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais – IBRI (fsaraiva@unb.br).

Meridiano 47

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Novas tecnologias e divisão do trabalho: relendo a Ideologia Alemã

Novas tecnologias e divisão do trabalho: relendo a Ideologia Alemã

Victor Meyer

Em sua notável caracterização do capitalismo, o Manifesto Comunista de 1848 já assinalava a vocação desse sistema para revolucionar constantemente as forças produtivas. "Tudo que é sólido se desmancha no ar". A concorrência entre capitalistas e a permanente contradição com o trabalho coloca o capital em ininterrupta tensão, obriga-o a transformar métodos, técnicas, máquinas e processos industriais, produzindo mais-valia relativa.

Durante parte do século XX chegou-se a pensar, contudo, que o sistema capitalista poderia afinal ter encontrado, ao menos sob certo ângulo, uma espécie de platô no qual permaneceria estabilizado. O conjunto de procedimentos industriais enquadráveis sob a denominação de taylorismo parecia corresponder ao modo de organização do trabalho inerente ao capitalismo e, na condição de ponto de chegada de uma evolução, passaria a acompanhar a existência do capitalismo como uma marca definitiva.

No entanto, não seriam necessárias mais que duas décadas, desde o final da Segunda Guerra Mundial, para que surgissem sinais de que o capitalismo começava a produzir modificações também nesse campo. O Japão, premido pela concorrência com os EUA, impossibilitado de obter vantagens pela via da ampliação da produção em escala, começou a elaborar certas inovações, inicialmente sob a forma de novas tecnologias organizacionais. Produzindo preferencialmente sob encomendas e com baixa formação de estoques, foi possível alcançar vantagens na concorrência pela via da diversificação dos produtos.

Posteriormente, uma inovação bem mais marcante iria incidir sobre o rumo dessas mudanças. O uso da microeletrônica criaria a base técnica para o desenvolvimento desses novos padrões de produção. As tecnologias organizacionais ("ilhas" de produção, qualidade total, etc.) iriam encontrar uma base técnica mais adequada nas tecnologias de automação flexíveis: máquinas reconversíveis à base do complexo microeletrônico, anunciando para o velho taylorismo, já numa faixa visível do horizonte, a sentença da sua superação.

Essa flexibilização abre sobre o nosso tempo novas possibilidades para o avanço das forças produtivas: primeiro, porque permite encerrar os tempos mortos na utilização das máquinas, transformando-os em tempos produtivos; segundo, porque viabiliza a reprogramação da maquinaria com enorme rapidez, elevando a novas dimensões a diversificação da produção e a possibilidade de atendimento imediato às demandas mais específicas e mais individualizadas: algo inimaginável dentro dos padrões rígidos que caracterizaram durante um longo tempo histórico a produção em bases eletromecânicas1 .

Com os equipamentos de automação flexível, uma instalação básica elementar passa a admitir incontáveis alternativas de reprogramação. A produção sob encomendas ganha um novo significado, gerando-se a possibilidade de uma integração muito estreita entre o demandante (até individual) e a capacidade de pronto atendimento por parte do complexo produtivo.

Tendencialmente, vislumbra-se a necessidade de um outro tipo de formação ou capacitação técnica dos trabalhadores, na medida em que venham a disseminar-se as exigências de um preparo mínimo para operar as instalações básicas, e de uma simultânea capacidade para operar as adaptações subsequentes.

Em síntese, a chamada terceira revolução industrial, em curso nos países capitalistas centrais na atualidade, traz pelo menos duas conseqüências, se analisada sob o ângulo aqui proposto:

1) introduz tecnologias flexíveis e, nessa medida, aproxima de tal forma a estrutura da produção das demandas sociais (e individuais) que torna realista admitir-se a possibilidade de uma futura "volta" (num sentido dialético, como superação) ao sistema de encomendas dos tempos em que predominava o artesanato;

2) combina instalações básicas com a prerrogativa de sua reconversão ou reprogramação, tendo em vista a elaboração dos mais diversos produtos; em conseqüência, passa a exigir trabalhadores com preparo bastante distinto do trabalhador taylorista. Enquanto tendência, introduz a exigência de uma formação básica generalista associada a uma capacidade de criar adaptações especialistas de modo a viabilizar a diversificação produtiva.

Uma releitura de texto clássico de Marx e Engels

Deixemos de lado, agora, o terreno no qual nascem essas transformações, quer dizer, a sociedade capitalista, e coloquemos a discussão no terreno abstrato de uma futura sociedade socialista avançada. Questionemos, assim, as repercussões que tais mudanças já em curso nas forças produtivas da sociedade podem provocar sobre certos axiomas marxistas relativos à futura sociedade.

Por exemplo: uma das passagens da obra A ideologia alemã de mais forte apelo utópico é aquela na qual Marx e Engels associam o comunismo ao fim da divisão natural do trabalho. Essa última (a divisão natural do trabalho) seria produto da sociedade de classes, permaneceria durante o socialismo apenas como herança em extinção, mas seria definitivamente superada na etapa superior do comunismo. Textualmente:

Com efeito, desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada indivíduo tem uma esfera de atividade exclusiva que lhe é imposta e da qual não pode sair; é caçador, pescador, pastor ou crítico e não pode deixar de sê-lo se não quiser perder os seus meios de subsistência. Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, tudo isto a meu bel prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico.2

Mesmo em momentos nos quais os escritos de Marx eram assimilados incondicionalmente, essa passagem de A ideologia alemã era aceita com alguma dificuldade. Dado o próprio método materialista, que vincula as visões do futuro às tendências já visíveis no presente, uma previsão como essa podia sugerir uma mera ficção. Marx, por certo, pôde sentenciar essa caracterização do futuro porque discorria em alto grau de abstração, projetando para a futura sociedade sem classes aquilo que, em níveis baixíssimos de condições materiais, teria existido nas precedentes comunas primitivas. Sua base de sustentação era, aparentemente, as formas econômicas rudimentares do passado e não o presente concreto do capitalismo, uma vez que, em meados do século XIX, não se encontrariam fatos para respaldar semelhante incursão sobre o futuro.

Porém, cento e cinqüenta anos depois de escrita A ideologia alemã, as transformações em curso no interior da sociedade capitalista nos permitem reavaliar o problema, considerando as forças produtivas hoje disponíveis e os respectivos horizontes por elas abertos. O extraordinário desenvolvimento tecnológico havido no decorrer desse século e meio nos coloca num patamar de tal modo elevado que, já ao se observarem as tendências em andamento diante de nós, pode já se tornar intuitivamente admissível, enquanto perspectiva, a utopia comunista da divisão voluntária do trabalho.

Está óbvio que as tecnologias de automação flexível estão ainda nascendo e imensas mudanças ainda precisariam ocorrer para tornar a divisão voluntária do trabalho algo concreto. O que importa ressaltar, no entanto, é que a possibilidade do referido cenário futuro passa a encontrar respaldo embrionário (concreto) nos fatos atuais. O domínio coletivo sobre os conhecimentos básicos e a possibilidade de desenvolvimento desses conhecimentos para atender às necessidades das reconversões tecnológicas rápidas abre, em tese, um cenário para a realização da utopia comunista: quando a sociedade regulará a produção geral e permitirá ao trabalhador individual variar suas atividades ao seu bel prazer.

Enseja a rediscussão de teorias sobre a planificação e o comunismo

O fracasso do socialismo soviético deu grande impulso a um questionamento à própria viabilidade da planificação econômica. A disfunção generalizada da planificação soviética estava diretamente ligada à burocratização do Estado, ao estabelecimento de um centro tutelar que interpretava as necessidades sociais e, pela via da estimativa, ou sob a inspiração de interesses particulares da própria burocracia, as traduzia no Plano.

Uma das vertentes de crítica à experiência soviética, apoiada no marxismo clássico, contrapunha à planificação burocrática e tutelar a planificação social.3 Mas, no embate com os áulicos do capitalismo, a defesa da eficácia da planificação social parecia perder argumentos capazes de aceitação intuitiva sempre que esses críticos levantavam uma tese inspirada no senso comum: o atendimento às demandas sociais pelo Plano Econômico seria impraticável exatamente pelo fato de serem essas demandas, por natureza, mutáveis e inúmeras (portanto não enquadráveis em qualquer plano prévio).

O debate esteve, pelo menos até os últimos anos 70, às vésperas da crise final da URSS, cerceado por força de uma circunstância histórica: não havia, então, evidências concretas que pudessem ilustrar de forma convincente a operacionalidade da planificação social. A defesa da planificação alternativa aparecia muito mais como postulado ideológico, como credo, sem no entanto encontrar bases empíricas de fácil demonstração. Embora parecesse óbvio que o Plano deveria ser traçado a partir das necessidades sociais e não a partir das estimativas da burocracia, restava esclarecer de que modo as necessidades sociais poderiam revelar-se a tempo para lograr sensibilizar a parafernália produtiva e promover com eficiência os efeitos esperados.

Oskar Lange observou certa vez4 que cabia ao computador fazer no socialismo aquilo que o mercado faz na sociedade capitalista: a informática daria consistência à mão visível dos planificadores, cruzando as inúmeras demandas sociais com os insumos produtivos disponíveis. Ainda assim, permanecia um cenário complicado para a planificação socialista, dada a rigidez do aparato da produção. Cada mudança na demanda social exigiria tempo até que o complexo de máquinas disponíveis pudesse receber os sinais indicadores das novas demandas e, o que é mais importante, até que pudesse reaparelhar-se para atendê-las, superando o obstáculo decorrente do caráter mutante e do dinamismo das necessidades humanas.

As inovações que o capitalismo cria na atualidade, ao introduzir na cena as tecnologias de automação flexível, admitem (em tese), no entanto, uma recuperação, em nível altamente superior, dos antigos processos de produção artesanal. O atendimento às encomendas pode atingir o nível de personificação que, no passado, marcava os produtos dos artesãos. Uma imagem algo fantástica de um futuro possível insinua-se no horizonte, onde um complexo industrial altamente desenvolvido poderá ser capaz de atender rapidamente às mais detalhadas e variadas demandas individuais.

Concluímos com a consideração de que a planificação social ganha novas condições de eficácia por conta dos embriões atuais das novas tecnologias, fato que atribui mais um toque de realismo a diversas teses marxistas acerca do comunismo: sobretudo, as tendências em desenvolvimento dão nova base material às teses sobre a planificação econômica e, — para retornarmos a A ideologia alemã, — permitem um novo ângulo através do qual se pode reler a clássica passagem de Marx e Engels quanto à futura divisão voluntária do trabalho.

Assim sendo, nesse momento, nesse final de século, cento e cinqüenta anos depois de escrita, nada mais adequado do que reafirmar a inteligência daquela célebre evocação do futuro: no comunismo, é a sociedade que regula a produção geral; e a divisão voluntária do trabalho permite a cada um escolher o que fazer hoje ou amanhã, caçando pela manhã, pescando à tarde e fazendo crítica depois da refeição, - sem por isso se tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico ...

Notas

(1) TAUILE, J. R. Novos padrões tecnológicos, competitividade industrial e bem-estar social: perspectivas brasileiras. In: VELLOSO, J. P. R. (Coord.). A nova estratégia industrial e tecnológica: o Brasil e o mundo da III Revolução Industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. p.142-50.

(2) MARX, K., ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1974. p.40-1.

(3) MEYER, V. Determinações históricas da crise da economia soviética. Salvador: EDUFBA, 1995, passim.

(4) LANGE, O. The computer and the market. In: NOVE, A., NUTTI, D. M. (Ed.). Socialist economics: selected reading. Middlesex: Penguin Book, 1974, passim.

Victor Meyer é mestre em Economia, doutorando em Administração Pública e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade Católica do Salvador.

Revista Olho da História

Perspectivas para o trabalho


Perspectivas para o trabalho

Rene Revol


Já faz agora dois a três anos que uma idéia invadiu as ciências sociais, tentando forjar novas idéias para o grande público: o desemprego que se espalha sem mostrar sinais de retrocesso seria apenas uma crise de emprego ligada à crise econômica aberta ou latente, que vem de 1974, mas que se ligaria mais fundamentalmente a uma crise do trabalho enquanto tal, a um questionamento da centralidade do trabalho em nossa civilização. São incontáveis os artigos e contribuições a respeito, sendo os principais amplamente difundidos, fato atestado, por exemplo, pelo sucesso de livraria de Le travail, une valeur en voie de disparition, da filósofa e funcionária do Ministério do Trabalho francês, Dominique Méda. Tal sucesso é facilmente compreensível: o desemprego dissemina-se como uma praga, parece resistir a todas as conjunturas, tanto de recessão como de crescimento, assim como a todas as políticas e todos os remédios. Impõe-se a idéia de que as causas devem ser profundas e estruturais, que estão talvez ligadas a atributos fundamentais e de nossas modalidades de produção e existência.

Também para o marxismo, o desemprego não é um mal passageiro; é, porém, uma necessidade do modo de produção capitalista e só poderá desaparecer com ele: qualquer reabsorção do desemprego só pode ser provisória. A esse respeito, é divertido constatar que a tese da excepcionalidade do crescimento forte com pleno emprego durante os pretensos "trinta anos gloriosos", defendida até o início dos anos 80 por uma minoria de autores marxistas, é hoje retomada pela imensa maioria dos pensadores em moda, só que agora para fustigar um apego conservador dos assalariados ao pleno emprego! Por exemplo, a organização patronal Centro dos Jovens Administradores escreve em 1994, num artigo intitulado "L’ilusion du plein emploi":

Nossa cultura mais imediata enraíza-se no período pós-guerra, o dos Trinta Gloriosos, quando o pleno emprego permitia dar a cada qual um lugar na sociedade, superar a contradição entre o econômico e o social e regular as relações entre a empresa e a sociedade. Essa situação fez-nos tomar por "regra" o que jamais foi se não uma exceção histórica.



A partir daí se pode derivar a temática do declínio inexorável do trabalho em todas as suas funções. Os autores concernentes têm o hábito de analisar esse declínio em torno de três funções principais:

o trabalho como modo de produzir bens e serviços, sob o efeito de novas tecnologias;

o trabalho como o fornecedor de um emprego e de rendimentos, agora sob o efeito do desenvolvimento de atividades não remuneradas e de rendimentos sociais;

o trabalho como meio de integração social, com os indivíduos realizando suas personalidades em muitas outras áreas de atividades (família, lazer e esporte).

Jean Boissonat contribuiu para a popularização deste último ponto de vista no relatório da Comissão do Planejamento (francês) "Le Travail dans vingt ans" (1995).

Pode-se imaginar o alcance e as conseqüências de tais análises e a importância de se esmiuçá-las.

O pleno emprego morreu, viva a plena atividade?

Essa afirmação, de Michel Godet, expressa bem o ponto de partida de todo um pensamento em moda. Uma florada de autores exprime-se nesse sentido. Jacques Robin: "Cabe-nos tender não mais a uma sociedade de pleno emprego, mas sim a uma sociedade de plena atividade". Xavier Gaullier: "está globalmente em jogo saber como passar da sociedade das exclusões maciças, da sociedade flexível e seletiva, para uma sociedade diversificada de plena atividade." Yoland Bresson: "o pleno emprego salarial terminou; outro contrato social deve ser proposto; outro objetivo: a plena atividade". E muitos outros poderiam ser citados.

O essencial desse discurso é, pois, fazer uma distinção muito clara entre emprego e atividade. Assim, o Centro de Jovens Administradores vê duas lógicas diferentes:

A primeira que chamaremos lógica do emprego assalariado, confunde trabalho e emprego. Ela promove uma regulação do sistema por uma série de medidas, que teríamos de aceitar, a fim de que a maioria das pessoas possa ter acesso ao emprego salariado. A segunda, a lógica da atividade, é mais inovadora. Ela faz uma distinção entre o trabalho e o emprego. Neste momento em que os modelos existentes desabam um após outro, ela imagina um modo de regulação baseado no questionamento dos próprios fundamentos de nossa civilização.



Mesmo se a fala carece ainda de precisão, vê-se bem que a distinção entre atividade e emprego serve de vetor a um questionamento mais profundo do lugar do trabalho na sociedade. Mas o que se entende por atividade? A vagueza de tal palavra-veículo pode encobrir acepções bastantes variadas. Decifrando um pouco os textos em moda sobre o assunto, pode-se ver um continuum de definições que variam entre dois pólos. De um lado, uma definição liberal, que apresenta a atividade como uma válvula de escape para todos os que não mais encontrassem seu lugar num mercado de trabalho saturado; este podendo, por isso mesmo, tornar-se mais flexível e oferecer menor garantia social. É, por exemplo, a tese de Michel Godet, que atribui o desemprego à rigidez do mercado de trabalho, particularmente a existência de um salário mínimo, que não propõe suprimir, substituindo por uma renda mínima de existência universal. Nesse espírito, atividade designa de fato empregos que não teriam mais quaisquer das garantias do emprego salariado padrão, para os quais a justiça do trabalho não existiria e onde a remuneração mínima permitiria evitar que esses ativos afundassem na pauperização.

Esse ponto de vista, que se escreve na lógica liberal de desregulamentação, pode surgir sob outros autores, que não se esperava ver nesta corrente. Assim, para o antigo conselheiro de Pierre Mauroy (1º ministro socialista do Governo Mitterrand), Bernard Brunhes: "pode haver pleno trabalho ou plena atividade, se soubermos renunciar a antiga rigidez". Ou ainda o filósofo Jean Marc Ferry, apresentando seu projeto de alocação universal, de amplitude tão generosa que permitiria desenvolver setores sociais não rentáveis por meio de uma maior rentabilidade dos setores não produtivos.

De outro lado, certos autores defendem uma concepção de atividade baseada exclusivamente em razões sociais, que fazem dela uma espécie de extensão do assistencialismo. Uma vez que a exclusão do trabalho ameaça romper os laços sociais com um número crescente de indivíduos, tratar-se-ia de encontrar uma ocupação para essas pessoas, mesmo sem salário, mesmo sem retribuição, para evitar que fiquem relegados da sociedade e permitir a cada um a permanência, por meio de atividade úteis, conforme escreve Guy Roustang:

atividades que escapem às normas de relacionamento empregatício de nossa sociedade e que sejam adaptados às possibilidades e desejos de cada um, permitindo a reintegração no jogo coletivo, quer se trate de atividades de autoprodução individuais ou coletivas, no domínio da alimentação, do melhoramento da habitação ou da conservação de bens duráveis, quer se trate de atividades de lazer.



À parte o fato de que os operários (estes sim assalariados normalmente!) não esperaram nossos novos pensadores para se entregar às alegrias da jardinagem, da manutenção doméstica e da ajuda mútua entre amigos e vizinhos (às vezes ditada pela insuficiência de rendimentos) — seria melhor, tudo somado, chamar as coisas por seu nome habitual! —, não se vê bem como tudo isso poderia sustentar um homem e sua família; e daí a idéia de uma renda universal, que permitiria dispor de um mínimo para viver aos que "se ocupassem" sem ter um emprego remunerado.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento da atividade é um meio de luta contra a exclusão social. Assim, para o Centro dos Jovens Administradores:

Se o emprego assalariado não pode mais desempenhar seu papel de integrador social, capaz de assegurar para cada homem uma função, um rendimento e um status, e se recusarmos o espectro de uma sociedade de excluídos e assistidos, então precisamos fazer uma atividade, isto é, uma forma de participação na vida da coletividade e emprego assalariado, que não é mais que uma forma de atividade entre outras.



A lógica de tal concepção leva a propor uma ruptura da relação emprego-rendimento e a implantação de um rendimento parcial, determinado do modo coletivo, separadamente do emprego.

Esta segunda corrente, mais social que liberal, é levada assim a assimilar a importância de um rendimento cada vez mais socializado e cada vez menos ligado a uma participação individual na produção. O defeito dessa tese é que, se é verdade que atualmente nos países capitalistas avançados 30% e 50% do rendimento doméstico é socializado, isso é diretamente dependente dos benefícios e posições conquistados pelos assalariados. E se pode apostar com boas chances que, se for cortado o laço entre rendimento e emprego, assim desaparecendo a relação social que sustenta a parte socializada do rendimento, esta ficará reduzida a uma esmola de sobrevivência.

Após este apanhado rápido, transparece que a concepção liberal e a concepção "caridosa" de atividades não contribuem significativamente para esclarecer essa palavra-veículo. Pode-se distinguir com P. Sauvage, quatro tipos de atividades, a partir da mais até a menos rentável economicamente:

a) artesanato e pequeno comércio de sobrevivência;

b) comércio de proximidade economicamente inviável;

c) serviços de proximidade, exigindo um financiamento público, total ou parcial;

d) "as atividades de relação humana, nas quais a dimensão gratuidade deve ser absolutamente preservada".

No fim das contas, a atividade aparece como tudo o que o mercado não pode tomar em consideração e que releva de uma atividade social. Em tais condições, legitimamente perguntar por que "atividade", mais ou menos remunerada, substituiria " serviço público "e "serviço social" que, no quadro do Estado e da proteção social, dão lugar a verdadeiros empregos salariados. Não é preciso ser grão-letrado para se dar conta de que, ao mesmo tempo que esse conceito permanece etéreo, a martelagem sobre a atividade como substituta do emprego acompanha com perfeição o questionamento dos direito e garantias dos assalariados, o qual, sim, é bem real.

O esforço dos mais generosos dos pensadores por fazer com que essa emergência de atividades sociais dê lugar a um "estatuto" ou a um "reconhecimento social" só serve como correção de rodapé a um empreendimento de desregulamentação do estatuto salarial, já em plena marcha. E a proposta de juntar atividades lado a lado com empregos verdadeiros, acaso não se orienta para uma sociedade explicitamente dual, bem diferente da sociedade de classes que conhecemos? A oposição entre grupos sociais participantes da mesma esfera produtiva, com posições hierárquicas e rendimentos diferentes, seria substituída por universos sociais completamente separados, sendo que pode, rendimentos decentes e consideração estariam evidentemente só de um lado. Alguns desses autores se deram conta disso, como Guy Roustang, por exemplo, que, após uma resenha crítica das ambigüidades da noção de atividade, afirma que o objetivo do pleno emprego não se deve ser abandonado, se ao mesmo tempo se quiser dar toda a sua dimensão à pluralidade de atividade de uma vida humana.

Isso dito, não é por que a noção de atividade seja vaga e perigosa que o problema expresso por sua aparição não existiria; noutros termos: está o trabalho em declínio?

O chip destrói o emprego?

O trabalho seria, pois, cada vez mais raro a essa rarefação é que produziria uma reviravolta considerável no sistema de emprego. A primeira explicação disso apoia-se sobre os efeitos das mutações tecnológicas, principalmente na informática; esse discurso, já antigo, funciona sempre muito bem, principalmente porque é apresentado com ares de revelação: estaria ocorrendo um fenômeno extraordinário, que ninguém vê, que logo se imporá a todos, e não teríamos outra solução se não aceita-lo.

Nesse papel de grã-sacerdote da mutação tecnológica pode-se lembrar Jacquesa Robin, com uma obra, apesar de tudo, interessante, Quand le travail quitte la société postindustriele: "pode-se prever, certeiramente que, de forma incansável, a revolução da informática produzirá sempre mais objetos, bens e serviços, com cada vez menos trabalho humano".

A tese é forte ... mas é falsa, conforme assinalam economistas de diferentes áreas. Com efeito, para supor crescimento econômico sem criação de emprego é preciso que a produtividade do trabalho cresça mais forte do que o PIB. Ora, desde o começo da crise, constata-se uma queda constante dos ganhos de produtividade. Comparando-se o período de crescimento forte dos anos 60 ao de crescimento reduzido, sobre tudo após o início dos anos 80, vê-se no primeiro uma taxa de crescimento do PIB e da produtividade do trabalho próxima de 5% e, no segundo, em torno de 2%. Em resumo, a partir da crise, a produtividade conhece uma desaceleração paralela à do crescimento do PIB, se o desemprego fosse de origem essencialmente tecnológica, teria que ocorrer um crescimento da produtividade maior que o do produto.

O desemprego é, portanto, muito ligado a uma queda de crescimento, mesmo que sua amplitude e permanência possam ser explicados pela junção de outras causas, principalmente pelo fato de que, diante da desaceleração conjuntural, o patronato utiliza a mão-de-obra como primeira "variável de ajuste", ou ainda, como assinala justamente Michel Housson, limita a redução da jornada de trabalho. Diga-se de passagem — pois não é diretamente nosso assunto — que a luta contra o desemprego supõe certamente uma política de crescimento, mas que deve ser travada juntamente com uma regulamentação do mercado de trabalho e uma drástica diminuição do tempo de trabalho.

Uma vez amplamente relativizada a explicação tecnologista para a rarefação do trabalho, podemos voltar às explicações que buscam demonstrar que se estaria desenvolvendo uma dimensão nova, do trabalho ou da vida humana, a qual se oporia ao trabalho tal como o conhecemos até hoje. Essas explicações são muitas vezes usadas como fundamento para a distinção entre emprego e atividade, que acabamos de analisar.

Liberdade por meio do não trabalho?

André Gorz prossegue nesse terreno uma reflexão continuada há muitos anos. Ele distingue o trabalho heterônomo (isto é, trabalho coagido, definido como "o conjunto de atividades que os indivíduos devem cumprir em funções coordenadas do exterior por uma organização pré-estabelecida") e trabalho autônomo, em que os indivíduos exercem livremente sua atividade. O trabalho heterônomo releva a esfera da necessidade e do trabalho autônomo e a esfera da liberdade; e nossa sociedade capitalista restringiria o espaço do segundo em proveito do primeiro. Seria possível reconhecer um linguajar marxiano nesse elogio da passagem da necessidade à liberdade, desde que se esquece que Marx atribui uma dupla natureza ao trabalho salariado em si e que o salto para a liberdade, segundo ele, supunha a emancipação nas próprias relações de trabalho. Ora, Gorz, considerando irredutível a esfera da necessidade (a heteronomia), propõe reduzi-la e encontra na extensão da autonomia extra trabalho o meio da emancipação.

A libertação, portanto, não se daria dentro das relações de trabalho, condenadas a permanecer hoterônomas; a libertação passaria pela extensão dos lugares onde os indivíduos "produzem de forma autônoma, fora do mercado, sós ou livremente associados, bens e serviços materiais e imateriais não necessários, mas atendendo aos desejos, aos gostos e à fantasia de cada um".

Tudo isso é belo e grandioso, tem um perfume libertário e alegre, ressalvada a dúvida de que a extensão do não-trabalho nesta sociedade seja um fator de emancipação (pode-se aconselhar Gorz a dar uma olhada no horário nobre da televisão francesa TF-1, por exemplo) ... Mas isso tem uma conseqüência por outro lado mais temível: ela abandona a esfera do trabalho salariado a sua heteronomia e considera necessariamente as lutas de emancipação nas relações de trabalho como ilusórias. Aliás, Gorz intitulou uma das suas obras Adeus ao proletariado e nela vê a "não-classe dos trabalhadores" como "sujeito social potencial da abolição do trabalho". Essa conclusão de um pensamento que, em certos momentos, é interessante e tem um charme provém do abandono da dupla natureza do trabalho alienado, em troca de uma visão dualista, separando duas esferas que, na realidade, se interpenetram. Como imaginar que a esfera da autonomia poderá se desenvolver e expandir segundo os desejos e gostos dos homens se estes renunciarem ao controle social da esfera da heteronomia? As condições nas quais os indivíduos exercem seu trabalho salariado (salário, tempo de trabalho, condições de trabalho, transportes, stress etc.) só podem limitar o surgimento de desejos e gostos livres. É quase penoso ter que lembrar tais evidências. Isso é ainda mais verdadeiro para outros autores, como Sue, por exemplo, que vê na extensão do lazer o meio de emancipação humana, esquecendo que nem toda hora de trabalho a menos é necessariamente hora de tempo liberado.

Avançando para uma sociedade pós-industrial?

A perspectiva comum a numerosos autores é o abandono da sociedade industrial por uma sociedade baseada em serviços e chamada, segundo a moda, pós-industrial, informacional, servicial ... A tese não é nova. O americano Daniel Bell, nos anos 60, e Allain Touraine, pouco depois, fizeram-se profetas nessa perspectiva, segundo a qual estaríamos passando de um sistema produtivo fundado sobre a transformação da matéria em bens materiais para uma produção de bens imateriais e de serviços, em que as atividades diretamente produtivas seriam suplantadas pelas atividades de circulação e informação. O trabalho ficaria radicalmente modificado: o trabalho físico e instrumentado cederia lugar ao trabalho intelectual; o próprio proletariado cederia lugar aos prestadores de serviços: os conceitos de mercadoria e valor-trabalho perderiam sentido e se dissolveriam no informacional e imaterial.

Há uma quinzena de anos floresce esse discurso: do barqueiro americano Alvin Toffler à inevitável figura mediática de Alain Minc. Seu ponto comum é considerar que a revolução informacional teria uma conseqüência produtiva maior: a diminuição e depois o desaparecimento do trabalho direto, em proveito dos serviços, e uma diminuição geral do tempo de trabalho necessário, em proveito do tempo livre. É verdade que tais análises podem simplesmente camuflar uma justificação do desemprego, definido como ... tempo liberado. Mas elas põem o dedo sobre uma evolução, contestável por todos, que pôde ser retomada numa perspectiva mais social. Alguns desenvolvem a idéia de que necessariamente se desenvolverá um terceiro setor, dito de utilidade social, também chamado "economia solidária", respondendo a necessidades novas, nem sempre solventes, e que seria necessário solvibilizar através de meios públicos e associativos.

Mas que lugar vai ocupar esse terceiro setor na economia? Ele não concorre ao setor rentável, que continuará a funcionar livremente, exigindo o máximo de flexibilidade, necessária a sua eficácia. No melhor dos casos, esse setor servirá de válvula de escape, mas há fortes possibilidades de que preencha outra função: a de ajuda social menos onerosa que o estado de bem-estar; isso se não for a de meio de pressão para a baixa dos salários e das garantias de outros setores. Porque há uma diferença entre as produções industriais e as de serviços: as primeiras fornecem bens de produção, permitindo economia de tempo, que corresponde a tempo liberado (sem pré-julgar o que a sociedade fará com ele, evidentemente); em troca, nos serviços, o tempo consumido é igual ao tempo gasto de outro modo. Os famosos empregos de proximidade não visam a que as tarefas domésticas ocupem globalmente menos tempo, e assim o liberem para atividades mais nobres, pelo contrário, eles ocupam cada vez mais tempo disponível, só que agora sobre a forma de serviços pagos.

Isso desemboca numa sociedade dual, em que uma minoria absorveria as atividades nobres e a maioria não teria outra escolha a não ser colocar-se a serviço da minoria e de seus desejos. Um dos méritos de André Gorz foi denunciar essa sociedade de "serviços", que constitui de fato a sociedade pós-industrial:

As prestações que não criam valor de uso, embora sendo objeto de troca mercantil pública, são trabalhos servis ou trabalhos de servidor. É o caso, por exemplo, do engraxate, que vende um serviço que seus clientes poderiam bem fazer a si mesmos em tempo menor do que ficam sentados no trono, diante de um homem agachado a seus pés. Eles o pagam, não pela utilidade de seu trabalho, mas pelo prazer que têm em fazer-se servir.



A revolução terciária tornou-se uma contra revolução servil, que transforma os assalariados em servidores. Entretanto, pode-se predizer que ela não se generalizará. Primeiro, porque, contrariamente ao que pensam dessa evolução muitos autores (quer os que as incenssam, quer os que a temem), a economia capitalista terá sempre a necessidade de basear sua acumulação na extração de mais-valia no setor produtivo; mas sobretudo porque a função preenchida pela extensão do setor terciário pode ajudar à extração de mais-valia empurrando para baixo o custo do trabalho no setor produtivo.

Fim da centralidade do trabalho?

Atividade no lugar do trabalho, revolução tecnológica rarefazendo o trabalho, desenvolvimento exponencial do tempo livre, sociedade de serviços ... todos esses esquemas em moda encontram sua apoteose na idéia do trabalho como valor inexoravelmente em declínio. O sucesso da pequena obra de Dominique Méda vem daí: ela dá coerência e cobertura "filosófica" a todas essas temáticas. Resumamos rapidamente a tese de Dominique Méda. Para ela, o trabalho não é uma característica antropológica da humanidade, constrangida a transformar a natureza para sobreviver, segundo afirma toda uma série de tradições desde os séculos XVIII e XIX, de Smith a Marx; tradições que apresentam o trabalho salariado como uma forma histórica particular de trabalho, forma necessária e emancipatória para uns, necessária e espoliadora para outros.

"O século XVIII teria simplesmente inventando o trabalho salariado. Eu defendo a tese inversa: é o próprio trabalho que foi inventado no século XVIII". Partindo daí, a autora distingue três épocas:

1. No século XVIII, particularmente em Adam Smith, o trabalho é só um simples fator de produção, que permite manter juntos os indivíduos "libertados" de suas lealdades comunitárias.

2. A partir do início do século XIX, em Hegel e sobretudo Marx, o trabalho é um poder criador e transformador nas mãos do homem, que deve ser livrado da exploração para fornecer sua plena capacidade.

3. É o momento atual, que se tem desdobrado o longo de todo o século XX: o "momento social-democrata", em que o trabalho salariado é aceito porque concebido como meio privilegiado de obter rendimentos decentes, proteção e status jurídico.

O trabalho é sempre considerado como realizador da personalidade, enquanto a expectativa de prazer não é mais ligada às capacidades transformadoras do trabalho, mas exclusivamente aos rendimentos e ao consumo. Esse é o modelo que estaria em crise, não para elaborar uma quarta fase do trabalho, mas sim para questionar a própria centralidade do trabalho. Retomando uma inspiração aristotélica (que também inspirara Hannah Arendt), D. Méda distingue quatro tipos de atividades fundamentais para o homem: as atividades produtivas, as atividades políticas, as atividades culturais e as atividades familiares, de amizade ou amorosas. A vida social seria muito absorvida pelas atividades produtivas e a atual crise do emprego traduziria de fato uma crise não só do trabalho salariado, mas do trabalho enquanto tal, que não forneceria mais base para uma existência social equilibrada. Essa crise pode ser salutar se tomarmos consciência (graças a Dominique Méda?) do que ocorre e prepararmos uma mudança de civilização, permitindo reduzir o lugar do trabalho, em proveito de outros espaços, políticos, culturais e familiares. É antes de tudo uma crise das representações e é a mudança de nossa representação sobre o trabalho e seu lugar que cabe empreender em primeiro lugar.

A sedução dessa obra deve-se certamente a sua brevidade e a seu caráter enlevado, sintetizando de modo brilhante uma idéia "no tom da época". Ela merece um exame atento. De início, poder-se-ia notar algumas aproximações e erros: falar de grandes entidades (e Economia, a Revolução francesa, o século XVIII ...), erigidas em sujeitos que pensam falam e agem não é geralmente sinal de clareza e precisão; a tendência de estudar os movimentos da história sob forma de irrupções súbitas e inexplicadas está muito visível através do uso significativo do advérbio "subitamente"; as contradições também: "o trabalho terminou por tornar-se seu próprio fim"; e que a lógica faz do trabalho "um meio a serviço de outro fim que não ele próprio"; sem esquecer, a afirmação de que Marx viveria, em 1844, em Manchester. Mas isso poderia ser secundário, se a tese de fundo fosse sólida.

O que chama a atenção numa primeira abordagem é o procedimento idealista: as representações é que formam a realidade e é mudando-as que as coisas avançarão. Aliás, é normal afirmar isso quando se pretende também que "nós todos sabemos hoje que o caráter alienante do trabalho" não está ligado ao capitalismo e à exploração. O essencial é pois nos desempregarmos da idéia "humanista" de que o trabalho é central. O pleno emprego de tempo integral para todos está definitivamente perdido e isso "abala o que tínhamos como evidente", chegando até a afirmar "a idéia falsa de que o desemprego seria um mal extremamente grave".

Se o desemprego não é um mal grave é porque nos permite operar "uma conversação do pensamento" e "por em ordem nossas representações". Mudemos nossas representações e o mundo irá melhor. É de se esfregar os olhos, diante de um idealismo tão ingênuo, sem falar no uso do "nós" para fazer passar sua própria concepção (a multiplicidade dos "sabemos agora que" é impressionante).

Quanto ao fundo, a demonstração é conduzida com certa desenvoltura. Assim, para demonstrar que o trabalho é "inventado" no século XVIII, é-nos servida uma vista rápida da história, com generalizações particularmente audaciosas sobre três períodos ("três exemplos servirão para ilustrar nossos propósitos"!): as "sociedades primitivas", o "paradigma (!) grego", o "Império Romano". Afirma-se a tese da ausência de centralidade do trabalho em toda uma época, ilustrando-a em seguida com alguns exemplos, quando sobre o assunto, entretanto, não faltam debates e trabalhos que mereceriam pelo menos ser citados. Demonstração não se vê. Chega-se mesmo a afirmar que certas sociedades não têm fundamentos econômicos, o que releva do milagre, como o da imaculada concepção. Quanto aos três atos do trabalho desde o século XVIII, que resumimos acima, trata-se de mais um percurso de autores rapidamente caracterizados num quadro impressionista, para permitir a afirmação, no fim da viagem, de que o trabalho vai declinar.

O objetivo do arrazoado fica claro quando a autora afirma que manter a exigência de uma vida social centrada no trabalho é uma atitude conservadora: "trata-se de nada menos que defender a ordem existente". A visão de trabalho exposta é particularmente tênue, pois afirma-se que a "sociedade de trabalhadores" na qual estamos priva-nos "daquilo que faz a essência do homem: o pensamento; isso acompanhado de uma visão idílica da Grécia antiga, onde os homens teriam vivido livremente para sua cidade, esquecendo que essa liberdade civil estava fundada sobre a servidão de uma parte da humanidade e negligenciando que a participação política promovida pelos antigos não era concebida como participação de indivíduos autônomos e conscientes de seus direitos, mas sim fusionados com a cidade de modo relativamente identitário. A esse respeito, a leitura de Aristóteles é esclarecedora. As referências filosóficas da autora são variadas e mereceriam clarificações, particularmente quando são utilizados Horkheimer e Hannah Arendt para justificar uma autonomia da esfera política; a referência a Heidegger e seu "esquecimento do ser", engendrado por nossa sociedade do trabalho, dá finalmente uma coloração inquietante à conversão proposta.

As páginas em que D. Méda descarta com um aceno de mão o fato de que a principal exigência dos desempregados e beneficiários da Renda Mínima de inserção (na França) seja a obtenção de um verdadeiro emprego são ao mesmo tempo penosas e reveladoras: buscam convencer a sociedade de que se há uma evolução exorável para o declínio do trabalho. Trata-se de uma evolução na qual é preciso assumir uma posição.

Tudo isso tem um sentido político: tornar aceitável uma situação que, no entanto, exige remédios radicais.

Sobre a natureza do trabalho em nossa sociedade

O traço comum das diversas análises que citamos até agora está em que elas não concebem a dupla natureza, intrínseca e contraditória, do trabalho em nossa sociedade. Ao mesmo tempo criador e alienado, o trabalho só é compreensível através da relação social que o põe em ação. Deste modo, pode-se compreender como se desenvolvem, ao mesmo tempo, ganhos de produtividade e exclusão maciça do trabalho. Vivemos numa época em que se tem simultaneamente o sentimento de que, tecnicamente, coisas portentosas seriam enfim possíveis: trabalhar menos, trabalharem todos e satisfazer as principais necessidades humanas; e pode-se medir o peso enorme dos obstáculos sociais à realização disso. Correndo o risco de incomodar alguns, digamos que a contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção parece hoje muito mais verdadeira do que antigamente. Michel Husson, que chega a mesma conclusão, tem razão em citar Marx que escreveu páginas luminosas a esse respeito. Vamos reproduzi-las para responder às teses unívocas em moda:

O capital é, apesar de si mesmo, o instrumento que cria o tempo social disponível, que reduz sem cessar o tempo de trabalho a um mínimo para toda a sociedade e libera assim para todos tempo para o desenvolvimento próprio individual. ... Se ele conseguir bem demais criar tempo de trabalho disponível, sofrerá de superprodução e o trabalho necessário será interrompido, porque o capital não poderá mais valorizar qualquer sobre-trabalho. Quanto mais essa contradição se desenvolve, mais se revela que o crescimento das forças produtivas não pode ser mais freado ainda pela apropriação do trabalho alheio. ... Quando o trabalho, em sua forma imediata, deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho cessará e deverá deixar de ser a medida do trabalho, assim como o valor de troca deverá de ser a medida do valor de uso. ... A partir daí, a produção fundada sobre o valor de troca desmoronará e o processo imediato de produção material se despirá de sua forma e de suas contradições miseráveis. Não se dando mais o proveito do sobre-trabalho, a redução do tempo de trabalho necessário permitirá a livre expansão do indivíduo.



E, no fim de O capital:

A única liberdade possível está em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente suas relações com a natureza, que eles a controlem em comum, em lugar de ser dominados em seu poder cego, e que realizem esse intercâmbio despendendo o mínimo de esforço e nas condições mais dignas, mais conformes à natureza humana. Mas essa atividade constituirá sempre o reino da necessidade. É além deste que começa o desenvolvimento das forças humanas em si, o verdadeiro reino da liberdade, que não pode se expandir a não ser baseando-se sobre o outro reino, sobre a outra base: a da necessidade. A condição essencial dessa expansão é a redução da jornada de trabalho.



Sem maiores comentários, basta dizer que estes textos nos fornecem o quadro em que cabe abordar a "crise do trabalho". Uma vez que o trabalho se exerce numa relação social que opõe e ao mesmo tempo reúne empregadores e assalariados, o avanço da humanidade pela utilização de menor tempo de trabalho é feito pela manutenção da exploração de uns e a exclusão de outros e, por isso mesmo, volta-se contra esse avanço. A reivindicação de menor tempo de trabalho não tem como objetivo a liberação de tempo para a verdadeira vida, que seria o não-trabalho, porque o tempo livre só será realizador quando o próprio tempo de trabalho for libertado. É por isso que a reivindicação de menor tempo de trabalho só tem sentido inscrita numa emancipação social. Menor tempo de trabalho na lógica capitalista leva a exclusão pura e simples; menor tempo de trabalho com manutenção do salário e contratação dos desempregados torna-se realidade num movimento emancipador, tanto no trabalho como em outras esferas da vida social.

A partir daí outra análise da exclusão social contemporânea

Uma das vantagens deste estudo crítico dos discursos em moda sobre o trabalho é permitir uma renovação das análises do que já é chamado de ressurgimento da exclusão social em grande escala em nossas sociedades. Os discursos há muito tempo dominantes sobre a pobreza de massa (de fato, desde os livros pioneiros de Lenoir e Stoléru, em 1974), têm, grosso modo, a estrutura seguinte: a maioria da sociedade está incluída ou integrada num sistema estável, com domínio do assalariamento e o avanço da crise e do desemprego desenvolveu uma massa de excluídos do sistema, os "entregues a si mesmos" que "abandonamos à beira da estrada" — o que significa que os outros continuariam a avançar. O objetivo de tal representação é, portanto, a reinserção desses excluídos do sistema, por meio de uma política social específica para alguns e da caridade coletiva para outros. Desse modo, tais estudos economizam a análise dos processos de crise em andamento no coração do sistema e, no mínimo, não fazem uma ligação estreita entre a crise "dentro" e o crescimento do número de excluídos "fora".

Nestes últimos anos, uma obra trouxe uma contribuição maior à renovação da análise da exclusão. É a de Robert Castel, Les métamorphoses de la question sociale. Após um afresco detalhado do assalariamento desde o século XI, ele aborda a nova questão social. O assalariamento atravessou, até agora, três eras: a da tutela, quando o assalariamento era indigno; depois, a partir do século XVIII, o do contrato, quando o salário é o preço de uma negociação desigual e precária, até a emergência, ao longo do século XX, da era do estatuto, quando o assalariamento não está mais somente submetido ao contrato individual, mas sim acede, através de sua condição, a direitos de assalariado e de cidadão, por sua participação numa coletividade (por meio de convenções coletivas, organismos públicos e direitos sindicais, associados ou mútuos, assim como de usuário de serviços públicos). Páginas notáveis descrevem, por exemplo, o papel insubstituível desempenhado pela seguridade social obrigatória na emergência desse estatuto. A nova questão social é, pois, a crise do estatuto salarial. Detalhemos um pouco a análise que ocupa o último capítulo dessa obra.

A expressão "sociedade salarial" é utilizada por Robert Castel e Michel Aglietta principalmente para designar o período capitalista em que não somente se generaliza o assalariamento, mas também este conquista direitos e garantias, dando forma a um verdadeiro estatuto na sociedade. A questão social não deve, portanto, concentrar-se na exclusão; não porque esta não exista, mais sim porque focalizar o debate social unicamente na exclusão, apresentada como o encerramento de um sistema normal e estável, é camuflar, por um lado, a fonte do processo de exclusão, que toma raízes no corpo central da sociedade e, por outro, a profunda desestabilização do assalariamento e da sociedade salarial. No momento em que os atributos ligados ao trabalho e ao estatuto de assalariado pareciam impor-se nas definições das identidades, fazendo recuar os outros suportes de identidade (por exemplo, família e comunidades reduzidas), brutalmente, o trabalho é recolocado em questão. Mais que o desemprego, o não-trabalho tem efeitos sociais globais tão poderosos, mais inversos quanto o próprio trabalho. O fenômeno mais significativo desse processo é o aparecimento de "trabalhadores sem trabalho" (para retomar a expressão de H. Arendt em Condition del’homme moderne), de homens excedentes, de "inúteis no mundo".

a) Uma ruptura de trajetória

A "sociedade salarial" foi parcialmente mitificada, devido a sua correlação com o crescimento forte, com a extensão do estado de bem-estar e com a crença no progresso contínuo. Na realidade, eram escondidas certas características desse desenvolvimento passado, que lhe limitavam os efeitos positivos.

1. Em primeiro lugar, seu caráter inacabado. Por exemplo, no Direito do Trabalho há um progresso: a limitação da arbitrariedade patronal (na França, leis sobre as dimensões, de 1973 e 1975, a generalização do contrato-padrão); mas essas conquistas só foram justificadas pelo crescimento econômico e por uma inversão da concepção de sociedade; não havia reciprocidade entre empregador e empregado e a empresa estava (e está, mas do que antes) longe de ser "cidadã". Isso é diferente das conquistas de 1945-6, que não eram justificadas pelo crescimento; e quando este pára, o questionamento das conquistas sociais se encontra justificado.

2. Os efeitos perversos das proteções: "as proteções têm um custo; elas são pagas pela repressão dos desejos e pela aceitação do entorpecimento da vida, em que tudo está pré-estabelicido". Ver Donzelot e as interpretações de 1968 ou as teses de Hirschman sobre a frustração, críticas das gestões tecnocráticas das empresas estatais.

3. Homogeneização e individualização; contradição fundamental da "sociedade salarial".

Por um lado, as intervenções do estado de bem-estar têm poderosos efeitos homogeneizadores e, por outro, o funcionamento desse estado (mais tecnocrático e burocrático do que democrático) produz efeitos individualistas temíveis. Os beneficiários do estado do bem-estar são, ao mesmo tempo, unificados sobre um regime universal, garantindo direitos relativamente igualitários, e cortados de toda ligação concreta a uma entidade coletiva. Essa idéia, muito tocquevilleana, foi retomada, por exemplo, por Marcel Gauchet:

O estado de bem-estar clássico, ao mesmo tempo que se origina do compromisso entre classes, produz formidáveis efeitos individualistas. Quando se provê os indivíduos com esse pára-quedas extraordinário que é a segurança de assistência, fica permitido, em todas as situações da existência, livrar-se de todas as comunidades, de todos os laços possíveis, a começar pelas solidariedades elementares da vizinhança: se há seguridade social, não preciso que meu vizinho se incomode para me ajudar. O estado de bem-estar é um poderoso fator de individualismo".



O estado substituiu com felicidade as proteções tutelares desaparecidas, minadas pela urbanização industrial. Porém, ao fazer isso, aumentou ainda mais a distância entre o indivíduo e os laços que formam a sociabilidade primária; o indivíduo encontra-se só face ao Estado, que é a sua única proteção, seu único suporte social. Ele está unido a uma coletividade, é verdade, porém abstrata. Só pode resultar disso o desenvolvimento da contradição entre o aumento do individualismo da "sociedade salarial" e o fato de que essa sociedade repousa essencialmente sobre uma socialização crescente dos rendimentos e dos condicionamentos administrativos coletivos.

No que diz respeito à proteção social, essa contradição é acentuada pelo desenvolvimento do desemprego e do desequilíbrio demográfico: passa-se de um sistema de seguridade entre ativos a um sistema de solidariedade de ativos, cada vez menos numerosos, para com inativos cada vez mais numerosos, dos quais um número crescente nunca trabalhou e jamais trabalhará; o que constitui um fator de distanciamento ainda mais grave entre trabalho e rendimento. O equilíbrio entre o "sistema bismarquiano" (seguridade dominante) e o "sistema beveridgeano", (solidariedade dominante), construído na França, perde-se, uma vez que seus dois elementos entram em contradição, a partir do momento em que a população ativa se torna minoritária. Esse fenômeno é naturalmente acentuado pelo enfraquecimento do estado-nação e pela mundialização da economia.

Estaríamos assistindo ao "esgotamento de um modelo" (J. Habermas), aquele em que a integração social dos indivíduos estava organizada por um jogo de solidariedade e de trocas em torno da centralidade do trabalho, garantido pelo estado?

b) Os excedentes

Mais que o desemprego, a crise contemporânea provocou, sobretudo, uma terrível precarização do emprego e do trabalho, que parece prosseguir inexoravelmente, embora não de modo linear. Insistir sobre a precariedade que se instala no centro do sistema estatuário de assalariamento significa poder analisar o desemprego maciço, de longa duração, e sua conseqüência, a exclusão, não como ruptura nas margens do sistema, mas sim como processo que tem sua fonte na transformação do sistema estatutário de assalariamento. A palavra-chave dessa transformação tem sido, certamente, "flexibilidade". A prova de que esse processo não é marginal está no fato de que não são mais atingidas apenas as camadas periféricas do mercado de trabalho: jovens, mulheres sem qualificação, não-qualificados em geral, imigrantes. Agora emerge, por exemplo, um problema novo: a possível inutilizabilidade da mão-de-obra qualificada.

Em conseqüência, num contexto de competitividade acentuada, a empresa, absorvida por outros imperativos, desempenha cada vez menos sua função integradora. Por exemplo, a segmentação do mercado de trabalho levaria a pensar que somente o "mercado secundário" sofreria efeitos desestabilizadores; ora, esta desempenha, em período de certeza, um papel de amortecedor, protegendo o "mercado primário" (conforme a teoria de Piore e Doeringer). Em período de incerteza, de crise prolongada e redução de postos de trabalho, os dois mercados entram em contradição e "os estáveis são desestabilizados".

Pode-se, portanto, entrever os contornos de uma nova fase, perigosa de volta à vulnerabilidade de massa. Não é mais a vagabundagem medieval, o assalariamento indigno dos séculos XVII/XVIII ou o pauperismo do século XIX. O excluído, do qual tanto nos falam, seria a nova imagem da vulnerabilidade de massa: os excedentes modernos, os novo inúteis no mundo, formando uma massa em estado de flutuação, uma espécie de no man’s land social, não integrada e não integrável, entretanto, sem ser uma massa estrangeira que se pode deixar acampada às portas da cidade (retomando uma expressão de Auguste Comte, referindo-se ao proletariado do século passado), ela se alimenta da crise no centro da "sociedade salarial".

Esse fenômeno cristaliza-se em três pontos:

1. desestabilização dos estáveis;

2. instalação de um número crescente na precariedade, nutrindo estratégias e culturas do aleatório ( um neo-pauperismo?);

3. carência de posições sociais definidas (daí um sentimento de inutilidade).

Para essas populações crescentes, portanto, para todos por contaminação, a identidade pelo trabalho parece perde-se. Existem certamente vários níveis de formação da identidade coletiva: profissão, comunidade de habitação, modo de vida, família, porém, no mudo salarial, principalmente industrial, o trabalho tem desempenhado um papel de indutor principal (ver, por exemplo, o interesse e o último relatório do centro de estatísticas, dissolvido pelo Ministério Balladur, sobre a correlação entre perda de emprego e ruptura conjugal).

c) A inserção social ou mito de Sísifo

Paradoxalmente, não se pode afirmar com seriedade que a situação atual surgiu de um recuo da intervenção social do Estado; esta, pelo contrário, aumentou quantitativamente. É sua orientação que se modificou: passagem de políticas conduzidas em nome da integração a políticas conduzidas em nome da inserção social.

A inserção sistematizada a discriminação positiva que já existia: diferencia seguridade social de assistência social, as quais, originalmente concebidas como complementares, vão se opondo cada vez mais. Privilegiar somente a assistência social é a palavra-de-ordem, dominante no discurso liberal, atualmente; consiste em analisar a população assistida em termos de "incapacidade", "inviabilidade como mão-de-obra", "inadaptação social"; inventa-se, em seguida, a inserção social para enfrentar o forte aumento desses "alvos" da assistência. Ora, essas políticas, cada vez mais disseminadas, parecem fracassar no essencial, provocando uma espécie de assentamento na vida incerta e provisória.

Procura-se incessantemente melhorar os assistidos, principalmente aumentando sua coerência social de modo transversal e global: desenvolvimento social dos bairros, comitês de prevenção da delinqüência, zonas de educação prioritária, política urbana ... ou seja, políticas múltiplas mobilizando o máximo de participantes (com a notável ausência das empresas, como sublinha do relatório de M. Aubry e M. Praderie, em 1991, para a França), que parecem se mover no sentido de uma questão regional dos problemas sociais. Tais políticas colmataram brechas e impediram numerosas explosões, o que já é muito bom, mas elas não inverteram a tendência para a precariedade social.

A mesma apreciação pode ser feita sobre a Renda Mínima de Inserção (RMI francesa): ela comporta duas inovações principais:

1. É oficializada, pela primeira vez, depois de muito tempo, a diferença entre inaptidão para o trabalho e impossibilidade de trabalhar: "toda pessoa que, devido a sua idade, seu estado físico ou mental, à economia e demanda de emprego, se encontrar impossibilitada de trabalhar terá o direito de obter da coletividade os meios de subsistência convenientes".

2. Esse direito não significa direito a assistência, mas sim a inserção, buscando-se assim quebrar a imagem do "pobre mal" (recentemente revivida com a "cultura RMI" de E. Raoulte) e evitar qualquer estigma social. A RMI deve ajudar ao retorno de uma situação normal.

É esforçoso constatar que, sete anos após sua entrada em vigor, a RMI consegue preencher sua função, embora cubra cerca de um milhão de pessoas. Quinze por cento reencontram empregos de ajuda; os 70% restantes dividem-se entre demitidos sem salário-desemprego e inativos estáveis.



A inserção não é mais uma etapa: é um estado de coisas. É "situação transitória durável", no dizer do relatório oficial de avaliação de 1992, que não pode constituir uma existência estabilizada, realizar uma "socialização" verdadeira, porque as instituições são instáveis e provisórias. A inserção é uma socialização secundária tanto mais incompleta quanto o é a "a social sociabilidade em configurações racionais mais ou menos evanescentes, que não se inscrevem ou se inscrevem de modo intermitente problemático em instituições reconhecidas, deixando os sujeitos que vivem em situação de apreensão".

Se as políticas de inserção fracassaram em seu objetivo explícito é talvez porque tenham outra função implícita: "acalmar o trouxa", para falar como Erving Goffman (deixar, no jogo social, uma porta de saída para os vencidos, para que estes possam guardar uma "apresentação de si", evitando a desqualificação social, mesmo sabendo que ninguém é bobo).

A crise do futuro

"O corpo social vai perdendo suavemente seu amanhã." (PAUL VALÉRY)

R. Castel visualiza quatro cenários:

1. Continuar a degradação salarial, sob o efeito do triunfo das regras econômicas e do mercado, desestruturando os diversos níveis da vida social.

2. Manter a situação por meio da multiplicação de esforços coletivos. Isso, além de supor uma não degradação da situação macroeconômica global, implicaria uma forte reação das pessoas excedentes, seja pela violência, uma vez que elas não constituem um grupo organizado, como o movimento operário da época industrial, seja pela contaminação do corpo social em que nasce essa desvinculação. Veja-se, por exemplo, a reação da juventude ao contrato da inserção profissional (na França). O movimento social de dezembro 1995 também explicitou a ligação entre as recusas dos incluídos e dos excluídos, tanto mais significativas pelo fato de terem sidos impulsionadas pelos assalariados de estatutos menos precário. Também significativo, quanto a esse laço novo entre inseders e outsiders, o conflito dos metroviários de Marselha.

3. Tentar compensações e escapatórias centradas sobre o desenvolvimento da "atividade" em lugar do "trabalho", aceitando a perda de centralidade do trabalho e do assalariamento. Trata-se de aproveitar, quer reservas de empregos junto às pessoas (com riscos de neodomesticidade), quer novos empregos e atividades gerados pela revolução tecnológicas em curso (efeitos compensátorios globalmente positivos ou negativos?), supondo-se uma evolução social em que a identidade e a dignidade dos entes sociais se relacionará cada vez menos com o trabalho. Essa perspectiva só se mantém como conjectura bastante vaga: dois termos dos "RMIstas" franceses pedem, antes de tudo, um emprego; e a maioria esmagadora dos jovens recusou estágios que não desemboquem num "verdadeiro trabalho"! Todo esse discurso de atividade pode preparar individualmente uma sociedade dual. Deste ponto de vista, o salário-base (SMIC na França) não é somente um salário garantindo o mínimo decente, mas também, sociologicamente, "uma barreira", defendendo "um nível", para falar como Edmond Goblot. A partir do SMIC, abre-se, certamente, uma gama extremamente diversificada de situações em termos de rendimentos, de consideração e interesses, mas tais situações são essencialmente comparáveis, sob o regime do assalariamento. Por que não fazer dele uma referência mínima intransgredível, em termos de remuneração e estatuto, para todas as situações de emprego novas que nos oferece e oferecerá cada vez mais a sociedade pós-industrial?

4. Administrar uma redistribuição dos recursos raros que provêm do trabalho socialmente útil, porque até hoje não apareceu alternativa confiável e socialmente aceitável e suportável em substituição à sociedade salarial.

O trabalho permanecendo — certamente por longo tempo — o meio de integração social dominante, no sentido de Durkheim, isto é, permitindo uma solidariedade na interdependência; a opção mais rigorosa seria que todos os "societários" conservassem o laço estreito com o trabalho socialmente útil e com as prerrogativas a ele associadas: porque o trabalho permanece sendo o fundamento principal da cidadania, em sua dimensão econômica e social, indissociável de seus fundamentos políticos. O trabalho salariado estatutário arrancou o indivíduo às sujeições e as tutelas, assegurando a conjunção das esferas privadas e pública um sistema de interdependência que formou as relações sociais em que vivemos e as quais a maioria dos cidadãos parece apegar-se, mesmo se elas não bastam para responder a suas aspirações mais profundas.

A "sociedade salarial" é:

não consenso, mais sim regulação dos conflitos;

não igualdade das condições, mas sim comparabilidade das diferenças;

não justiça social, mas sim controle e redução da arbitrariedade dos ricos e poderosos;

não governo de todos, mas sim representação de todos os interesses e debate entre eles no cenário público.

Em todo o caso, os que querem atuar pela igualdade, justiça social e governo de todos sabem que as condições de sua ação coletiva ficarão bem comprometidas se essa herança se perder. Como conservá-la sem combater pela redução do tempo de trabalho numa outra organização do trabalho a serviço do trabalhador?

Castel conclui sua obra assinalando que a ascensão do assalariamento desde a indignidade até a dignidade se combina com a ascensão do individualismo como fenômeno antropológico global. Ele opõe ao individualismo negativo, que é obtido por subtração dos laços coletivos, provocada pela atual ruína do trabalho e que, portanto, se declina em termos de perda, a defesa de um individualismo positivo, fundamentado num contrato de obrigações mútuas entre indivíduos conscientes de sua interdependência. As políticas sociais podem optar entre a "servidão paroquial" (K.Polanyi) moderna das estratégias de inserção ou a reformulação da articulação entre o indivíduo e a coletividade, através da elaboração (que não se fará sem grandes conflitos) de um novo estatuto social integrador. O que exige um retorno da vontade política de uma ação do Estado indispensável como redutor das incertezas nestes tempos de flutuação, um Estado estrategista acompanhando as transformações e as tensões, mas também um Estado protetor, pois não há coesão social sem proteção social.

Alguns criticaram R. Castel por essa reabilitação do Estado, opondo-lhe a primazia do movimento social e da auto-organização. A crítica nos parece inútil, uma vez que os dois processos estão intimamente ligados. Que o Estado não bata em retirada em proveito do mercado e do apadrinhamento caridoso e mantenha sua missão protetora, adaptando-a; as energias solidárias dos cidadãos não deixarão de se por em movimento.

Ao fim desta pequena resenha da literatura em voga das ciências sociais sobre a evolução do trabalho — e, entre as obras, fomos levados às vezes a fazer escolhas arbitrárias — pareceu-nos finalmente impossível analisar o trabalho separadamente do capital e de sua evolução.

Rene Revol é um renomado escritor francês, especialista no estudo sobre o trabalho na contemporaneidade.

Traduzido do francês por Vito Letízia.

Revista Olho da História

As dimensões da crise no mundo do trabalho


As dimensões da crise no mundo do trabalho

Ricardo Antunes


Nos últimos anos, particularmente depois da década de 1970, o mundo do trabalho vivenciou uma situação fortemente crítica, talvez a maior desde o nascimento da classe trabalhadora e do próprio movimento operário inglês. O entendimento dos elementos constitutivos desta crise é de grande complexidade, uma vez que, neste mesmo período, ocorrem mutações intensas, de ordens diferenciadas, e que, no seu conjunto, acabaram por acarretar conseqüências muito fortes no interior do movimento operário, e, em particular, no âmbito do movimento sindical. O entendimento deste quadro, portanto, supõe uma análise da totalidade dos elementos constitutivos deste cenário, empreendimento ao mesmo tempo difícil e imprescindível, que não pode ser tratado de maneira ligeira.1

Neste artigo, vamos somente indicar alguns elementos que são centrais em nosso entendimento, para uma apreensão mais totalizante da crise que se abateu no interior do movimento operário.2 Seu desenvolvimento seria aqui impossível, dada a amplitude e complexidade de questões. A sua indicação, entretanto, é fundamental por que afetou tanto a materialidade da classe trabalhadora, a sua forma de ser, quanto a sua esfera mais propriamente subjetiva, política, ideológica, dos valores e do ideário que pautam suas ações práticas concretas.

Começamos dizendo que neste período vivenciamos um quadro de crise estrutural do capital, que se abateu no conjunto das economias capitalistas, especialmente a partir do início dos anos 70. Sua intensidade é tão profunda que levou o capital a desenvolver "práticas materiais da destrutiva auto-reprodução ampliada ao ponto em que fazem surgir o espectro da destruição global, em lugar de aceitar as requeridas restrições positivas no interior da produção para satisfação das necessidades humanas".3 Esta crise fez com que, entre tantas outras conseqüências, o capital implementasse um vastíssimo processo de restruturação, com vistas à recuperação do ciclo de reprodução do capital e que, como veremos, afetou fortemente o mundo do trabalho. Retomaremos adiante este ponto.

Um segundo elemento fundamental para o entendimento das causas do refluxo do movimento operário decorre do explosivo desmoronamento do Leste europeu (e da quase totalidade dos países que tentaram uma transição socialista, com a URSS à frente), propagando-se, no interior do mundo do trabalho, a falsa idéia do "fim do socialismo". Embora a longo prazo as conseqüências do fim do Leste europeu sejam eivadas de positividades (pois coloca-se a possibilidade da retomada, em bases inteiramente novas, de um projeto socialista de novo tipo, que recuse, entre outros pontos nefastos, a tese staliniana do "socialismo num só país" e recupere elementos centrais da formação de Marx), no plano mais imediato houve, em significativos contigentes da classe trabalhadora e do movimento operário, a aceitação e mesmo assimilação da nefasta e equivocada tese do "fim do socialismo" e, como dizem os apologetas da ordem, do fim do marxismo.4

E mais, ainda como conseqüência do fim do chamado "bloco socialista", os países capitalistas centrais vêm rebaixando brutalmente os direitos e as conquistas sociais dos trabalhadores, dada a "inexistência", segundo o capital, do "perigo socialista" hoje. Portanto, o desmoronamento da URSS e do Leste europeu, ao final dos anos 80, teve enorme impacto no movimento operário. Bastaria somente lembrar a crise que se abateu nos partidos comunistas tradicionais, e no sindicalismo a eles vinculado.

Paralelamente ao desmoronamento da esquerda tradicional da era stalinista — e aqui entramos em outro ponto central —, deu-se um agudo processo político e ideológico de social-democratização da esquerda, e a sua conseqüente atuação subordinada à ordem do capital. Esta acomodação social-democrática atingiu fortemente a esquerda sindical e partidária, repercutindo, conseqüentemente, no interior da classe trabalhadora. Essa acomodação social-democrática atingiu também fortemente o sindicalismo de esquerda, que passou a recorrer, cada vez mais freqüentemente, à institucionalidade e a burocratização que também caracterizam a social-democracia sindical.

É preciso acrescentar ainda que, com a enorme expansão do neoliberalismo a partir de fins dos anos 70, e a conseqüente crise do Welfare State, deu-se um processo de regressão da própria social-democracia, que passou a atuar de maneira muito próxima da agenda neoliberal. O projeto neoliberal passou a ditar o ideário e o programa a serem implementados pelos países capitalistas, inicialmente no centro e logo depois nos países subordinados, contemplando restruturação produtiva, privatização acelerada, enxugamento do estado, políticas fiscais e monetárias sintonizadas com os organismos mundiais de hegemonia do capital como FMI e BIRD, desmontagem dos direitos sociais dos trabalhadores, combate cerrado ao sindicalismo classista, propagação de um subjetivismo e de um individualismo exacerbados da qual a cultura "pós-moderna" é expressão, animosidade direta contra qualquer proposta socialista contrária aos valores e interesses do capital etc.

Vê-se que se trata de uma processualidade complexa que, repetimos, aqui somente podemos indicar e que podemos assim resumir: 1) há uma crise estrutural do capital ou um efeito depressivo profundo que acentuam seus traços destrutivos; 2) deu-se o fim do Leste europeu, onde parcelas importantes da esquerda se social-democratizaram; 3) esse processo efetivou-se num momento em que a própria social-democracia sofria uma forte crise; 4) expandia-se fortemente o projeto econômico, social e político neoliberal. Tudo isso acabou por afetar fortemente o mundo do trabalho, em várias dimensões.

Como resposta do capital à sua crise estrutural, várias mutações vêm ocorrendo e que são fundamentais nesta viagem do século XX para o século XXI, caso se queira, como ensinou Marx, "apoderar-se da matéria, em seus pormenores, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas" (conforme a nossa epígrafe recolhida do posfácio à 2ª edição de O capital, de 1873). Uma delas, e que tem importância central, diz respeito às metamorfoses no processo de produção do capital e suas repercussões no processo de trabalho.

Particularmente nas últimas décadas, como respostas do capital à crise dos anos 70, intensificaram-se as transformações no próprio processo produtivo, através do avanço tecnológico, da constituição das formas de acumulação flexível e dos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, no qual se destaca, para o capital, especialmente, o modelo "toyotista" ou o modelo japonês. Estas transformações, decorrentes, por um lado, da própria concorrência intercapitalista e, por outro, dada pela necessidade de controlar o movimento operário e a luta de classes, acabaram por afetar fortemente a classe trabalhadora e o seu movimento sindical.

Fundamentalmente, essa forma de produção flexibilizada busca a adesão de fundo, por parte dos trabalhadores, que devem abraçar, de "corpo e alma", o projeto do capital.

Procura-se uma forma daquilo que chamei, em Adeus ao trabalho?, de envolvimento manipulatório levado ao limite, no qual o capital busca o consentimento e a adesão dos trabalhadores, no interior das empresas, para viabilizar um projeto que é aquele desenhado e concebido segundo os fundamentos exclusivos do capital.

Quais são as conseqüências mais importantes destas transformações no processo de produção e como elas afetam o mundo do trabalho? Podemos, de modo indicativo, mencionar as mais importantes:

1) diminuição do operariado manual, fabril, concentrado, típico do fordismo e da fase de expansão daquilo que se chamou de regulação social-democrática;

2) aumento acentuado das inúmeras formas de subproletarização do trabalho parcial, temporário, sub-contratado, terceirizado, e que tem se intensificado em escala mundial, tanto nos países do Terceiro Mundo, como, também nos países centrais;

3) aumento expressivo do trabalho feminino no interior da classe trabalhadora, em escala mundial, aumento este que tem suprido principalmente o espaço do trabalho precarizado, subcontratado, terceirizado, part-time etc.;

4) enorme expansão dos assalariados médios, especialmente no "setor de serviços", que inicialmente aumentaram em ampla escala mas que vem presenciando também níveis de desemprego tecnológico;

5) exclusão dos trabalhadores jovens e dos trabalhadores "velhos" (em torno de 45 anos) do mercado de trabalho dos países centrais;

6) intensificação e superexploração do trabalho, com a utilização brutalizada do trabalho dos imigrantes, e expansão dos níveis de trabalho infantil, sob condições criminosas, em tantas partes do mundo, como Ásia, América Latina, entre outros;

7) há, em níveis explosivos, um processo de desemprego estrutural que, junto com o trabalho precarizado, atinge cerca de 1 bilhão de trabalhadores, algo em torno de um terço da força humana mundial que trabalha;

8) há uma expansão do que Marx chamou de trabalho social combinado (Capítulo Inédito), em que trabalhadores de diversas partes do mundo participam dos processos de produção e de serviços. O que, é evidente, não caminha no sentido da eliminação da classe trabalhadora, mas da sua precarização e utilização de maneira ainda mais intensificada.

Portanto, a classe trabalhadora fragmentou-se, heterogeneizou-se e complexificou-se ainda mais. Tornou-se mais qualificada em vários setores, como na siderurgia, na qual houve uma relativa intelectualização do trabalho, mas desqualificou-se e precarizou-se em diversos ramos, como na indústria automobilística, na qual o ferramenteiro não tem mais a mesma importância, sem falar na tradução dos inspetores de qualidade, dos gráficos, dos mineiros, dos portuários, dos trabalhadores da construção naval etc. Criou-se, de um lado, em escala minoritária, o trabalhador "polivalente e muntifuncional", capaz de operar com máquinas com controle numérico e, de outro, uma massa precarizada, sem qualificação, que hoje está presenciando o desemprego estrutural.

Estas mutações criaram, portanto, uma classe trabalhadora mais heterogênea, mais fragmentada e mais complexificada. Entre qualificados/desqualificados, mercado formal/informal, jovens/velhos, homens/mulheres, estáveis/precários, imigrantes etc.

Ao contrário, entretanto, daqueles que propugnaram pelo "fim do papel central da classe trabalhadora" no mundo atual, o desafio maior da classe-que-vive-do-trabalho e do movimento sindical e operário, nesta viragem do século XX para o XXI, é soldar os laços de pertencimento de classe existentes entre os diversos segmentos que compreendem o mundo do trabalho, procurando articular desde aqueles segmentos que exercem um papel central no processo de criação de valores de troca, até aqueles segmentos que estão mais à margem do processo produtivo, mas que, pelas condições precárias em que se encontram, constituem-se em contigentes sociais potencialmente rebeldes frente ao capital e suas formas de (des)sociabilização. Condição imprescindível para se opor, hoje, ao brutal desemprego estrutural que atinge o mundo em escala global e que se constitui no exemplo mais evidente do caráter destrutivo e nefasto do capitalismo contemporâneo.

O entendimento abrangente e totalizante da crise que atinge o mundo do trabalho passa, portanto, por este conjunto de problemas que incidiram diretamente no movimento operário, na medida em que são complexos que afetaram tanto a economia política do capital, quando as suas esferas política e ideológica. Claro que esta crise é particularizada e singularizada pela forma pela qual estas mudanças econômicas, sociais, políticas e ideológicas afetaram mais ou menos direta e intensamente os diversos países que fazem parte dessa mundialização do capital que é, como se sabe, desigualmente combinada.

Para uma análise detalhada do que se passa no movimento operário inglês, italiano, brasileiro ou coreano, o desafio é buscar essa totalização analítica que articula elementos mais gerais deste quadro, com aspectos da singularidade de cada um destes países. Mas é preciso perceber que há um conjunto abrangente de metamorfoses e mutações que tem afetado a classe trabalhadora, e para a qual é absolutamente prioritário o seu entendimento, de modo a resgatar um projeto de classe capaz de enfrentar estes monumentais desafios presentes no final deste século.

Desse modo, é preciso recusar tanto o caminho economicista, das leis férreas e rígidas da economia, que excluem as lutas de classes e as esferas da política e da ideologia, quanto o seu contraponto, o caminho politicista, que desconsidera a esfera da economia política e o mundo da materialidade, o que Marx chamou de "anatomia da sociedade civil". Em ambos os casos, perde-se a possibilidade de apreender os múltiplos e facetados constitutivos desta crise que atinge o movimento operário. Se não se faz esta articulação complexa e fundamental, pode-se incorrer num equivoco grave, que é aquele que se mostra incapaz de perceber o significado essencial destas mudanças.

NOTAS

(1) Em nosso ensaio, Adeus ao trabalho?, procuramos indicar alguns elementos fundamentais das mutações que vem ocorrendo no interior do mundo do trabalho. Ver ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho? (ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho). São Paulo: Cortez, 1995.

(2) É evidente que o movimento operário é muito mais amplo que o movimento sindical, porém, são enormes as relações e conexões entre ambos, de modo que aqui procuramos oferecer alguns elementos básicos que atingem o mundo do trabalho em seu conjunto.

(3) Conforme MÉSZAROS, I. Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Ensaio. p.103. Em MÉSZAROS, I. Benyond Capital: towards a theary of transltion. Londres: Merlin Press, s. d., pode-se encontrar um monumental esforço analítico para se compreender esta crise estrutural do capital (especialmente nas partes 1 e 2), cuja análise acompanhamos integralmente. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. (São Paulo: Xamã, 1996.) é uma boa radiografia da economia política do capitalismo na era do capital financeiro e oferece elementos importantes para o entendimento desta crise do capital.

(4) Procuramos mostrar, em ANTUNES, Adeus ao Trabalho?, op. cit., os equívocos desta tese. Ver especialmente p.135-45.

Ricardo Antunes é professor do Departamento de Sociologia da UNICAMP.

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