quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O futuro no ralo do desperdício

O futuro no ralo do desperdício

Consumo excessivo, uso indevido e falta de cuidado comprometem fornecimento de água

MIGUEL NÍTOLO

Foto: Henrique Pita

Houve uma época, e isso já vai longe, em que os moradores das cidades supriam suas residências com água de poço, de mina e até mesmo de rio. Água de rua, como se diz agora no caso do fornecimento por meio de canos, era coisa para poucos, e o serviço, na maior parte das vezes, recaía sobre os ombros da municipalidade ou de entidades do tipo amigos do bairro". Com a chegada desses primeiros serviços de encanamento, surgiram também os vazamentos e as torneiras que gotejavam por falta de reparo. Uma torneira aos pingos, explicam os entendidos, desperdiça cerca de 80 litros de água por dia; já um jorro fino e constante (1,6 mm de diâmetro) causa a perda de 180 litros diários.

Com o crescimento da população, as cidades incharam e a necessidade de água potável, sempre crescente, deu margem à criação de inúmeras empresas de saneamento e abastecimento de capital oficial, e o entendimento que se tinha das perdas protagonizadas no passado pelo gotejamento ganhou outros contornos. Hoje, em virtude da complexidade que envolve o sistema de captação, adução e distribuição, com a água sendo bombeada de pontos cada vez mais distantes – notadamente no caso de grandes metrópoles –, do custo elevado dessas operações e do sempre lembrado risco de desabastecimento, esse desperdício virou sinônimo de irresponsabilidade.

Um exemplo do drama: o consumo de água dos quase 20 milhões de habitantes da Grande São Paulo, um dos maiores aglomerados urbanos do planeta, é estarrecedor. De acordo com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), na região metropolitana o sistema de abastecimento, que é integrado, opera por meio de oito grandes complexos, responsáveis pela oferta de 65 mil litros de água por segundo.

A grandiosidade dos números que representam o fornecimento de água só encontra paralelo naqueles que medem seu desperdício. "A Agência Nacional de Águas (ANA) calcula que para cada 100 litros de água captados, em torno de 43% se perdem da fonte até o destino final através dos encanamentos ou pela evaporação", relata Maria Raquel Grassi Marques, gerente de Projetos e membro do Núcleo de Sustentabilidade e Responsabilidade Corporativa da Fundação Dom Cabral (FDC), de Belo Horizonte. "A irrigação apresenta o maior desperdício, e há casos em que até 50% da água utilizada não chega às plantações, perdida ora pela evaporação, ora pela infiltração no solo", observa Haroldo Mattos de Lemos, presidente do Instituto Brasil Pnuma (Comitê Brasileiro do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Ele explica que a irrigação, aplicada em quase 20% das áreas aráveis no mundo, é responsável por 40% da produção mundial de alimentos. "Para produzir 1 tonelada de grãos são necessárias mil toneladas de água, e para 1 tonelada de arroz, é usado o dobro. É importante ressaltar também que sistemas de irrigação mal planejados e/ou mal operados podem provocar a salinização e a degradação dos solos."

Lemos diz que, em virtude do crescimento da população e da urbanização nos países em desenvolvimento, a demanda pela água vai aumentar em pelo menos 50% nos próximos 20 anos. "A competição pela água poderá limitar significativamente sua disponibilidade para irrigação e, consequentemente, reduzir a produção de alimentos no mundo", deduz. Ele aproveita para informar que a agricultura responde por 59% da água consumida no país, contra 70% no resto do mundo. Enquanto o uso doméstico no Brasil gira em torno de 22% da oferta, contra 10% fora do país, o consumo do setor industrial fica ao redor de 19%, contra 20% no exterior.

Em 2007, a Fundação Dom Cabral fez uma pesquisa com as 50 maiores empresas do país com o intuito de avaliar as principais questões ligadas à sustentabilidade e, de quebra, detectar como elas estavam incorporando esses temas em suas estratégias e indicadores. No ranking de 16 prioridades, a água ocupou, naquela oportunidade, apenas o nono lugar.

Oito gotinhas

Certas coisas precisam ser ditas à exaustão para que as pessoas se sensibilizem quanto à sua gravidade. É sabido que o indivíduo acostumado a escovar os dentes duas vezes ao dia com a torneira aberta, por dois minutos, consome apenas com isso quase 300 litros de água no mês. Que no apartamento, onde a pressão da água é maior, a lava-louças operando por 15 minutos pode gastar até 240 litros de água. Que lava-roupas para 5 quilos demandam em torno de 135 litros a cada lavagem, água que deveria ser reutilizada na limpeza do quintal, uma medida providencial que teria o mérito de descansar a mangueira e, com isso, reduzir o desperdício. Os enfronhados no assunto explicam que 15 minutos com
a mangueira ligada representam um consumo de 280 litros de água. "Um cano com vazamento contínuo através de um buraco de 2 mm (a largura de um palito de dentes) representa uma perda de 3,2 mil litros por dia. Ao longo de um mês, serão 96 mil litros", expõe Heloísa Mello, gerente de Operações do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, organização não governamental criada em 15 de março de 2001, no Dia Mundial do Consumidor, no âmbito do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Ela faz um alerta: "Apesar de ser um recurso natural abundante, nem toda a água do mundo está disponível para consumo: 97,5% é salgada e, dos 2,5% restantes, apenas 0,007% é doce e pode ser encontrada em locais de fácil acesso, como rios e lagos", esclarece. "Se o precioso líquido de que se pode dispor no planeta coubesse em um balde de 10 litros, toda a água doce existente somaria 243 mililitros. Só daria para encher cerca de metade de uma garrafa de meio litro. A água disponível para consumo, por sua vez, corresponderia a apenas oito gotinhas", compara Heloísa.

O engenheiro Paulo Costa vai além, afirmando que a situação é extrema, "pois nossos estoques são praticamente os mesmos há 50 anos, mas, em contrapartida, a população aumentou de maneira significativa". Especialista da empresa H2C, dedicada ao desenvolvimento de programas de racionalização de consumo de água, ele faz uma advertência: estamos tratando de um bem raro que é finito e não renovável. Isso, na realidade, é de conhecimento geral, mas não tem sido levado a sério por uma parcela importante da população e mesmo por gente do governo. Por isso, precisa ser sempre enfatizado. "A água é como a saúde, só é lembrada quando falta", evidencia Costa.

Há um dado preocupante que, no caso do Brasil, passa em branco para as pessoas que, indiferentes ao caos que se avizinha, continuam gastando água em excesso. "O que não nos contaram nos anos em que cursamos a escola básica é que, apesar de o Brasil dispor de aproximadamente 12% da água do planeta, sua distribuição no país é um caso sério", explica Maria Raquel, da FDC. A região norte abriga perto de 70% do estoque da água doce, mas apenas 6,98% dos brasileiros vivem ali. No centro-oeste, que serve de lar para 6,41% da população, o estoque corresponde a 15,7% do total; já nas regiões sul, sudeste e nordeste os números são, respectivamente, de 15,05% e 6,5%; 42,65% e 6%; e 28,91% e 3,3%. "Ao mesmo tempo em que temos locais com uma disponibilidade muito grande de água, há pontos que amargam índices críticos decorrentes da estiagem e da seca. E a região metropolitana de São Paulo já é considerada uma área de grande risco", assinala Maria Raquel.

Banho demorado

A Organização das Nações Unidas (ONU), de acordo com Heloísa Mello, divulga que cada indivíduo necessita de 110 litros de água por dia para atender às suas necessidades de consumo e higiene. "No Brasil, a demanda diária por pessoa nos grandes centros urbanos pode passar de 200 litros", ela esclarece. Há estudos, porém, que apontam números bem superiores, algo entre 250 e 400 litros por dia. "Gastar mais de 120 litros de água, diariamente, é jogar dinheiro fora e desperdiçar nossos recursos naturais", diz Ronaldo Gonçalves, gestor do Programa de Uso Racional da Água (Pura), da Sabesp. "Além do hábito arraigado do banho demorado, talvez por influência indígena, o fato de o Brasil deter as maiores reservas de água do mundo, tanto superficiais quanto subterrâneas, induz à crença, errônea por sinal, de que não se trata aqui de um bem escasso", afirma o especialista.

Heloísa Mello comenta que o dado infeliz das estatísticas é que cerca de 9 milhões de residências não têm acesso à água potável. "Gastar um excesso de água por dia é, a meu ver, mostrar descaso com um recurso natural que falta para muita gente", lastima. Um dos piores exemplos de desperdício em solo brasileiro vem de Brasília, afirma o engenheiro Costa, da H2C. "Um bairro nobre da capital federal consome, diariamente, em torno de mil litros de água per capita", destaca. Devido a esse consumo desproporcional, o Brasil detém o recorde mundial de desperdício por habitante, relata Maria Raquel. "Enquanto isso na Namíbia, no continente africano, as pessoas têm de se arranjar com 1 litro de água por dia", diz. Ela conta que apenas cinco países atendem aos níveis de consumo per capita previstos pela ONU: Alemanha, Bélgica, Hungria, Portugal e República Tcheca. Um estudo publicado em 2002 alerta para o fato de que, se nada for feito para melhorar os números das estatísticas, em 2025 a escassez de água causará perdas anuais globais de 350 milhões de toneladas na produção de alimentos, o equivalente à colheita anual de grãos dos Estados Unidos.

O petróleo do século 21

Isso, porém, não é tudo. Maria Raquel adverte que os problemas locais fazem parte das questões globais e vice-versa, "ou seja, o mundo deve ser visto de forma sistêmica. Se faltar água em alguns pontos, não tenha dúvida, os lugares que ainda dispõem de estoque do precioso recurso serão alvo de disputas e quem sabe de guerras e invasões". Haroldo Lemos avança um pouco mais. Ele diz que um documento elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela Organização Meteorológica Mundial, intitulado "A Água no Mundo: Há o Bastante?", divulgado ao final do I Fórum Mundial sobre a Água, realizado em Marrakech, no Marrocos, em março de 1997, concluiu que "a diminuição dos recursos hídricos, associada a uma maior demanda de água potável, ameaça transformar essa matéria em uma explosiva questão geopolítica, já que aproximadamente 200 bacias hidrológicas se localizam em áreas de fronteira de vários países". O presidente do Instituto Brasil Pnuma diz que alguns especialistas comentam abertamente que as guerras futuras serão pela posse da água e não por motivos políticos. Em suma, e para ir logo ao ponto, segundo Lemos, "a água deverá desempenhar no século 21 um papel de relevância semelhante ao exercido pelo petróleo no século 20".

Até agora, atirou-se nesses males apenas com palavras. No momento, o que se vê são frases de efeito com a intenção de chamar as pessoas à razão, algumas tentativas isoladas de estancar o desperdício e discursos, muitos, com o mesmo objetivo. Os entendidos dizem que as nações que estão colhendo bons resultados na guerra contra o esbanjamento são as que sabem tirar vantagem da difusão de informações, da educação ambiental e da reeducação da população adulta, um trabalho persistente que acaba, invariavelmente, mudando os hábitos das pessoas. A educação ambiental é, seguramente, um fator fundamental na mudança de comportamento. Por isso há quem veja no incremento da oferta de água um problema e não uma solução. "Ouvimos e lemos notícias sobre números astronômicos que balizam a produção de milhares de litros por segundo aqui e ali, mas esse, no meu entender, não é o cenário ideal para essa batalha", interpreta o engenheiro Paulo Costa.

Ele afirma que produzir cada vez mais pode não ser o melhor caminho. É preciso enxergar mais longe. "Quanto maior for o consumo, menos teremos no futuro. De nada adianta a preocupação com o aumento da oferta se continuarmos fazendo vista grossa à demanda, pois um dia a água vai minguar." Ele analisa que boa parte dos brasileiros imagina que nossas riquezas em relação à água são um salvo-conduto para o consumo indiscriminado. Esse é um modo equivocado de ver as coisas. "Quando ela começar a escassear, o que vamos fazer? Construir dutos de proporções gigantescas para abastecer os grandes centros populacionais que, no Brasil, dão guarida a 83% da população?", pergunta Costa. O especialista da H2C vai mais longe. Diz que falta ao país uma política que penalize quem desperdiça. "Na Suíça, a taxa para o consumo básico de água é bastante acessível, mas, caso exceda um limite preestabelecido, o usuário arca com uma taxa muito mais elevada. Ademais, vale salientar, os países citados como bons exemplos investiram na individualização do consumo, ou seja, lá o custo do desperdício não é rateado", explica.

Novos produtos

Um exemplo bem-acabado de consumo em que muitos pagam por poucos, independentemente da demanda de cada um, é dado pelos condomínios, uma situação que, invariavelmente, pode levar ao desperdício. "Muitos usuários que pagam o consumo de água dentro do valor condominial nem sempre demonstram uma preocupação imediata com o gasto, já que as contas são cobradas dividindo-se o volume total pelo número de apartamentos", afirma Ronaldo Gonçalves, da Sabesp. Ele recomenda, nessa circunstância, a instalação de hidrômetros individuais, uma medida prática que tem o dom de "promover o uso otimizado da água, o controle do consumo, a economia de gastos e a justiça social". Especula-se que 160 mil prédios em todo o Brasil já tenham aderido ao hidrômetro individual, investimento que, segundo consta, estaria garantindo uma redução de 20% na conta de água. Gonçalves destaca que a medição individualizada surgiu na Europa há 50 anos e que hoje, apoiada em tecnologias mais avançadas, é operacionalizada por empresas especializadas que fazem o serviço de leitura, rateio e manutenção do sistema. "No Brasil, a discussão do tema é recente e foi estimulada pela necessidade de redução de consumo nos períodos de racionamento de água", ele acrescenta.

Os lançamentos de novos produtos e os debates em torno do assunto, cada vez mais animados, estão dando margem ao surgimento de iniciativas que buscam respostas ao risco representado pelo desperdício. Por exemplo, novidades até recentemente exclusivas de hotéis, shopping centers e aeroportos começam a ganhar espaços nas residências, como as torneiras de fechamento automático e as duchas com controle de vazão. E há a propositura de normas com o claro objetivo de conter a demanda elevada de água. O deputado estadual Miki Breier, do Rio Grande do Sul, é autor de um projeto de lei que estabelece a obrigatoriedade de tratamento e reutilização da água usada na lavagem de veículos pelos postos de combustíveis, lava-rápidos, transportadoras, empresas de ônibus urbanos e intermunicipais e frotas veiculares de locação ou revenda instalados no estado. "Não terei a arrogância de afirmar que redescobri a roda. Foi uma questão de oportunidade", disse Breier à reportagem. "Um grupo de estudiosos do assunto me procurou e fez a apresentação de estudos que servem de fundamento a meu projeto. Acreditei e apostei na ideia", finalizou.

Revista Problemas Brasileiros

Na contramão do fanatismo

Na contramão do fanatismo
Um Islã tolerante confronta o extremismo no país de maior população muçulmana no mundo.
Por Michael Finkel

Foto de James Nachtwey
A tradição exige que as meninas andem cobertas em Pesantren Sunanul Husna, escola fundamentalista em Jacarta. A tendência a um islamismo mais rigoroso não se traduz em apoio a militantes.

Ele mesmo abre a porta. Sem guardas armados, sem sumiço. Abu Bakar Baasyir vive numa casa térrea simples no terreno do internato que ele ajudou a fundar em Ngruki, um pacato vilarejo no interior montanhoso de Java, a principal ilha da Indonésia. Magro como um caniço, de cavanhaque branco e atilados olhos escuros magnificados por óculos de aros dourados, Baasyir, de 71 anos, é o presumido líder espiri-tual do grupo ativista islâmico Jemaah Islamiyah. O grupo foi associado a no mínimo seis atentados a bomba na Indonésia na última década, entre eles as devastadoras explosões de discotecas em Bali em 2002 e, talvez, o ataque de homens-bomba a hotéis de luxo em Jacarta em julho passado.

Baasyir nega envolvimento na violência e evita ligações comprováveis com quaisquer ataques. Já esteve preso - duas breves temporadas de menos de quatro anos no total - por acusações menos graves, sem relação direta com as explosões. Mas o internato islâmico que fundou foi o eixo de uma rede jihadista decidida a criar um Estado islâmico no Sudeste Asiático, e vários diplomados de Ngruki foram condenados por participar de grandes atentados. Sem dúvida, os ensinamentos de Baasyir têm inspirado a centenas, talvez milhares, de mortes e a ataques contra grupos muçulmanos "dissidentes" que não seguem a corrente islâmica predominante. Ainda assim, ele vem em pessoa abrir a porta. "Entre", diz ele em bahasa indonesia, a língua oficial do país. "Tome um suco."

Baasyir usa barrete, uma camisa comprida e larga e um alentado relógio de pulso. Na sala de estar não há cadeiras nem ornamentos, só paredes brancas, um vaso de planta e uma mesa baixa com uma vasilha de plástico com biscoitos de gergelim. Senta-se no chão, descalço, sobre um tapete verde. Seu filho adulto, Abdul Rahim, serve suco de melão em copos transparentes.

"Não existe violência no Islã", diz Baasyr com voz grave e rouca e meneios de maestro na mão esquerda. "Mas, diante de obstáculos impostos pelos inimigos, temos o direito de responder com violência. É o que chamamos de jihad. Não há maior nobreza na vida do que morrer como mártir pela jihad." Ele enaltece o atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos e as explosões em Bali. Não foram atos terroristas, garante. Foram "reações ao que fizeram os inimigos do Islã".

A Indonésia ocupa um canto remoto do mapa-múndi com suas miríades de ilhas ao norte da Austrália, mas a violência ali perpetrada pode ter repercussões globais. É o mais populoso dos países islâmicos, com 207 milhões de muçulmanos - 36 milhões a mais que a segunda maior nação do Islã, o Paquistão, e dois terços a mais que todos os países do Oriente Médio juntos. É uma nação devotíssima. Também é uma florescente democracia, a terceira maior do mundo depois de Índia e Estados Unidos.

Mas é uma democracia jovem, pouco mais de uma década após a deposição do despótico Suharto. O fim do poder ditatorial deu aos indonésios nova liberdade de expressão, mas também afrouxou as rédeas de radicais, como Baasyr, que havia apurado suas ideias extremistas durante um longo exílio na Malásia, para onde fugira depois de ser preso por fazer oposição a Suharto. Um ano após as explosões de Bali em 2002, uma outra atingiu o hotel J.W. Marriott em Jacarta, seguida em 2004 por um ataque à embaixada australiana e por um triplo atentado suicida em 2005, em Bali. Há apenas alguns meses, após um longo hiato que levou muitos especialistas a supor que a ameaça do terrorismo se reduzira, foram bombardeados o hotel Ritz-Carlton e mais uma vez o J.W. Marriott. Apesar de serem eventos esparsos em um país vasto, vale um provérbio local que se traduz mais ou menos assim: "Basta uma gota de veneno para estragar todo o leite".

Por vezes, as 17,5 mil ilhas da Indonésia lembram uma porção de bolinhas de gude numa mesa bamba: à menor inclinação saem todas rolando na mesma direção. Em 2005, a Indonésia parecia pender para o radicalismo islâmico, fomentando no Ocidente o temor de que o país se transformasse em reduto de terroristas. Por várias décadas, a sociedade indonésia vinha se tornando mais declaradamente islâmica. Fiéis passaram a lotar as mesquitas, e o modo de vestir muçulmano entrou em voga. Nos anos 1990, um número crescente de governos distritais começou a impor regulamentações inspiradas na sharia, a lei islâmica, e o apoio a partidos políticos islâmicos cresceu. Cada vez mais, grupos ativistas islâmicos adeptos da luta violenta para remoldar a Indonésia como uma república islâmica pareciam abafar as vozes da maioria dos muçulmanos indonésios para quem sua fé pode coexistir com a modernidade e os valores democráticos.

Nestes últimos anos, porém, embora os indonésios continuem a abraçar a fé islâmica, evidenciou-se que a maioria não quer nenhuma religião imposta pela esfera política. "Muita gente identifica devoção muçulmana com radicalismo", explica Sidney Jones, especialista em Indonésia da ONG International Crisis Group. "A Indonésia está cheia de exemplos que refutam essa ideia." Diante de medidas de políticos islâmicos para regulamentar o vestuário feminino e proibir práticas como a ioga, vozes moderadas começaram a se manifestar. Nas eleições parlamentares em abril passado, os candidatos apoiados por organizações muçulmanas receberam menos de 23% dos votos, em comparação com 38% em 2004.

Apesar dos reveses dos ataques a bomba recentes, a Indonésia vem sendo vista como uma história de sucesso na repressão do extremismo violento. Autoridades prenderam no mínimo 200 membros da Jemaah Islamiyah nos últimos anos, embora alguns fugitivos permaneçam à solta. Muitos radicais deixaram de apoiar atentados terroristas para defender a aplicação da lei islâmica. Até Abu Bakar Baasyir, desde que saiu da prisão em 2006, distanciou-se das facções mais militantes da Jemaah Islamiyah e começou a preconizar a luta pela sharia como o caminho para os islamitas atingirem seu objetivo de transformar o país democrático numa república islâmica.

Ele acredita que qualquer corpo legislativo criado pelo homem - uma assembleia legislativa, uma corte de Justiça - é uma afronta à soberania de Deus. "Alá enviou um manual para o modo de tratar os seres humanos", diz ele. "O manual é o Corão." Não há, segundo ele, necessidade de nenhum outro código legal. "Islamismo e democracia não podem coexistir", conclui. Agora que Suharto perdeu o poder e o governo centralizado está enfraquecido, cada distrito pode decidir sobre a adoção de regulamentações baseadas na sharia. Onde ela foi imposta, diz Baasyr, tudo melhorou e muito. "Vá ver e comprove", sugere.

A província de Aceh, na proa ocidental do arquipélago indonésio, hoje talvez seja mais conhecida por ter sido atingida em cheio pelo tsunami de dezembro de 2004, que matou mais de 160 mil indonésios. Mas por séculos a região de Aceh foi célebre como uma das áreas muçulmanas mais devotas de toda Ásia. Diz-se de Aceh que é a "varanda de Meca", e muitos de seus habitantes parecem viver sentados de costas para o resto da Indonésia, seguindo um islamismo mais próximo àquele do outro lado do oceano, na península Arábica. Em Aceh, mais que em qualquer outra parte das ilhas indonésias, observa-se um rigoroso código de conduta islâmico. Em 1999, o governo nacional preparou o caminho para que Aceh se tornasse a primeira província do país a instituir a sharia como lei criminal.

Devi Faradila, de 35 anos, é uma elegante mãe de dois filhos e parlamentar da província de Aceh. Lidera a unidade feminina da Patrulha da Sharia em Banda Aceh, uma força municipal incumbida de fiscalizar a obediência às regras locais na capital da província. Numa sexta-feira típica - dia em que, pela lei de Aceh, todos os homens muçulmanos devem ir à mesquita -, Devi prepara sua unidade para o cumprimento do dever mandando parar um jogo de pingue-pongue no posto da patrulha e chamando a atenção de duas funcionárias que estão mandando mensagens de texto pelo celular.

Devi e 13 patrulheiras completam com um boné preto sua farda - sapato preto, calça preta, blusa preta e lenço verde-limão na cabeça - e se espremem numa picape equipada com alto-falantes. Devi, no banco do motorista, calça luvas de couro, retoca o batom e põe óculos de sol espelhados. O veículo percorre a cidade lentamente, com Devi transmitindo uma constante torrente de avisos pelos alto-falantes: "Homens, apressem-se! As orações de sexta-feira começarão logo". "Parem todas as atividades. É hora da prece." Os homens nas ruas ou lojas viram a cabeça e fitam o carro. Alguns olham o relógio. "É sexta-feira. Orar é obrigatório para os homens."

Aceh é a única província indonésia com uma unidade da Patrulha da Sharia. Oitocentos patrulheiros, a maioria homem, policiam a região dia e noite. Mas ao meio-dia de sexta-feira, o sabá muçulmano, a imposição da sharia é deixada para as mulheres, que podem orar em casa. Devi circunda a grande mesquita de cinco domos no centro da cidade e segue para a beira-mar - um cenário deslumbrante, de montanhas verdejantes erguendo-se do oceano, mas ao mesmo tempo pungente, com vastos trechos transformados em pântano pelo tsunami. Uma patrulheira na boleia avista uma adolescente na calçada com a cabeça descoberta - uma temeridade nessa cidade em que quase toda mulher muçulmana anda coberta. A picape freia de pronto. "Véu! Véu! Véu!", gritam as patrulheiras, severas. A garota parece apavorada. Indica com gestos que se cobrirá, e a picape prossegue seu caminho.

Aproxima-se o momento da oração, e as recomendações de Devi agora são menos polidas. "Feche a loja!" "Procure a mesquita mais próxima!" O veículo estaciona na frente de uma construção de dois andares que abriga um mercado de peixe e um ateliê de artista. O grupo salta da picape - um misto de As Panteras e milícia talibã. Dois homens são interpelados. São peixeiros, alegam, e estão fedendo demais para entrar numa mesquita lotada. As mulheres dão-lhes uma intimação mesmo assim.

Um livreto amplamente distribuído, o Resumo da Sharia Islâmica em Aceh, cuja capa mostra um homem sendo açoitado, delineia as regras. Ser pego jogando: de seis a 12 chibatadas. Misturar-se impropriamente ao sexo oposto: de três a nove chibatadas. Ingerir álcool: 40 chibatadas. Faltar às orações por três sextas-feiras seguidas: três chibatadas. O chicote, segundo o livreto, deve ser feito de ratã e ter cerca de 6 a 8 milímetros de espessura. No posto da Patrulha da Sharia em Banda Aceh, dois chicotes do comprimento de uma bengala e flexíveis como um mata-moscas estão à mostra. Um álbum de fotos exibe inúmeras imagens de açoitamentos: mais de 100 desde 2005. O homem que os aplica usa túnica marrom-avermelhada, luvas brancas e um capuz que lhe esconde a cabeça. As multidões são enormes. Pesquisas de opinião indicam que, embora a maioria dos indonésios afirme querer a sharia como alicerce da vida pública, eles se incomodam com a imposição desses castigos físicos. Fora de Aceh, a adoção de regulamentações de bases religiosas tem sido esparsa. Alguns distritos proíbem o jogo ou a bebida ou exigem o uso de véu pelas mulheres. Mas, em geral, tais regras são impostas por políticos laicos, que as veem como um modo de agradar a eleitores devotos ou desviar a atenção da corrupção. No futuro, dizem especialistas, apelar para o Islã poderá não ter a mesma força populista dos anos anteriores.

Exceto, talvez, em Aceh, que parece acelerar sua islamização e até delibera sobre a amputação cirúrgica de mãos como pena corânica por roubo. Devi acha uma boa ideia. A lei sharia, garante ela, tornou Banda Aceh mais reverente e bem mais segura. Ela torce por uma expansão dessas leis. "Decepar mãos nas circunstâncias certas serviria de lição a outros", diz ela. "A criminalidade diminuiria muito." O apedrejamento por adultério também seria bem-vindo. "Quem aceita o Islã tem de aceitar todas as leis", arremata ela.

O islã fundamentalista é uma importação mais ou menos recente na Indonésia, onde por muito tempo predominou uma forma de religião menos rígida mas não menos fervorosa. "Islã Sorridente", é como muitos a chamam. O islamismo chegou à Indonésia pelo mar. O solo vulcânico é ideal ao cultivo de especiarias; e, no século 12, a maioria dos mercadores que levavam a pimenta, a noz-moscada e o cravo-da-índia indonésios ao Ocidente era muçulmana do Oriente Médio. Para os produtores indonésios, era vantajoso converter-se ao islamismo: os parceiros de negócios davam preferência aos correligionários.

A difusão do islamismo foi gradual e pacífica. O que levou um frenético século com muito derramamento de sangue no Oriente Médio demorou tranquilos 500 anos na Indonésia. Espalhadas por quase 5 mil quilômetros de oceano, as ilhas abrigavam centenas de grupos étnicos e práticas religiosas. O islamismo ajudou a integrar povos antes separados em uma única cultura regional. Na época em que a Companhia Holandesa das Índias Orientais assumiu o controle do comércio de especiarias no século 17, a religião disseminara-se por quase todas as sociedades costeiras. "Aqui, o Islã penetrou com tanto êxito porque se conciliou com a cultura e as religiões existentes", diz Syafii Anwar, diretor executivo do Centro Internacional para o Islã e o Pluralismo em Jacarta.

Mas, quando o realinhamento global ao fim da Segunda Guerra Mundial abriu caminho para que a Indonésia se libertasse da Holanda, o primeiro presidente do país, Sukarno, preferiu não instituir nenhuma religião oficial. Achava que criar uma república islâmica desagradaria à minoria não muçulmana. Ele próprio era filho de pai muçulmano e tinha antepassados hinduístas balineses do lado materno. O segundo presidente, Suharto, assumiu o poder, em 1966, após uma explosiva violência anticomunista que matou 500 mil pessoas. Por algum tempo, ele foi capaz de reprimir as hostilidades e promover o crescimento econômico. Mas seu regime era repressivo e militarizado. Sua renúncia, em 1998, foi desencadeada por um movimento de alguns milhões de ativistas pró-democracia liderado por estudantes, a maioria muçulmana - evento que historiadores consideram fundamental no Islã contemporâneo.

Mas o fim do regime de Suharto também aprofundou na comunidade muçulmana uma cisão entre, de um lado, os que apoiavam a tradicional fusão indonésia do islamismo com crenças locais e, de outro, os que desejavam "purificar o islamismo" despojando-o de influências regionais. O embate prossegue até hoje, insuflado em parte por ideias e práticas derivadas do rígido wahabismo da Arábia Saudita, que fundou universidades e internatos islâmicos por toda Indonésia.

Mas, na maior parte do país, o islamismo continua fundido a numerosas crenças e tradições. Em muitos locais, o chamado à oração muçulmano é precedido de batidas de tambor, antes associadas a cerimônias nativas. Um grupo islâmico da ilha de Lombok toma um tradicional vinho feito de uma palmeira em suas celebrações, embora o Corão condene a ingestão de álcool.

A expressão mais representativa do Islã Sorridente talvez esteja em Jacarta, a caótica e agitada capital onde estão sendo construídos shoppings e cinemas faraônicos com nomes como Hypermart e Blitzmegaplex e onde arranha-céus de luxo convivem com favelas lotadas. Ali, numa ruazinha de cascalho, Ki Demit instalou seu empoeirado e atravancado escritório. Ki é um título honorífico dado a místicos indonésios. Ki Demit tem 28 anos e seu nome significa "Pequeno Fantasma". Ele é filho de outro ki - o Grande Fantasma - e neto e bisneto de místicos. "Venho da linhagem mais mágica da Indonésia", diz.

Na maior parte do Oriente Médio, uma afirmação dessas seria uma heresia: qualquer paranormalidade não atribuída a Alá é proibida no Islã. Mas, na sala de espera de Ki Demit, lê-se o menu de seus feitiços. Dentre as opções: santet (encantamento), pelet (conquistar pessoa amada), kekebalan (invulnerabilidade contra ferimentos) e kejantanan (ótimo desempenho sexual). Uma das paredes está coberta com fotos de celebridades - uma atriz de novela, um cantor, um comediante - que solicitaram os préstimos de Ki Demit ou de seu pai.

Os clientes de Ki Demit sentam-se diante dele no chão, de pernas cruzadas. Um ventilador geme no teto da sala abarrotada de velas, frascos de perfume, contas de oração e facas antigas. "Posso ler a mente das pessoas e ver o futuro", diz. "Mas não quero competir com Deus. Sou apenas o mediador Dele." Na conclusão de muitas de suas sessões ele dá ao cliente um punhado de flores desidratadas que diz estarem imbuídas de poderes sobrenaturais. Assim que a pessoa toma um banho de imersão com aquelas flores, ele instrui, a magia começa a fazer efeito. "Sou um bom muçulmano, ciente das leis", garante Ki Demit. "É claro que oro cinco vezes ao dia. É claro que observo o Ramadã. Mas muito antes de o Islã chegar à Indonésia meus ancestrais já praticavam esses rituais. Meu pai preparou-me para ser um ki, e quando eu tiver um filho o prepararei também. "Sigo o islamismo com seriedade, mas não abro mão dos meus poderes. Não se pode brincar com esse poder."

Do outro lado da cidade situa-se o estúdio de televisão onde a cantora e apresentadora Dorce Gamalama gravava seu programa diário. Ela é a Oprah Winfrey da Indonésia, e é mais conhecida por seu apelido, Bunda, que significa "mãe". Gravava o programa com uma plateia de estúdio composta sobretudo de mulheres de meia-idade de lenço na cabeça. As muçulmanas conservadoras parecem ser suas maiores fãs, pois, debaixo daquela esfuziante energia e dos sorrisos fulgentes, Dorce é também uma muçulmana fervorosa. Construiu sua própria mesquita perto de casa, em Jacarta.

E tem mais: Dorce nasceu homem. Ela é transexual. Viveu com seu "problema", como ela o chama, a vida toda, até que, na casa dos 20 anos de idade, finalmente se submeteu a uma cirurgia de mudança de sexo. Foi casada duas vezes, com homens. Possui 300 pares de sapato e mil perucas. Ela canta, dança e conta piadas um tanto apimentadas. E de vez em quando se permite cometer alguma gafe hilária.

Seu talk-show, com participação de artistas de cinema, músicos e atletas, ditava os assuntos do momento na Indonésia. De certa forma, sua condição peculiar lhe permitia expressar abertamente o que em geral talvez ficasse sem ser dito. Ela tagarelava sobre problemas conjugais, falava com franqueza sobre sexo. ("Mulheres, se vocês querem fazer amor, não esperem seu homem convidar. Tomem a iniciativa, peçam.")

No camarim depois do programa, ela tirava os sapatos e recebia uma avalanche de admiradores. Um rapaz de 19 anos lhe disse: "Gosto de seu programa porque você é uma gata". Uma senhora de 90 anos pediu: "Só quero lhe dar um beijo". Ela fala quase sem parar, relembra seus velhos tempos no mundo artístico, quando seu trabalho era entreter os passageiros em voos fretados para Meca. Só mesmo na Indonésia um trovador transexual poderia ser considerado uma diversão apropriada para peregrinos na hajj.

"Sou uma pessoa normal", diz ela. "Eu me comporto como mulher. E até pudica eu sou! Comigo, nada de sexo antes do casamento." Pergunto se sua fé vem antes da carreira, e ela fica indignada. "Minha vida é para Deus", responde.

É isso que todos dizem: o ativista, o místico, a patrulheira da sharia, a estrela de TV. Unidos em sua devoção a Deus, divididos na opinião de como se deve expressar tal devoção. A versão do islamismo que conquistar a mente da geração seguinte - o tolerante Islã Sorridente ou a vertente austera e por vezes violenta defendida pelos extremistas - poderá determinar o caminho trilhado pela Indonésia e, talvez, servir de modelo ao futuro do islamismo no mundo. Um bom lugar para avaliar os rumos são os internatos islâmicos do país, em especial o situado no fim de uma alameda bucólica em Ngruki, onde Abu Bakar Baasyir leciona.

O colégio é até bonito, com suas construções de tijolo pintadas de branco e telhas vermelhas e azuis na cobertura. Do lado de fora, no portão, um homem vende suco de gengibre num carrinho puxado por bicicleta. Na frente da mesquita da escola, bem no centro da propriedade, uma multicolorida profusão de sandálias de dedo aguarda em escaninhos de madeira. Gritos ecoam pela quadra de basquete. Cerca de 1,5 mil alunos, com ligeira predominância numérica de meninas, frequentam esse colégio que fornece educação equivalente ao segundo ciclo do ensino fundamental e ao ensino médio. Os alunos vivem em alojamentos, onde 20 ou 30 dormem em colchões no chão em cada quarto.

Noor Huda Ismail, de 36 anos, é especialista em assuntos de segurança no Sudeste Asiático e ex-aluno de Ngruki. Contratei-o para auxiliar na elaboração de entrevistas para esta reportagem. Depois da primeira explosão em Bali, o governo indonésio enviou uma equipe de investigadores para Ngruki. Os resultados foram inconclusivos. "Não havia nada de terrorismo no currículo", diz ele. "A face pública de Ngruki era como a de qualquer outra escola. Não havia nada clandestino - a menos que você fosse 'escolhido'."

Pois, quando estudava em Ngruki, Ismail foi escolhido. "Minha doutrinação ocorreu fora da sala de aula", conta ele. "Começou com pequenas reuniões, encontros de professores e alunos durante a prática de esportes e caminhadas fora da escola. Disseram-me que nossos inimigos são fortes." Ele era um candidato ideal, pensa, porque sabia falar inglês e árabe.

"Pouco antes de me formar, fui convidado a ir à casa de um dos professores", relata ele. "Sentei-me em um tapete no chão. Havia pouca luz. Éramos três estudantes presentes. A mensagem foi que o Islã é nossa única salvação possível, e que, se eu quisesse ir para o céu, precisava entrar para o esquadrão. Eu tinha 15 anos." Um dos colegas de quarto de Ismail era Hutumo Pamungkas, que hoje cumpre pena de prisão perpétua por ter participado nas explosões em Bali. "É espantoso que mais dos nossos não tenham aderido ao extremismo", diz Ismail.

Robert W. Hefner, antropólogo que estudou política muçulmana na Indonésia, acredita que o extremismo muçulmano perdeu boa parte do ímpeto, embora talvez seja impossível impedir todos os ataques. Crédito seja dado à polícia indonésia, que não só prendeu centenas de islamitas violentos mas também conseguiu "desradicalizar" alguns ativistas detidos em troca de permissão para visitas conjugais e bolsas de estudo para os filhos. Mas essa mudança também resulta de um esforço de décadas por parte de educadores islâmicos para implementar reformas em suas escolas. Desde 2004, os estudantes que ingressam no sistema de ensino islâmico do Estado são obrigados a ter aulas de educação cívica, direitos humanos e democracia. Até Ngruki aceita as diretrizes do governo.

No fundo, talvez o que aconteça é que a Indonésia é grande e diversificada demais para aderir a qualquer definição estreita do islamismo. Até algo tão mundano quanto uma imitação indonésia do programa American Idol pode ser uma plataforma para a variedade islâmica. Durante temporada recente, as duas mulheres finalistas eram muçulmanas. Uma usava o véu; a outra, não. Ninguém pareceu se importar. Afinal, o lema nacional da Indonésia é "Bhinneka tunggal ika" - Unidade na diversidade.

"O islamismo na Indonésia é uma imensa tenda sob a qual todas as vozes podem falar umas com as outras", diz Robin Bush, da ONG Asia Foundation. Grupos marginais podem receber atenção desproporcional da mídia e deixar as pessoas com medo de denunciá-los, ressalta ela. Podem até mandar homens-bomba atacar hotéis. Mas seu alcance não chegou às urnas eleitorais.

Isso pode mudar. Contínua corrupção no governo, outro líder como Suharto, um imã que consiga congregar os insatisfeitos, qualquer dessas situações pode fazer a balança pender para o outro lado na Indonésia. "Se nosso governo secular não mostrar competência, a Jemaah Islamiyah terá mais recrutas a escolher”, diz Ismail. Creio que oscilaremos sempre", acrescenta ele. "Quando as influências ocidentais forem fortes demais, os elementos islâmicos erguerão a voz. Quando o islamismo falar muito alto, vozes mais seculares se farão ouvir. Será sempre assim. Sobe e desce, sobe e desce. Bem-vindo à Indonésia."

National Geographic Brasil

sábado, 23 de janeiro de 2010

Colheita de água

A Índia vive à mercê das monções desde tempos imemoriais. Agricultores enriquecem a terra e a vida vai esculpindo encostas para captar a água da chuva.

Um caprichoso céu de monção decepciona os agricultores que atravessam o rio Bhima em uma peregrinação hindu a Pandharpur. Em vez da tromba d'água, as nuvens mandam um chuvisco.
Foto de Lynsey Addario

Como as novas regras sobre as vertentes em Satichiwadi proíbem cortar árvores, Nandabai, à esquerda, e Sakhuba Thama Pawar preparam uma refeição para 20 parentes com fogo abastecido por pequenos galhos.
Foto de Lynsey Addario

Seguindo uma rotina matutina antiquíssima, mulheres em um local próximo a Darewadi tiram água do poço para cozinhar, beber e lavar naquele dia. Na medida em que o programa de conservação foi progredindo no vilarejo e o nível da água subiu, este poço também passou a ser capaz de fornecer irrigação para as plantações durante a estação da seca.
Foto de Lynsey Addario

Com uma oferta de pequenos tomates em exibição a sua frente, Suman Maruti Avadh prepara-se para um ritual de colheita em sua casa, em Darewadi. Os aldeões costumavam comprar muitas das frutas e verduras necessárias para esta cerimônia hindu. Agora, dependem mais da própria produção, cada vez mais variada desde que as obras da represa começaram.
Foto de Lynsey Addario

Processando a colheita de milho da família, Nausabai Kangane separa as espigas. O vilarejo dela, Darewadi, deu início a um programa de conservação de água em 1996, e os agricultores aqui agora podem alimentar a família mesmo quando as chuvas de monções são erráticas. Em anos bons, eles têm excedente de produção para vender.
Foto de Lynsey Addario

A família Karande planta e vende cebola, uma cultura que exige muita água, beneficiando-se de mais de uma década de remodelação do perfil do terreno em Darewadi. Antes, subsistiam com painço arrancado a muito custo dos campos ressequidos.
Foto de Lynsey Addario

Retida por um sistema de valas e barragens construído em Satichiwadi, a água da chuva é lentamente absorvida pelo solo. Essa umidade ajudará a sustentar as plantações e engordará o pasto para bois e cabras.
Foto de Lynsey Addario

Em três anos, aldeões de Satichiwadi cavaram uma vala para captar a chuva que corre pela encosta. Os sem terra são remunerados pela tarefa, e quem possui, beneficiados pelo aumento do nível de água no lençol freático, faz trabalho parcialmente voluntário.
Foto de Lynsey Addario

Quando chegam as chuvas de monção, entre junho e setembro, um tapete verdejante revigora os campos cultivados e os pastos.
Foto de Lynsey Addario

Na estação seca, as plantações de Satichiwadi queimam sob o sol impiedoso.
Foto de Lynsey Addario

Narya Pathari, de 10 anos, migrou com a família de Beed para cortar cana-de-açúcar nas proximidades de Sangamner. Negócio que vale centenas de milhões de dólares por ano no estado de Maharashtra, o plantio da cana exige irrigação copiosa. Canais carregam água subsidiada pelo governo de reservatórios criados por grandes represas.
Foto de Lynsey Addario

Vilarejos que não aproveitam suas vertentes, como Yethewadi, dependem de cascatas de caminhões-pipa para reabastecer seus poços.
Foto de Lynsey Addario

Durante a temporada da seca, a chegada de um caminhão de água dá início a uma correria na cidadezinha de Beed. Para recolher a água, garotos pulam em cima do caminhão e enfiam mangueiras lá dentro. As mulheres colocam o fluxo em latões e também em recipientes de metal com gargalo fino, que elas vão carregar para casa em cima da cabeça.
Foto de Lynsey Addario

Um campo empoeirado próximo ao vilarejo de Morabgi oferece pastagem rala para as ovelhas de Janoba Tambe, de 65 anos. Rebanhos como o dele, conhecidos como "cheques ambulantes", com frequência são vendidos animal por animal, na medida em que o proprietário precisa de dinheiro. Essa terra foi tão devastada pela falta de chuva que os dois filhos de Tambe precisaram se mudar para outro sítio e trabalhar como empregados.
Foto de Lynsey Addario

National Geographic Brasil

Índia - Colheita de água

A Índia vive à mercê das monções desde tempos imemoriais. Agricultores enriquecem a terra e a vida vai esculpindo encostas para captar a água da chuva.
Por Sara Corbett
Foto de Lynsey Addario

Vilarejos que não aproveitam suas vertentes, como Yethewadi, dependem de cascatas de caminhões-pipa para reabastecer seus poços.

Os agricultores na índia falam muito sobre o tempo - especialmente, pelo visto, quando ele não muda. Em maio, quando a terra vira uma fornalha e boa parte dos campos fica sem cultivo, quando os poços secam e o Sol olha zombeteiro de seu braseiro no céu sem nuvens, não há assunto mais absorvente - e menos certo - que a hora e o modo como chegará a monção de verão. A estação chuvosa, que começa no início de junho e em menos de quatro meses descarrega sobre a região mais de três quartos das chuvas anuais, começará delicada como uma corça, dizem os lavradores, depois ganhará a violência de um elefante desembestado. Ou começará como um elefante e depois se transformará numa corça. Ou será de veneta e irritante o tempo todo como uma galinha. Trocando em miúdos: ninguém sabe, na verdade. Mas falar, todos falam.

É assim num dia de 2008 em um vilarejo chamado Satichiwadi, quando um grupo familiar de agricultores sobe o monte até o templo da deusa local pensando em pedir por chuva. Maio está no meio, faz 41 graus, e Satichiwadi, habitado por 83 famílias em um ressequido vale rural no estado de Maharashtra, cerca de 160 quilômetros a noroeste de Mumbai, há sete meses não vê chuva que se preze. A maior parte da Índia, a essa altura, está enredada na inescapável espera anual. Em Nova Délhi, o calor acarretou cortes de energia elétrica. Terríveis tempestades de poeira varrem os estados do norte. Caminhões-pipa congestionam as estradas rurais, ao levar a água potável mandada pelo governo aos vilarejos em que os poços secaram. No rádio, os noticiários apenas começam a mencionar uma promissora espiral de nuvens de chuva passando sobre as ilhas Andaman, na costa sudeste.

O dia todo os moradores matutam sobre aquelas nuvens distantes. É tempo de apostar para os lavradores dependentes da chuva em toda a Índia. Nas semanas que antecedem a monção, muitos investem uma quantia significativa, o mais das vezes emprestada, na compra de fertilizante e sementes de painço, que precisam ser plantadas antes das chuvas. Há muitos modos de perder essa aposta. Se a monção atrasar, as sementes podem assar na terra e morrer. Se chover forte demais antes de elas criarem raízes, a água pode levá-las embora. "Nossa vida está embrulhada na chuva", explica uma mulher chamada Anusayabai Pawar numa versão interiorana do marathi, a língua regional. "Quando ela vem, temos tudo. Quando não vem, não temos nada." Enquanto isso, todos sondam o céu vazio. "Ficamos aqui sentados feito bobos, à espera", diz um velho lavrador chamado Yamaji Pawar.

Antes crentes de que deuses controlavam a chuva, os moradores de Satichiwadi começam a enxergar mais longe. Mesmo levando noz-de-areca e incenso ao templo da deusa, mesmo com as mulheres se ajoelhando uma a uma diante do ídolo de pedra que a representa, eles parecem fazer aquilo só por via das dúvidas. Bhaskar Pawar, um ponderado lavrador de bigode com 30 e poucos anos, observa indiferente enquanto suas parentes oram. "Hoje os jovens compreendem que o problema é ambiental", comenta ele.

Satichiwadi situa-se na sombra de chuva da Índia, uma faixa de terra privada de água por barreiras do relevo, na qual se inclui a área central do estado de Maharashtra. Todo ano a monção de verão desaba sobre a costa ocidental, desloca-se para as planícies interioranas e topa com os picos de 1,5 mil metros das montanhas Ghats Ocidentais, que bloqueiam as nuvens, deixando o outro lado da cordilheira seco.

Para diminuir sua dependência das monções, os moradores do vilarejo ingressaram em um ambicioso programa de três anos voltado para maior aproveitamento da pouca água trazida pelas chuvas. O programa é uma iniciativa da ONG Watershed Organization Trust (Wotr), mas o trabalho, uma grande remodelação da paisagem de boa parte do vale, fica por conta dos moradores. Grupos de lavradores passam cinco dias por semana cavando, movendo solo e plantando sementes ao longo das cristas montanhosas. A Wotr, responsável por projetos semelhantes em mais de 200 vilarejos da Índia central, paga aos aldeões próximo a 80% das horas trabalhadas, mas exige que cada família contribua todo mês com trabalho não remunerado no projeto: uma manobra deliberada para que todos tenham interesse pessoal na obra.

Do templo vê-se bem o esforço: para além dos pequenos reticulados de casas de barro e telhados de telha com sua crestada colcha de retalhos de campos secos, muitas das encostas castanho-avermelhadas estão terraceadas, e várias valas recém-cavadas aguardam para captar a chuva. Se ela chegar, é claro.

Complexa e caprichosa, a monção sul-asiática, que muitos consideram o mais poderoso sistema climático sazonal da Terra, pois afeta quase metade da população mundial, nunca foi fácil de prever. E, com o aquecimento global distorcendo os padrões climáticos, não são apenas os cientistas que estão confusos. Agricultores cujas famílias há gerações usam o Panchangam - um grosso almanaque sobre os movimentos das constelações hindus - para determinar quando virão as chuvas de monção e assim saber a hora de plantar, lamentam que seu sistema já não é confiável.

"É uma verdadeira charada", diz B.N. Goswami, diretor do Instituto Indiano de Meteorologia Tropical, com sede em Pune. Depois de estudar cinco décadas de dados pluviométricos do centro da Índia, Goswami e seus colegas concluíram que, embora a quantidade de chuva não tenha mudado, ela cai em aguaceiros mais breves e mais intensos, com menos períodos intermediários de chuva leve. Esse padrão reflete os atuais extremos no clima do mundo todo.

A água do subsolo ajuda alguns agricultores a amenizar as incertezas do tempo. Mas os lençóis freáticos da Índia estão minguando rápido, pois agricultores que hoje têm acesso a bombas elétricas extraem água mais depressa do que ela é reabastecida pelas monções. Segundo o Instituto Internacional de Manejo da Água, sediado no Sri Lanka, metade dos poços antes usados na Índia ocidental não servem mais. "Há 30 anos, podíamos encontrar água cavando 10 metros", diz o chefe do vilarejo de Khandarmal, um poeirento lugarejo com cerca de 3 mil habitantes na crista de um monte a 32 quilômetros de Satichiwadi. "Agora precisamos cavar 120 metros." E não há certeza. Ao longo dos anos, os moradores abriram 500 poços. Ele calcula que 90% secaram.

A falta de água lançou os lavradores em um implacável ciclo de dívida e preocupação, impelindo muitos - até 100 milhões por ano - a procurar trabalho em fábricas e em campos distantes, mais bem irrigados. Durante os meses secos, entre novembro e maio, é comum avistar nas estradas famílias em carros de boi e caminhões de aluguel abarrotados de comunidades inteiras de mudança. Os riscos às vezes parecem estratosféricos. Dados do governo indicam que o número de suicídios de homens agricultores triplicou entre 1995 e 2004 em Maharashtra.

Numa tarde, do lado de fora de uma usina de cana-de-açúcar perto de Satichiwadi, encontro um rapaz chamado Valmik. Ele tem 16 anos, sorriso meigo e orelhas de abano. Em pé na frente de seu carro puxado por dois bois e carregado com 2 toneladas de cana, ele explica que o conduziu por 175 quilômetros com seu irmão mais velho e sua mãe viúva para passar cinco meses cortando cana com foice. O trabalho deixou suas mãos e seus braços cobertos de cicatrizes.

Valmik detalha em voz branda um dos mais cruéis paradoxos de depender das chuvas. Um ano antes, sua família tomara emprestado de um agiota 40 000 rúpias (uns 800 dólares) para pagar despesas com sementes e fertilizantes na plantação, e não saldara a dívida. Por quê? Porque não chovera o suficiente, e as sementes torraram no chão. E o que fariam depois de quitar a dívida? O mesmo que tinham feito nos últimos três anos depois do corte de cana: pediriam outro empréstimo, plantariam mais sementes e tornariam a esperar uma monção decente.

Diante dos colossais problemas hídricos na Índia, incentivar vilarejos isolados a reviver e proteger suas vertentes pode parecer uma resposta medíocre a uma crise nacional. Mas, comparado aos polêmicos esforços encabeçados pelo governo para construir grandes represas e regular a abertura indiscriminada de poços profundos, um cuidadoso manejo local da água pelos próprios moradores pode ser uma iniciativa sensata e sustentável. Quando visito Khandarmal com Ashok Sangle, engenheiro civil da Wotr, o povo da região fala sobre um malogrado projeto de 500 000 dólares para bombear água do rio mais próximo por vários quilômetros monte acima. Sangle não se conforma. "Qual é a lógica de transportar água para o alto de uma encosta se é mais fácil captar a água da chuva quando ela cai?", pergunta ele.

A ideia do desenvolvimento das vertentes é simples: se as pessoas cortarem menos árvores, aumentarem a cobertura vegetal e construírem uma série de barragens e terraços para desviar e desacelerar o fluxo da água da chuva que desce pelas encostas, o solo terá mais tempo para absorver a umidade. O terraceamento e a nova vegetação também controlarão a erosão, impedindo que a camada superficial do solo, rica em nutrientes, seja levada pela chuva ou pelo vento, e isso aumentará a produtividade da terra.

"Quando a chuva corre, nós a obrigamos a andar; quando ela anda, nós a fazemos rastejar", explica Crispino Lobo, um dos fundadores da Wotr, em uma analogia muito usada por sua organização ao apresentar aos lavradores os conceitos que alicerçam o planejamento das vertentes. "Quando ela rasteja, nós a fazemos afundar no solo." O escoamento se reduz. O lençol de água subterrâneo aumenta em toda a área, os poços secam menos e, com esforços simultâneos para usar a água de modo mais eficiente, todos podem ficar menos preocupados com a época em que virá a próxima temporada de chuvas.

Os benefícios - ao menos em teoria - espraiam-se daí. Terras mais produtivas significam mais alimentos e melhor saúde para os moradores, além de trazer a possibilidade de plantar para vender. "A primeira coisa que as pessoas fazem quando suas vertentes se regeneram e a renda aumenta", diz Lobo, "é tirar as crianças da lavoura e mandá-las para a escola."

Lobo começou a trabalhar com recursos hídricos no começo dos anos 1980, em um programa de desenvolvimento do governo alemão. Hoje a Wotr é dirigido pela médica Marcella D’Souza, mulher de Lobo. Os esforços de Marcella para incentivar a participação de mulheres na regeneração das vertentes ganharam reconhecimento internacional. Na opinião do casal, o trabalho tem também importante dimensão emocional. “Quando as pessoas conseguem melhorar a terra e restaurar o solo, notamos uma mudança no modo como elas veem a si mesmas”, diz Lobo. “A terra lhes devolve a esperança.”

Que fique bem claro: isso nem sempre é fácil. Desde fins dos anos 1990, o governo indiano e várias ONGs canalizaram cerca de 500 milhões de dólares por ano para a recuperação de vertentes em áreas rurais sujeitas à seca. Mas especialistas dizem que muitos desses esforços não atingem seu objetivo ou se revelam insustentáveis, em grande medida porque se concentram demais nos aspectos técnicos da reconstituição e de menos nas complexidades da dinâmica dos vilarejos agrícolas. Em outras palavras, nenhum esforço avança muito sem uma boa dose de cooperação local. E, se você se pergunta o que poderia haver de tão complicado em um pequeno grupo de lavradores marginalizados vivendo num fim de mundo, precisa ir a Satichiwadi e passar um tempo com os Kale e os Pawar.

Satichiwadi dista vários quilômetros de uma estrada de duas pistas que corta uma planície elevada semiárida pontilhada de plantações mirradas e de árvores nim, que resistem bem à seca. A estrada até o vilarejo, concluída no ano passado, ainda é pouco mais que um ziguezague de terra destruidor de eixos de veículo; ela desce cerca de 180 metros na vertical pelos penhascos até a planície do vale. Muitos dos moradores ainda vêm e vão do jeito antigo: uma suarenta subida de 45 minutos por uma vertiginosa trilha de pedestres.

Os membros da família Pawar gostam de dizer que chegaram lá primeiro, por volta de 100 anos atrás, quando o local era uma mata quase desabitada. O bisavô Soma Pawar, pastor nômade da tribo Thakar, desceu as colinas íngremes e gostou do que viu. Conta-se que algum tempo depois - exatamente quanto é um tema de discussão -, o bisavô Goma Genu Kale, outro takhar, passou por ali e também se fixou.

Por um período, as famílias Kale e Pawar deram-se bem, morando próximas em um pequeno agrupamento de casas de barro e teto de colmo, construídas perto do templo. Trabalhando juntas, cortavam árvores e plantavam arroz e outros grãos. Mas, há uns 40 ou 50 anos, os Kale se mudaram de forma súbita para o outro lado do vale. A razão também é polêmica: os Kale dizem que apenas se cansaram de ter de andar quase 1 quilômetro de suas casas até a plantação de painço. Mas os Pawar afirmam, meio amuados, que os Kale se cansaram dos Pawar.

Seja lá o que tenha sido, as duas famílias, apesar de separadas por apenas 450 metros de plantação, pararam de se falar. Passaram a observar de maneira independente suas próprias semanas santas em honra à deusa Sati e deixaram de comparecer aos casamentos da família rival. Os Pawar evitam chamar os Kale pelo nome, referindo-se a eles como "os entendiados". O povoado em que hoje vivem os Kale é conhecido apenas como Vaitagwadi, a "Cidade dos Entediados".

Com a deterioração da harmonia em Satichiwadi, outro tipo de diminuição teve início. Ovelhas e vacas pisotearam os prados e as últimas árvores desapareceram. As colheitas também começaram a vacilar. Os lavradores desistiram de plantar arroz, uma cultura que requer bastante água. Em março deste ano, a maior parte dos poços no vale havia secado.

Sem alimento e renda suficientes, os moradores começaram a migrar em busca de trabalho em fazendas de cana-de-açúcar, construção de estradas e olarias. "Se há apenas três anos você chegasse durante a estação seca", diz Sitaram Kale, agricultor e dono de uma pequena loja em Satichiwadi, "só encontraria anciões e crianças muito pequenas vivendo aqui."

Os moradores não se convenceram fácil da ideia de que poderiam trabalhar juntos e reviver o vale. Conseguir que pusessem de lado suas desavenças demandou meses de reuniões, várias “visitas de exposição” preliminares a outros vilarejos onde o programa de vertentes da Wotr fora bem-sucedido e a diligente atenção de uma jovem assistente social, Rohini Raosaheb Hande, que por seis meses subiu e desceu a trilha até Satichiwadi dia sim, dia não. Rohini foi a segunda assistente social enviada a Satichiwadi pela Wotr - a primeira desistiu em poucas semanas. "Ela me disse que era um lugar sem esperança", lembra Rohini. "Ninguém sequer falava com ela."

Esse tipo de resistência é comum. No vilarejo de Darewadi, onde as obras das vertentes foram concluídas em 2001, um morador, de machado em punho, pusera os funcionários da Wotr para correr. Como a organização incentiva uma reconfiguração social de forma simultânea à mudança ambiental, seus esforços de início desagradam aos agricultores. A Wotr exige, por exemplo, que as decisões sobre a água no povoado incluam as mulheres, os não proprietários de terra e os membros das castas inferiores. Normalmente, eles poderiam ficar de fora. Para que a vegetação local tenha chance de se recuperar, os moradores também precisam concordar com as proibições de cortar árvores para lenha e de deixar seus animais pastarem livres durante vários anos. Finalmente, eles têm de confiar nos potenciais benefícios do trabalho nas vertentes, o bastante para se comprometer com o tédio que ele implica: três a quatro anos movendo terra com pás e picaretas de um lugar para outro a fim de redirecionar o fluxo da água da chuva.

Em Darewadi, Chimaji Avahad, um lavrador idoso que mora com sua parentela numa casa de dois cômodos engastada numa plantação de sorgo, recorda as dificuldades iniciais de ajustar-se às novas regras. Ele conta que ficou atordoado com a tagarelice da mulherada em sua casa. "Cada uma delas tinha uma opinião - minha mulher, minhas filhas, as noras e até as netas", ri ele. Sua esposa, Nakabai, de corpo mirrado e feições consumidas pelo trabalho na lavoura, logo emenda: "Foi uma excelente mudança".

Uma volta por Darewadi confirma. Descrito como um povoado deprimente e seco antes de o projeto começar há mais de uma década, hoje o vilarejo tem arbustos, árvores e prados de grama selvagem. Os poços continuam cheios, mesmo no auge da estação seca. Com mais água, os agricultores de Darewadi sentem pela primeira vez o gosto da prosperidade. Eles, que antes produziam apenas painço em quantidade suficiente para sobreviver, agora cultivam cebola, tomate, romã e lentilha, vendendo o excedente. Avahad deposita cerca de 5 000 rúpias (mais ou menos 100 dólares) no banco por ano. As mulheres de Darewadi usaram sua nova influência para conseguir a proibição da venda de álcool e formaram grupos femininos de poupança - outra característica dos projetos da Wotr. Esses consórcios femininos arrecadam uma pequena contribuição mensal das participantes e fazem empréstimos às que precisam pagar por casamentos, assistência veterinária ou a energia solar que hoje pontilha de luzes a noite do vilarejo.

Quando volto a satichiwadi em janeiro, os moradores mostram esperança em suas terras. As jovens árvores nas cumeeiras dos montes estão viçosas. Encostas e lavouras foram emolduradas por pequenas barragens e valas - lembram um lago cor de barro encrespado por pequenas ondas. Bhaskar Pawar, o lavrador que se sentou comigo no templo oito meses atrás, esperando para ver se o trabalho nas vertentes compensaria, agora conta, animado, que o nível da água nos poços do povoado está uns 3 metros acima do normal. Isso é ótimo, pois a monção, mais uma vez, enganou os aldeões. Não caiu uma só gota no vale em junho e nas três primeiras semanas de julho. Suas sementes de painço haviam murchado e morrido. "Foi um período terrível", lembra Bhaskar.

Mas, em fins de julho, quando as chuvas chegaram torrenciais, eles estavam preparados para captar a água e dar-lhe uso. Passaram os meses de outono colhendo tomates. Agora cultivam cebola e sorgo. E colhem também algo menos tangível: uma tênue harmonia recém-descoberta.

Em uma manhã, vejo Sitaram Kale, o lojista que é um dos nove membros do Comitê para o Desenvolvimento das Vertentes do Vilarejo, chegar de bicicleta ao bairro dos Pawar para informar sobre uma reunião que haverá mais tarde, na escola de seu lado da cidade. Ele dá a notícia a uma matrona, Chandrakhanta Pawar, que trata de espalhá-la enfiando a cabeça pela porta das casas vizinhas, certificando-se de que todo mundo irá comparecer e participar. "Vai ter reunião mais tarde, lá na Cidade dos Entediados", anuncia ela. "Um dos entediados veio avisar."

National Geographic Brasil

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Vale a pena ser sede da Copa 2014?


Vale a pena ser sede da Copa 2014?
Tomando por base só essa despesa, sediar o torneio parece uma fria – afinal, daria para turbinar áreas como saúde, habitação e educação (e ainda movimentar a economia) se não fosse preciso gastar uma grana modernizando estádios, por exemplo.
por Texto Mário Grangeia
Do ponto de vista econômico, tudo indica que não. Segundo os cálculos preliminares da CBF, o Brasil vai precisar gastar R$ 11 bilhões para se preparar para a Copa de 2014. Tomando por base só essa despesa, sediar o torneio parece uma fria – afinal, daria para turbinar áreas como saúde, habitação e educação (e ainda movimentar a economia) se não fosse preciso gastar uma grana modernizando estádios, por exemplo. Mas é preciso considerar outros itens para medir o retorno de uma Copa, como o gasto dos turistas. Pelas contas do governo, a Copa deve atrair 500 mil estrangeiros, que gastariam até R$ 3 bilhões. Além disso, se a competição gerar tantos postos de trabalho quanto a Alemanha gerou em 2006 (25 mil novas vagas), dá para computar mais R$ 500 milhões em investimentos, já que o custo médio por novo emprego está na casa dos R$ 20 mil. Há ainda quem identifique uma expansão da economia dos países-sede. Mas isso não é consenso. “Crescimento econômico é algo difícil de prever com tanta antecedência. No fim das contas, a alta do PIB pode ficar próximo de zero”, afirma o economista Fábio Sá Earp, da UFRJ. A esperança são os benefícios de longo prazo, mais difíceis de medir. Um estádio novo, por exemplo, pode gerar um círculo virtuoso no bairro, bombando o comércio e elevando a arrecadação para fazer mais obras. Sem contar que o torneio pode aumentar o fluxo turístico e melhorar a imagem do país. Se tudo isso acontecer, aí, sim, quem sabe em algumas décadas a gente poderá dizer que sediar uma Copa é um bom negócio. ?

Bola dividida
À esquerda, a estimativa de gastos para o torneio. À direita, imaginamos um plano alternativo para aplicar a grana
R$ 8,5 bi

Onde - Infra-estrutura.

Quem - gasta Governo.

Grana Para - a infra-estrutura das cidades-sede. Segundo a Fifa, 4 candidatas precisam aumentar seu aeroporto e 6 não têm transporte público estruturado Para - receber adequadamente os jogos.

R$ 2 bi

Onde - Reforma e construção de estádios.

Quem - gasta Iniciativa privada.

A aposta é que os governos locais busQuem - capital privado Para - fazer decolar os projetos. Em troca, os empresários teriam o direito de administrar os estádios por no mínimo 20 anos, para, em tese, obter lucro.

R$ 700 mi

Onde - Instalações oficiais.

Quem - gasta Fifa.

Este é o único dinheiro garantido. A Fifa afirma que ela mesma vai bancar a construção de estruturas de apoio Para - os jogos, da sede do comitê organizador, dos centros de mídia e das centrais de segurança.

R$ 2,1 bi

Onde - Expansão do saneamento.

Para - Levar água tratada a 2,2 milhões de casas e coleta de lixo a 2,1 milhões – cerca de 20% do déficit de saneamento.

R$ 2,8 bi

Onde - Crédito Para - casas populares.

Para - Financiar a construção ou compra de 480 mil casas populares – 6% do déficit habitacional.

R$ 2,8 bi

Onde - Universalização da eletricidade.

Para - Levar luz a 1,6 milhão de pessoas no campo – 13% da população sem acesso à energia.

R$ 1,4 bi

Onde - Combate ao analfabetismo.

Para - Ensinar 600 mil jovens e adultos a ler e escrever – o que representa 4% a menos de analfabetos no país.

R$ 1,4 bi

Onde - Bolsa Família.

Para - Custear o programa por um ano Para - 1,8 milhão de famílias, que receberiam um auxílio mensal de R$ 62.

R$ 700 mi

Onde - Saúde da Família.

Para - Levar o programa Saúde da Família a mais 2 milhões de pessoas – superaria a população de Curitiba ou Recife.

Fontes: Orçamento Copa 2014 (conversão a partir do valor estimado em dólares), CBF, Fifa. Orçamento alternativo: números recentes dos ministérios do governo federal, IBGE, site Contas Abertas, Agência Brasil, FGV.

Revista Superinteressante

O Brasil nunca sofrerá um grande terremoto?


O Brasil nunca sofrerá um grande terremoto?
Pelo menos enquanto a gente estiver vivo. “Já devem ter ocorrido grandes terremotos no Brasil há centenas de milhões de anos.
por Texto Rodrigo Ratier
Não dá para descartar uma megatragédia desse tipo, mas a possibilidade é muito pequena. Pelo menos enquanto a gente estiver vivo. “Já devem ter ocorrido grandes terremotos no Brasil há centenas de milhões de anos. Mas, nos dados sismológicos coletados desde o século 18, não há registro de tremor forte em nosso território”, afirma o geólogo João Carlos Dourado, especialista em sismologia da Unesp de Rio Claro (SP). A certeza de que o Brasil era uma terra abençoada por Deus e imune a terremotos, porém, foi abalada no início de dezembro, quando um tremor de 4,9 graus na escala Richter no vilarejo de Caraíbas (MG), causou a primeira morte no país. De fato, o Brasil tem pelo menos 48 falhas pequenas sob sua crosta – uma delas teria causado o chacoalhão fatal (veja mapa). Mas a imagem de um país remendado não é para assustar. Primeiro, porque o Brasil fica no meio de uma placa tectônica, a Sul-Americana, longe das instáveis regiões de contato entre placas. Segundo, porque as fraturas daqui geram no máximo terremotos médios como o de Caraíbas. Mesmo que um abalo atinja uma cidade grande, provavelmente os efeitos não serão devastadores. “As casas do vilarejo desabaram por serem construções muito simples, sem suporte estrutural. Em áreas urbanas, as estruturas são reforçadas e mais resistentes a tremores dessa intensidade”, diz João Carlos.

Revista Superinteressante

Estratégia operária e neocapitalismo


Estratégia operária e neocapitalismo

Working-class strategy and neocapitalism
Iram Jácome Rodrigues

Professor livre-docente do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq. E-mail: ijrodrig@usp.br

I
Entre as questões suscitadas por Gorz, em seu livro Estratégia operária e neocapitalismo, há um tema que se sobressai: o local de produção como locus privilegiado do conflito entre capital e trabalho e das consequências organizativas propostas por este autor no que viria a ser uma nova estratégia de setores do movimento operário e do sindicalismo para os tempos de Welfare State.

Gorz inicia este seu trabalho contextualizando os aspectos mais gerais da relação entre socialismo e necessidade, e analisando as mudanças nas condições do capitalismo nos países centrais. Além disso, aponta que nesses países a extrema pobreza representaria apenas 20% da população. Com isto, tenta mostrar que ocorreu uma mudança fundamental naqueles países capitalistas mais desenvolvidos e, por essa razão, seria necessário repensar a estratégia do movimento operário e do sindicalismo nessas sociedades.

O socialismo nunca foi uma necessidade que se impusesse às massas com uma evidência fulgurante. Da revolta primitiva à vontade consciente de modificar a sociedade, nunca houve uma passagem imediata. O descontentamento dos trabalhadores, mesmo poderosamente organizados, a respeito de sua condição, nunca foi ultrapassado espontaneamente, visando uma colocação em questão daquilo que, na organização geral da sociedade, tornava sua condição insuportável (Gorz, 1968, p. 9).

O autor faz, nesse estudo, uma reflexão sobre as transformações ocorridas no capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial, notadamente nos anos de 1950 e início da década de 1960, no que diz respeito ao advento das novas condições em que se estruturava a produção capitalista.

Nesse sentido, esse movimento, que alguns convencionaram chamar de fordismo, foi um arranjo institucional estabelecido entre atores sociais diversos: as grandes empresas, os grandes sindicatos de trabalhadores e o Estado, com vistas a manter uma política econômica de tipo intervencionista (keynesiana) de proteção do mercado interno, alguma redistribuição da renda no âmbito desses países e uma atenuação, em um primeiro momento, do conflito capital/trabalho, se comparado com os conflitos de classe do século XIX até os anos de 1930.

Por isso,

[...] a recusa da sociedade perdeu, nos países capitalistas avançados, sua base natural. Enquanto a miséria - isto é, a privação do que é necessário para viver - era a condição da maioria, a necessidade de um desabamento revolucionário da sociedade podia vir automaticamente. Proletários e camponeses miseráveis não tinham necessidade, para se erguerem contra a ordem existente, de saber que outra sociedade pretendiam construir: o pior era o presente; não tinham nada a perder" (Idem).

Já nas condições desse novo capitalismo, mesmo subsistindo, a miséria não afetaria mais do que 20% de seus habitantes. Além disso, "esta população, além do mais, não é homogênea; está concentrada em certas regiões, em certas camadas que não são representativas de sua classe: pequenos camponeses de regiões [distantes], anciãos, desempregados, operários sem qualificação etc. Essas camadas são incapazes de se tornarem a agrupar para exercer uma ação decisiva sobre a sociedade e o Estado. Elas têm necessidades comuns, mas não um projeto referente às condições satisfatórias. Aí está uma primeira razão pela qual a miséria não pode mais servir de fundamento à luta pelo socialismo" (Idem).

O que está sendo mostrado por André Gorz é que as condições tanto sociais como políticas e econômicas se modificaram com o advento do Estado de Bem-Estar Social. Assim, o sistema econômico-político-social que emergiu após 1945, e que perdurou até inícios dos anos de 1970, em grande parte da Europa Ocidental, Estados Unidos e Japão, foi responsável por uma estabilidade que representou um incremento do bem-estar e aumento da riqueza em todos esses países. Nesse período, além desses aspectos e das altas taxas de crescimento econômico, a democracia e o Estado de Bem-Estar foram consolidados. Além disso, o Estado estimulou o desenvolvimento da atividade produtiva por meio de empréstimos e investimentos de longo prazo (cf. Rodrigues, 2006, p. 205).

Esses investimentos, em cada país, coordenados pelos Estados nacionais, embora assumissem alguns aspectos mais específicos, tinham como principal característica o processo de regulação do Estado no que tange à política macroeconômica, ou seja, uma decisiva intervenção do Estado na economia, com o objetivo de garantir o equilíbrio no campo econômico e a paz social no terreno político. Essas singularidades manifestavam-se em diferenças no padrão dos gastos públicos, na organização do sistema de bem-estar social e na presença maior ou menor do Estado nas decisões econômicas.

Desse modo, o conjunto de arranjos institucionais e corporativos constituiu-se na essência do que veio a ser denominado compromisso fordista e foi o principal ponto de apoio de sua estruturação. Vale dizer, Estado, grandes corporações e sindicatos passaram a ser a nova base desse regime de acumulação, cuja característica era a produção em massa de bens padronizados e em série.

Nesse aspecto, o fordismo representou um aprofundamento e ampliação do taylorismo na medida em que relacionou diretamente as mudanças que estariam ocorrendo no trabalho com transformações nas condições gerais de existência do trabalho assalariado. O conjunto dessas transformações, entre outros aspectos, levou à institucionalização das relações capital/trabalho por meio de processos de negociação na empresa, nos setores econômicos e no plano nacional (cf. Aglietta, 1991).

Esse é o pano de fundo das reflexões de Gorz com relação às novas questões surgidas com o advento do Estado Social e, diante desses temas, seria importante repensar a estratégia operária. Como observa Queiroz (2006, p. 65), "a reflexão desenvolvida por Gorz nas décadas de 1950 e 1960 esteve intimamente vinculada a um objetivo específico: pensar as características que o capitalismo assumia e propor novas alternativas de luta à classe trabalhadora. Para isso, o que mostra que recusava as usuais e dogmáticas concepções que eram naquele momento predominantes na esquerda marxista, analisou as várias esferas para, daí, mostrar que modificações o capitalismo pós-guerra trazia consigo. Este confronto ocorria também em relação às tradicionais formulações táticas e estratégicas do movimento dos trabalhadores, o qual se encontrava ainda fortemente influenciado pela perspectiva da III Internacional"1.

É nessa perspectiva que Gorz abordará a questão de uma nova estratégia para o movimento operário que parte, principalmente, das "reformas não reformistas". Assim, "esta luta não faz depender, de critérios capitalistas de racionalidade, a validade e o direito tradicionalmente consagrado pela necessidade" (Gorz, 1968, pp. 13-14). No entanto, Gorz assinala que para uma mudança na direção dessa estratégia seria necessária também outra correlação de forças. Os trabalhadores teriam que conquistar poderes ou afirmar poderes. Em outras palavras, seriam necessárias reformas de estruturas.



II

Refletindo sobre um momento histórico de grandes transformações no capitalismo contemporâneo, o período que vai do final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos de 1960, Gorz explicita a demanda de controle do processo de trabalho que desempenha um papel central para seus argumentos. Pois essa demanda "adquire uma crescente significância em relação às lutas em torno dos salários e das horas de trabalho [...]. Enquanto a velha estratégia estava preocupada com demandas quantitativas, as demandas da nova estratégia são de natureza mais qualitativa. Ou seja, embora as demandas quantitativas ainda façam parte das principais preocupações da nova estratégia, sua importância parece diminuir à medida que o problema do controle operário se torna o núcleo das preocupações" (Silva, 2002, p. 104).

Assim, o tema do controle operário da produção, do controle do processo de trabalho, transforma-se para Gorz no cerne das mudanças necessárias para pensar a nova estratégia operária. Nesse aspecto, no contexto dos problemas tratados, o autor privilegia a questão do poder dos trabalhadores no âmbito da produção, do local de trabalho como central para a nova estratégia operária. Gorz observa que o proletariado, para que possa manter

[...] sua vocação de classe dirigente, deve primeiramente atacar a condição operária nos locais de trabalho porque é lá que, através das alienações mais diretas do trabalhador, como produtor e cidadão, a sociedade capitalista pode ser indiretamente contestada. E também porque é unicamente através da recusa consciente das relações opressivas de trabalho, através de uma ação consciente para submetê-las ao controle dos trabalhadores associados, através de uma vontade ininterrupta de autodeterminação independente das condições de trabalho, que a classe operária pode conservar ou afirmar permanentemente a autonomia de sua consciência de classe, a emancipação humana do trabalho como finalidade suprema" (Gorz, 1968, p. 46).

Neste caso, uma das questões subjacentes ao pensamento gorziano é trazer o local de trabalho para o centro da política. Na verdade, a "nova estratégia operária" vislumbrada por Gorz representa, ao mesmo tempo, uma crítica contundente à esquerda tradicional e, em certa medida, uma volta às raízes do movimento operário quando a questão do controle operário da produção, do trabalhador como produtor, estava em tela. Para Offe (1989, p. 176), por exemplo, "a unidade e coerência do trabalho" expressar-se-ia também no "orgulho coletivo dos produtores, uma consciência que reflexivamente expressa a teoria do valor do trabalho e o coloca (nas palavras da Crítica do Programa de Gotha) como 'a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura'".

O tema da organização dos trabalhadores em seus locais de trabalho está presente desde o início do movimento operário. O que leva à organização no interior das empresas é uma tendência generalizada por parte da mão de obra no sentido de adquirir algum poder de controle sobre as condições de trabalho. De outra parte, representa, também, um aspecto da resistência do operariado diante da organização capitalista do trabalho, bem como expressa o forte conflito entre capital e trabalho nos albores do capitalismo em decorrência, entre outros aspectos, das condições draconianas, à época, do trabalho fabril.

Segundo Sturmthal, do ponto de vista histórico, a organização operária no interior da empresa frequentemente precedeu o nascimento do sindicato como instrumento de negociação entre capital e trabalho. Ainda de acordo com esse autor, nos anos de 1848-1849, em decorrência da revolução na Alemanha, "uma das instituições propostas foi a formação de conselhos operários" que tinham como principal objetivo, entre outros aspectos, a resolução das disputas e reclamações internas, a regulamentação das relações entre capital e trabalho na empresa e a criação de organismos de bem-estar social (cf. Sturmthal, 1971, pp. 33 e 111).

Esses aspectos podem nos ajudar a entender a recorrência às formas de organização de base quando de conflitos entre patrões e empregados. Na luta por seus direitos no interior do estabelecimento industrial, os trabalhadores procuram se organizar em seus locais de trabalho, nascendo assim a representação trabalhista nas empresas. Vale dizer, há uma tendência visível entre os assalariados, no bojo de grandes movimentos grevistas ou mesmo em greves isoladas, quando a questão já está disseminada na prática cotidiana das lutas operárias, de recorrer às organizações dos empregados nos locais de produção: chamem-se comissões de fábrica, comissões de empresa, conselhos operários etc.

Desse ponto de vista, quando Gorz enfatiza o tema do poder operário, significa, como observa Silva, a capacidade dos trabalhadores nas empresas de questionar mediante o controle operário da produção "as premissas [da] política de gestão da economia e das empresas capitalistas através do controle sobre os meios e as condições de sua formulação" (2002, p. 116).

Por isso, para que fosse possível construir essa nova estratégia seria necessário, segundo Gorz , relacionar as questões da produção, do cotidiano operário e da fábrica com o conjunto da sociedade:

A possibilidade de reunir em uma mesma perspectiva a condição operária no seio do processamento produtivo e no seio da sociedade, a possibilidade de fornecer dialeticamente motivos imediatos de descontentamento por razões profundas, inerentes às relações sociais e ao poder econômico e político, tal possibilidade surgiu de maneira mais ou menos explícita durante o desenrolar de todas as ações de massa do passado próximo. [...] Espontâneas ou demoradamente preparadas, todas essas ações punham em questão, de maneira explícita ou implícita, muitos outros problemas além do nível salarial. E demonstraram, cada uma a sua maneira, que, limitada unicamente ao aspecto salarial, a luta operária é imediatamente absorvida pela ondulação tática do patronato e do Estado; corre o perigo de atolar-se nas reivindicações de categorias e corporativas; mesmo vitoriosas sob este aspecto, arrisca-se a liquidar-se por uma derrota estratégica (Gorz, 1968, p. 38).

É fundamental, de acordo com Gorz,

[...] unir, na estratégia reivindicativa, a condição dos trabalhadores em seus locais de trabalho à sua condição no seio da sociedade. [...] Essa possibilidade é dada pela estreita conexão existente, na vida de todo trabalhador, entre as três dimensões essenciais de sua força de trabalho: 1. As relações de trabalho: isto é, a formação, a avaliação e a utilização da força de trabalho na empresa; 2. A finalidade do trabalho: isto é, as finalidades (ou produções) para as quais a força de trabalho é utilizada na sociedade; 3. A reprodução da força de trabalho: isto é, a maneira e o local de vida do trabalhador, a maneira pela qual pode satisfazer suas necessidades naturais, profissionais, humanas (Idem, p. 39)2.

Gorz está valorizando, assim, a apreensão da realidade do mundo do trabalho por meio do cotidiano operário no interior da empresa, no contexto do espaço da fábrica, a partir das formas de controle que são exercidas sobre a força de trabalho, de um lado, e da resistência e/ou integração ao controle capitalista pelos trabalhadores, de outro; ao mesmo tempo buscando captar o movimento da classe, suas formas de organização, tanto formais quanto informais, e observando como realmente se dá o conflito no interior da empresa. Em outras palavras, como os trabalhadores enfrentam as condições vivenciadas dentro da fábrica, como se dá a sua experiência no local de produção, bem como as estratégias que podem ser utilizadas pelo operariado na relação com o patronato.

No entanto, ao mesmo em que tempo que o estudo da vivência na fábrica é fundamental para compreendermos a classe operária em seu movimento, é importante ver também a relação dessa classe com outras classes, ou seja, a sua relação com a sociedade, fora dos muros das fábricas.

Vale dizer, para apreendermos o cotidiano operário é necessário vê-lo tanto dentro como fora da fábrica. Thompson, analisando a formação da classe operária inglesa, diz que

[...] as pressões em favor da disciplina e da ordem partiram das fábricas, por um lado, e das escolas dominicais, por outro, estendendo-se a todos os demais aspectos da vida: o lazer, as relações pessoais, a conversação e a conduta. Juntamente com os instrumentos disciplinares das fábricas, das igrejas, das escolas, dos magistrados e dos militares, havia outros meios semioficiais para se impor um comportamento moralizado e disciplinado" (Thompson, 1987, p. 292).

O cotidiano operário é permeado principalmente pela vida na fábrica, em seu local de trabalho. Para grande parte do operariado, o não trabalho, por exemplo, não representa necessariamente o momento do lazer. Esse tempo livre é utilizado principalmente para reorganizar as forças físicas para enfrentar o novo dia de trabalho. O tempo do não trabalho é o mesmo dedicado ao descanso físico. "A vida cotidiana é, em grande medida, heterogênea; e isso sob vários aspectos, sobretudo no que se refere ao conteúdo e à significação ou importância de nossos tipos de atividade. São partes orgânicas da vida cotidiana: a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso" (Heller, 1972, p. 18). Ainda, segundo a autora, na época pré-histórica, "o trabalho ocupou um lugar dominante nessa hierarquia; e, para determinadas classes trabalhadoras (para os servos, por exemplo), essa hierarquia se manteve, ainda, durante muito tempo; toda a vida cotidiana se constituía em torno da organização do trabalho. À qual se subordinavam todas as demais formas de atividade" (Idem).

O operário fabril de nossos dias, assim como o servo exemplificado por Heller, também vive seu cotidiano profundamente absorvido "pela organização do trabalho", à qual todas as outras atividades estão subordinadas.

A contradição entre tempo livre e trabalho, a oposição entre trabalho e vida foi criada com o advento do capitalismo, mais precisamente com a industrialização. A noção do tempo é completamente modificada com o surgimento da sociedade capitalista. Segundo Thompson, as sociedades industriais distinguem-se como tais em função da maneira como administram o tempo e pela divisão entre trabalho e vida (cf. Thompson, 1979, p. 288).

Referindo-se ainda à questão do tempo, esse autor afirma:

[...] os patrões ensinaram à primeira geração de operários industriais a importância do tempo; a segunda geração formou comitês de jornada curta no movimento pelas dez horas; a terceira fez greves para conseguir horas extras e jornada e meia. Aceitaram as categorias de seus patrões e aprenderam muito bem a lição de que o tempo é ouro" (Idem, pp. 279-280).

Esse processo, no entanto, não se deu sem resistências da classe operária que estava se formando:

[...] a este novo ritmo imposto à vida ordenado pelos patrões, senhores dos relógios [...], o escravo da fábrica reagia nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres do início da Era Industrial do século XIX. Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da bebida ou do culto metodista. Mais aos poucos, a ideia de regularidade espalhou-se, chegando aos operários" (Woodcock, 1998, p. 125).

De certa forma, o itinerário gorziano de volta às origens do movimento operário - na década de 1960 - está permeado pelas questões acima sublinhadas.

Não existe uma crise do movimento operário, mas há uma crise da teoria do movimento operário. Esta crise (no sentido de reexame, crítica, ampliação do pensamento estratégico) é devida, principalmente, ao fato de que a reivindicação econômica imediata não mais basta para expressar e concretizar o antagonismo radical da classe operária diante do capitalismo; e de que esta luta, por mais árdua que seja, não é mais suficiente para colocar a sociedade capitalista em crise nem afirmar a autonomia da classe operária frente à sociedade na qual se insere" (Gorz, 1968, p. 28).

Para o autor, naquele momento a questão central era a ruptura com o sistema capitalista.

Ao longo do século XX, nos países centrais, a atividade do movimento operário e do sindicalismo guardou estreita relação com o desenvolvimento do capitalismo. As estratégias dos atores do mundo do trabalho estiveram associadas às ações levadas adiante pelo capital, em cada situação concreta. Nos primeiros tempos um embate duro, de classes. De um lado, os setores que buscavam sua inclusão na sociedade da época e, de outro, aqueles que desejavam manter os privilégios, o status quo. Mesmo com diferenças nacionais esse processo, de certa forma, ocorreu até o final dos anos de 1930 e 1940; um segundo momento, em linhas gerais, estendeu-se do final da Segunda Guerra Mundial até início dos anos de 1970. É o período de construção do Estado de Bem-Estar Social, que expressava uma aliança "tácita" entre três setores importantes: as grandes empresas, o governo e as centrais sindicais e/ou grandes sindicatos de trabalhadores.

Nesse caso, houve uma ampliação dos direitos sociais, da cidadania, e a real inclusão das classes trabalhadoras na sociedade como um todo, em particular na sociedade de consumo. É o período em que grande parte dos países europeus acompanha a chegada ao poder dos partidos socialdemocratas que possuíam, à época, ampla base de apoio junto ao operariado.

Os anos de 1970, no entanto, desestruturam parte do arcabouço anterior do contrato social e mudaram a configuração na qual os atores sociais atuavam. Essas transformações resultaram no aparecimento de novas formas de organização da produção nas empresas e mudanças substanciais na composição das classes trabalhadoras, e trouxeram impactos relevantes para as relações de trabalho: os sindicatos perderam, em termos relativos e absolutos, um número significativo de aderentes e, de outra parte, houve uma acentuada diminuição do conflito industrial nos países capitalistas centrais.

O mundo do trabalho está vivendo uma profunda transformação nestes últimos quarenta anos. É possível que estejamos assistindo a uma mutação tão significativa quanto aquela que foi palco o século XIX, com os impactos trazidos pela Revolução Industrial (cf. Munck, 2002; Waterman, 1999; Castells, 2000). E, por essa razão, as questões presentes na ação do movimento operário e do sindicalismo, atualmente, são distintas dos temas que se apresentavam para a ação do trabalho organizado no pós-guerra.



III

Uma primeira meta das alternativas políticas a ser liberada será destruir o muro que separa o produtor de seu produto e leva o trabalhador, como consumidor mistificado, à contradição consigo mesmo, como produtor alienado. As reivindicações imediatas dos trabalhadores referentes aos salários, horários, ritmos e qualificações, oferecem aos sindicatos, e sobretudo às seções de empresa dos partidos da classe operária, ocasião de indagar sobre o problema da utilidade social e individual de produções às quais o trabalho está vinculado (Gorz, 1968, p. 81).

Esta passagem de Gorz, de certa forma, resume o espírito de seu livro. Uma crítica contundente à sociedade capitalista e uma tentativa de construir uma alternativa a esta. Projeto que passaria por "alcançar a constituição de um poder operário no nível das empresas, dos ramos e, finalmente, da própria economia nacional" (Idem). Neste caso, as premissas presentes em seu trabalho são aquelas que dão conta do fetichismo da mercadoria, do estranhamento, da alienação como analisados na obra de Marx.

Naquele momento, diante das novas configurações do capitalismo que Gorz chama de neocapitalismo, expressão do arranjo sociopolítico-econômico que desembocou, de um lado, no Estado Social e, de outro, em um corporativismo societário (cf. Schmitter, 1992), particularmente na Europa Ocidental, André Gorz constrói uma saída para as classes trabalhadoras que tem como pressuposto a emancipação pelo trabalho, a partir do local de produção, com vistas a alcançar uma sociedade em que não mais existisse a exploração do homem pelo homem. Qualquer proposta que não levasse em conta a autogestão da produção pelos próprios trabalhadores não teria como resolver o problema da alienação no capitalismo. Nesse período, Gorz "considera o problema do controle operário dos processos de trabalho como um ponto de partida necessário para uma estratégia revolucionária preocupada com o problema da alienação do trabalho" (Silva, 2002, p. 115). Isso porque, ainda que a questão da alienação não estivesse limitada ao local de produção, "é nele que residem suas raízes mais profundas" (Idem).

A proposta apresentada por Gorz em Estratégia operária e neocapitalismo,de reformas revolucionárias ou reformas de estruturas, é uma construção analítica que pressupõe a empresa como o centro do embate entre capital e trabalho e como base da sociabilidade e identidade operárias. A luta por essas reformas

[...] deve aparecer, em todos os níveis, como uma possibilidade concreta e positiva, realizável sob a pressão das massas: no nível da oficina, pela conquista de um poder operário sobre a organização e relações de trabalho, no nível da empresa, pela conquista de um contrapoder operário concernente à taxa de lucro, o volume e a orientação dos investimentos, a evolução e o nível tecnológico" (Gorz, 1968, p. 68).

Essa visão estava baseada na ideia do trabalho e do mundo do trabalho como categoria explicativa fundamental para as sociedades contemporâneas. É, no entanto, esse arcabouço mais geral, no qual estava baseada a teoria e que tinha o trabalho assalariado e suas contradições como tema central para a compreensão do mundo em que vivemos, que nos dias atuais se tornou sociologicamente problemático e que, de certa forma, foi colocado em xeque pelas transformações ocorridas nos últimos decênios (cf. Offe, 1989).

É verdade que o sindicalismo, mesmo vivendo mundialmente uma situação defensiva, bem diferente daquela que era a norma até meados dos anos de 1970, no nível da empresa, dadas certas condições, discute/negocia o tema da participação nos lucros e nos resultados, nas orientações dos investimentos, em alguns casos, notadamente no âmbito da cidade ou da região onde o sindicato está estabelecido, bem como o tema da tecnologia. No entanto, no horizonte do movimento operário ou do sindicalismo - atualmente - o móvel de sua luta é menos a busca pelo controle da produção e pela emancipação socialista a partir do local de trabalho e mais a tentativa de inclusão na chamada sociedade de consumo.

As reflexões trazidas por André Gorz em seu livro Estratégia operária e neocapitalismo retratam aquele momento, os anos de 1950 e 1960, quando os sindicatos nos países centrais são institucionalizados e legitimados no bojo de um arranjo político que tem como premissa o aumento do poder e a consolidação das representações trabalhistas e, como consequência, o Estado Social. Isso tudo, em larga medida, é passado: nas últimas décadas, as grandes organizações industriais, que representavam a força do trabalho organizado, foram aos poucos perdendo força, enfraquecendo sua capacidade de confrontação, de negociação com o capital. Competição global, recessão e incertezas econômicas crescentes trouxeram resultados devastadores para a instituição sindical (cf. Martins Rodrigues, 1999; Western, 1999).

Fica então imediatamente evidente que lutar para que a vida conserve um sentido é lutar contra o poder do capital, e que essa luta deve passar, sem solução de continuidade, do plano da empresa para o plano da sociedade, do plano sindical para o plano político, do plano técnico para o plano cultural. Cabe então ao movimento socialista tomar fôlego e situar o combate no seu verdadeiro terreno: a luta pelo poder. Tudo a partir de então é posto em jogo: os empregos, os salários, as carreiras, a cidade, a região, a ciência, a cultura, a possibilidade de desenvolver as capacidades dos indivíduos [...]. Tudo isso só pode ser salvaguardado ou reconquistado se o poder de decisão passar das mãos do capital para as mãos dos trabalhadores (Gorz, 1968, p. 111).

O mundo do trabalho nos dias de hoje guarda uma considerável distância das principais teses expostas por Gorz em Estratégia operária.Ainda que existam setores no interior do movimento dos trabalhadores que mantenham "a chama acesa" dos temas propostos por Gorz, em sua esmagadora maioria, no entanto, o movimento sindical e parcelas ponderáveis das tendências políticas com alguma ligação com as classes trabalhadoras - na sociedade contemporânea - parecem preferir, para parafrasear Gramsci, a guerra de trincheiras à tomada do Palácio do Inverno; a defesa dos direitos já adquiridos nos países de capitalismo maduro e que foram solapados pelos ventos neoliberais nos anos de 1970 e na década de 1980 à luta pela defesa do "poder operário". Não vivemos mais os tempos da Guerra Fria, do mundo bipolar, das certezas incontestes. Tudo isso ficou pelo caminho. O que se assiste hoje é um processo irreversível de transformações nos âmbitos político, social e econômico, que deitou por terra o arcabouço institucional que fora criado com o fim da Segunda Guerra Mundial e que colocou em xeque o chamado compromisso fordista. Outros são os tempos, outras são as questões. Nesse sentido, é possível dizer que este livro de André Gorz é uma obra que caracteriza uma abordagem sociopolítica que se fazia presente em amplos setores da esquerda revolucionária à época, e que mobilizou corações e mentes, atingindo seu ápice no maio francês de 1968.

É importante, no entanto, situar o livro no âmbito do debate intelectual da década de 1960. O próprio autor modifica completamente sua análise sobre a classe operária, a sociedade capitalista e as possibilidades de uma revolução socialista no modelo em que havia sido pensado em Estratégia operária e neocapitalismo quando escreve Adeus ao proletariado.Aqui, já é outro momento histórico, em que a tecnologia da informação parecia ser a miríade do futuro. Além disso, diante das profundas mudanças ocorridas na sociedade capitalista, Gorz já não vislumbra a estratégia socialista de reformas revolucionárias que tinha como agentes o operário no local de trabalho, o partido e o sindicato. Nesse caso, a inflexão do pensamento do autor vai levá-lo a recontextualizar o lugar da política e, nesse novo espaço, o proletariado já não seria o portador do futuro, o agente fundamental da transformação social, o sujeito da emancipação. Mas isso já é outra história.
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1Para esta questão, ver também Amorim (2006).
2Ver também Silva (2002, pp. 104-105).
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