quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Donas de casa e chefes de família

Por razões diversas, a cada dia elas assumem novas funções e encargos

MIGUEL NÍTOLO

"La Scapigliata", de Leonardo da Vinci

Nada será como antes. Se, no passado, à mulher cabia a tarefa de pilotar o fogão, lavar e passar a roupa, cuidar das crianças, manter a casa limpa e preparar o almoço e o jantar para o marido, então o grande responsável pelo sustento do lar, agora ela está se tornando titular de ocupações que antes diziam respeito apenas aos homens. E assumindo a função de pai e mãe no ambiente doméstico, respondendo pela colocação da comida na mesa, pela escola dos filhos, pelo salário da empregada e pelo pagamento das contas. Essas novas mulheres estão em todos os quadrantes, na favela da Rocinha e no Leblon, no sertão e no litoral, na aristocrática e espaçosa Avenida Paulista e nas ruas apertadas de Olinda. Reflexos da emancipação feminina, dos costumes em constante mutação ou do divórcio? Ou, ainda, resultado da evolução natural do comportamento humano? Seja como for, uma coisa é certa: um número crescente de lares tem mulheres no comando, e isso independe da condição social e do tamanho da conta bancária. Tanto faz se elas são executivas, donas de empresas e secretárias bilíngues ou faxineiras, empregadas domésticas e operárias.

A ascensão das descendentes de Eva no mundo em que, outrora, somente os filhos de Adão tinham voz ativa está estampada com todas as letras na Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgada meses atrás pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde se lê que os 25,9% de lares no Brasil chefiados por mulheres em 1998 pularam para 34,9% em 2008. Alguma novidade? Nenhuma, considerando que no mesmo período a participação delas no mercado de trabalho foi de 42% para 47,2%. E há outro dado que realça a salutar presença da mulher na vida econômica da nação: elas já estariam dando conta de 40% da demanda por automóveis, situação que vem motivando donos de oficinas antenados com as mudanças a reservar espaço e a oferecer um atendimento no mínimo diferenciado à nova classe de clientes.

A mulher já dirige os destinos da Argentina e do Chile, e não seria nenhuma surpresa se, nas próximas eleições para presidente da República, no Brasil, uma representante da ala feminina ganhasse o direito de despachar diretamente do Palácio do Planalto. Ou seja, o sexo que um dia foi ironicamente chamado de frágil está, hoje, presente em basicamente todos os segmentos e se saindo muito bem.

É na condição de cabeça da família, porém, que o avanço da mulher mais desperta atenção. De acordo com Maria Coleta Oliveira, do Núcleo de Estudos de População (Nepo), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é preciso, no entanto, distinguir antes o conceito de “chefe” e o de “pessoa responsável” da família ou do domicílio. “Esses termos levam a ambiguidades de interpretação dos dados. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), levada a efeito pelo IBGE, usa o termo ‘pessoa responsável’, mas não determina o que isso significa exatamente.” Assim, segundo ela, cada respondente pode usar o sentido que bem entender. “Há países que definem um critério claro e rígido, como, por exemplo: pessoa que ganha mais ou pessoa que toma decisões sobre o dinheiro, ou, ainda, pessoa que paga o aluguel da moradia etc. Em nosso caso, isso não está predefinido.” Feita essa ressalva, conforme diz a professora Maria Coleta, é evidente que as informações conduzem à interpretação de que as mulheres ou estão adquirindo posições de maior responsabilidade na própria família – já que se autodefinem ou são definidas pelo respondente como responsáveis por ela – ou reconhecendo esse papel.

Efeito em cadeia

Seja como for, entretanto, é notório que há um conjunto de fatores que estão contribuindo para o aumento dos lares monoparentais em que a mulher é a pessoa que dá as cartas. Julieta Romeiro, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), salienta que a crescente participação feminina no mercado de trabalho, o maior controle sobre a reprodução, o aumento da participação política e, mais recentemente, o advento de leis como a Maria da Penha, que criminaliza a violência contra a parceira, podem ser listadas como causas importantes da reestruturação da identidade de gênero e de uma maior autonomia e independência da mulher. “E, como num efeito em cadeia, essas mudanças trouxeram novos desenhos e configurações aos espaços privados, uma vez que a entrada da mulher na vida pública afetou a forma como as famílias se organizam e se estruturam.”

A socióloga Márcia dos Santos Macedo, doutora em ciências sociais e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), comenta que uma pluralidade de fatores econômicos, sociais, culturais e comportamentais está por trás da nova realidade, citando como exemplo a precariedade das condições de vida da população, articulada a fatores demográficos – tais como a ocorrência de novos fluxos migratórios, a redução da fecundidade, o aumento do número de separações, o crescimento relativo das uniões consensuais e as chamadas “produções independentes”. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), da UFBA, ela afirma que “a complexa combinação desses elementos vem dando origem a arranjos familiares com chefia feminina, podendo desaguar em diferentes situações sob o mesmo rótulo, como a condição da mulher solteira, viúva ou separada com filhos, ou da casada que coabita com companheiro e filhos, ou ainda da que se encontra nas mesmas circunstâncias e vive também com parentes e outros agregados”.

Isso, porém, não é tudo, conforme observa Paola Gambarotto, bacharel em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em sociologia pela Unicamp, cuja dissertação discute a transformação da figura feminina a partir de famílias monoparentais de classe média. Segundo ela, a escolaridade da mulher tem trilhado uma rota francamente ascendente e contribuído para o incremento do voo solo como chefe da casa. Isso, na realidade, pode ser facilmente comprovado em qualquer sala de aula, especialmente do ensino técnico e superior, e no florescimento das escolas dedicadas ao treinamento e formação de mão de obra.

A Síntese de Indicadores Sociais detectou que a escolaridade das mulheres é superior à dos homens. A pesquisa do IBGE mostra que em 2008, na área urbana, a média entre as mulheres ocupadas era de 9,2 anos de estudo, enquanto, para os homens, era de 8,2. Na área rural, apesar dos patamares mais baixos, os números também eram favoráveis à mulher (5,2 anos, para 4,4 entre os homens). Além disso, segundo o levantamento, de cada cem pessoas com 12 anos ou mais de estudo, 56,7 eram mulheres. “Essa diferença se manifestou em todos os estados brasileiros, mas chamou a atenção no Maranhão, em Piauí, Sergipe, Pernambuco, Tocantins e Mato Grosso do Sul. Entre os maranhenses, 62,7 eram mulheres”, informa a SIS.

Há ainda o alongamento da expectativa de vida da mulher e a predominância da mortalidade masculina em praticamente todas as idades (os homens morrem mais cedo), que também concorrem para a construção da nova estrutura familiar. Quando a empresária Jussara Aranha perdeu o marido, morto há dois anos depois de um casamento feliz que já durava mais de duas décadas, parecia que o mundo tinha vindo abaixo. Dono de uma farmácia com dez funcionários, o casal sempre se entendeu em relação ao encaminhamento dos negócios, mas a responsabilidade pela administração repousava sobre os ombros do marido.

“Naquele momento, era eu ou eu. Não dava para esperar ajuda e sabia que não podia deixar a peteca cair porque, além de ter de cuidar de meus dois filhos, na oportunidade com 20 e 16 anos e ainda hoje estudantes, precisava manter em pé o projeto de nossas vidas.” Jussara conseguiu a duras penas superar as dificuldades e, assim, sentiu-se forte o bastante para dar as costas às propostas de concorrentes interessados na aquisição de sua firma. “Eles me viram sozinha e apostaram que me daria mal. Enganaram-se todos, redondamente”, diz. E aproveita para mandar um recado: “Minha empresa não está à venda”, confirma, contente com a expectativa de, no ano que vem, ver o filho mais velho diplomar-se em farmácia.

A partida do parceiro tem peculiaridades que tornam a ascensão da mulher à posição de mandante do lar um acontecimento mesclado de dor e sofrimento. “Crescem os exemplos de morte prematura entre jovens de 15 a 24 anos por meios violentos – homicídios e acidentes”, ressalta Maria Quinteiro, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri), da USP. Também coordenadora do Grupo de Estudos Mulheres e Temas Transnacionais (Gemttra), ela cita ainda o enorme contingente de presidiários, cuja situação acaba legando à mulher a incumbência da educação dos filhos. Segundo Maria Quinteiro, a vida das mulheres que chefiam famílias é caracterizada pela sobrecarga derivada do acúmulo de funções. “Ela é a provedora e a cuidadora principal ou exclusiva. Com o aumento do estresse, crescem a irritabilidade, a impaciência e a intolerância”, comenta a professora da USP.

Políticas públicas

A psicóloga Maria Tereza Maldonado explica que os encargos tendem a se tornar excessivos quando a mulher não dispõe de uma rede de apoio eficaz, formada por amigos, amigas e pessoas da família, enfim, gente a quem possa recorrer em caso de necessidade. Autora dos livros Casamento, Término e Reconstrução e Comunicação entre Pais e Filhos, ela esclarece que essa rede diz respeito não apenas a relacionamentos pessoais, mas também a políticas públicas. “Infelizmente, as leis, quando existem, nem sempre são cumpridas, e esse é o caso, por exemplo, da obrigatoriedade da instalação de creches nos locais de trabalho”, diz.

O fenômeno da chefia de domicílios por mulheres não é, propriamente, uma “nova realidade”, a despeito de só recentemente o assunto ter recebido maior divulgação. “O que podemos considerar como novo, nesse contexto?”, pergunta Márcia Macedo, da UFBA. “É sua expansão entre as chamadas camadas médias brasileiras, que, do ponto de vista ideológico, vem se chocar com o modelo dominante nesse universo, centrado na chefia masculina”, ela mesma responde. Segundo a cientista social, embora nas camadas populares esse fenômeno seja bastante recorrente, as últimas décadas testemunharam uma significativa reviravolta em todos os estratos sociais, contribuindo, consequentemente, para o crescimento de sua visibilidade.

Veja-se, por exemplo, o caso da costureira Diva Benatti. Ela não conseguia se imaginar interpretando o papel de chefe de casa até o dia em que, em 1991, seu companheiro morreu, depois de 22 anos de convivência, ficando sob sua responsabilidade a educação de quatro filhos, de 17, 15, 13 e 5 anos. Isso aconteceu num tempo em que a liberação feminina ainda não havia sido catapultada aos níveis de hoje e as pesquisas mostravam uma presença ainda incipiente da mulher como dirigente do lar. “Não quero para ninguém a vida que tive de enfrentar. Se não fossem os amigos, teria sucumbido”, ela diz. Especializada em alta costura, coseu aqui, remendou ali e até virou locutora de rádio no interior de São Paulo, antes de ter a sorte de dispor, a título de empréstimo, de um espaço cedido por conhecidos a fim de montar sua oficina. Diva conta que trabalhava até de madrugada para garantir o sustento da casa. Voltou a namorar e, em 2003, concretizou um segundo casamento, mas enviuvou em outubro último. A diferença é que, agora, depois de ter conseguido formar os filhos e “dado a volta por cima”, é dona de um pequeno ateliê nos fundos de casa. “Para quem achou que ia naufragar, até que me saí bem”, conclui.

Vínculos débeis

Definitivamente, o mundo não é mais o mesmo. “O casamento até que ‘a morte os separe’ vem perdendo força, e as mulheres esposadas já não se mostram dispostas a levar uma vida insatisfatória ao lado do parceiro”, observa a professora Maria Coleta, da Unicamp. “As estatísticas do Registro Civil revelam que a maioria dos processos de separação judicial e de divórcio acontece por iniciativa da mulher, e o fato de boa parcela delas terem a própria renda derivada do trabalho ou de outras fontes certamente contribui para a tendência de debilidade do vínculo conjugal”, ressalta. Maria Juracy Filgueiras Toneli, do grupo de pesquisa Margens: Modos de Vida, Família e Relações de Gênero, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, vai na mesma direção. Ela argumenta que “as mulheres vão, aos poucos, ganhando confiança em si mesmas e tomando consciência de que podem prescindir dos homens”.

Infelizmente, o avanço da mulher no mercado de trabalho não rendeu até agora a buscada equiparação salarial com o homem. “Mesmo escolarizadas, as brasileiras continuam ganhando menos, o que faz com que a renda masculina ainda desempenhe um papel importante no orçamento familiar”, afirma a socióloga Julieta Romeiro. É o caso de Renata Descotti, mãe de uma menina de 9 anos e de um menino de 7, que trabalha fora e recebe pensão do ex-marido para poder arcar com as obrigações. Por outro lado, a chegada ao mercado de trabalho permitiu à mulher maior autonomia.

Em 2008, de acordo com o IBGE, de cada cem mulheres no Brasil, 52 estavam ocupadas ou procurando trabalho. A pesquisa levantou que 42,5% das brasileiras com idade entre 15 e 19 anos se encontravam naquela situação, uma taxa superior à de países latino-americanos e europeus, e equiparada à dos Estados Unidos. Da mesma maneira, a taxa de atividade das mulheres idosas brasileiras é bem elevada quando confrontada aos índices dos países da Europa. Brasil, México e Argentina se destacam no cenário internacional. Explica-se: nas nações europeias, os sistemas de proteção social são mais eficientes, garantindo maior bem-estar à população idosa. Outra informação reveladora destaca que entre 1998 e 2008 caminhou de 2,4% para 9,1% a proporção de mulheres que são referência no lar, apesar da presença do cônjuge em casa. Decididamente, pelo menos no tocante à chefia do lar, nada será como antes.

Revista Problemas Brasileiros

Um comentário:

Hermerson Alvarenga disse...

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