Texto: Sérgio Adeodato
Erosão mudou o fluxo das águas no Pantanal. Inundações expulsaram o gado, causando prejuízos para as fazendas.
No caminho entre a capital Campo Grande e a cidade de Corumbá, às margens do rio Paraguai, no Mato Grosso do Sul, a BR-262 margeia um dos refúgios de vida silvestre mais sensíveis do planeta: o Pantanal. Estamos no limite ao sul da planície e aqui deveria ser um espaço de contemplação. A estrada, no entanto, denuncia impactos que estragam a paisagem e alteram os ecossistemas. Daqui se avistam queimadas em fazendas centenárias onde cresce uma pastagem estranha ao ambiente. No município de Aquidauana, a 130 km da capital, carvoarias são o destino das árvores retiradas para dar lugar a plantações. Ao longo da rodovia, impressiona o número de animais atropelados: em menos de 50 quilômetros de percurso, avistamos um cachorro-do-mato, um tamanduá-mirim, um tamanduá-bandeira e um quati. Plantios de eucalipto sobre pastagens abandonadas se espalham perto de nascentes.
Ao transpor a ponte sobre o rio Miranda, 350 quilômetros antes de Corumbá, nota-se a erosão à beira d’água. Bancos de areia barram o curso do rio e sujam a paisagem de marrom. “Antes eu pescava dourado com anzol lançado da ponte, mas hoje o peixe sumiu”, lamenta o motorista Paulo Mora.
O que está acontecendo com o Pantanal? A resposta é do pesquisador Walfrido Tomas, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) de Corumbá: “A vida na região depende do ir e vir das águas, mas os rios são alvo de graves impactos que mudam o cenário, provocam desequilíbrio e tornam o Pantanal irreconhecível”. Um recente mapeamento feito por cinco organizações ambientalistas (Conservação Internacional, WWF-Brasil, SOS Mata Atlântica, Avina e Ecoa) fornece subsídios para o governo federal agir. Segundo o estudo, o desmatamento é o principal vilão. Restam apenas 40% da vegetação original em toda a Bacia do Rio Paraguai, incluindo a planície inundável que constitui o bioma do Pantanal propriamente dito e o planalto de Cerrado em seu entorno.
A situação é mais grave no planalto, onde 58% das matas estão comprometidas. Entre 2002 e 2008, foi devastada uma área de 6,8 mil km2 para dar lugar à agricultura sem preocupação com critérios ambientais. Por enquanto, mas não se sabe até quando, 85% das terras mais baixas da planície estão conservadas.
Danos irreparáveis
Com o desmatamento no planalto, os solos desprotegidos são castigados pelas chuvas que carregam terra para o rio Taquari, mudando o cenário de campos pontilhados de lagoas, o mais famoso cartão-postal do Pantanal. O processo natural de sedimentação está sendo acelerado pela ação do homem. Com 801 km de extensão, o Taquari é o maior afluente do rio Paraguai. Nasce a 800 metros de altitude no Planalto Central, em Mato Grosso, compondo uma bacia hidrográfica de 65 mil km2, a maior parte no Pantanal. É um rio essencial ao equilíbrio da região, mas o assoreamento interrompeu a navegação, reduziu os peixes e causou prejuízos às propriedades rurais e à população.
O fluxo de cheias e vazantes foi alterado. O entupimento transformou uma porção da área em deserto durante a seca. Em outra parte, 5 mil km2 da planície ficam agora permanentemente alagados. Gado e fauna foram expulsos e o local é hoje cemitério de árvores afogadas, compondo uma paisagem lunar, conhecida como “paliteiros”. Os prejuízos se estendem para além do lugar: dois terços da água que circula no Pantanal nascem nas áreas agrícolas do Mato Grosso. Estudos da Embrapa detectaram nesses mananciais a existência de pesticidas, inclusive o DDT, banido há décadas pelos efeitos danosos ao meio ambiente.
A inundação deslocou colônias de pequenos agricultores para a periferia de cidades maiores, como Corumbá. O bairro Cobrasa, ao redor de um dique inacabado na beira do rio Paraguai, espelha essa realidade. “Sem alternativas econômicas, aumentou a violência e a prostituição”, afirma José Aníbal Camastri, chefe da Embrapa na cidade. O problema atinge os grandes fazendeiros, que viram suas terras submergirem. Quem não faliu arrendou áreas melhores para produzir ou investiu as economias para abrir novas pastagens longe dali. Pistas de pouso das propriedades abandonadas passaram a servir ao narcotráfico.
“Dá pena ver a vegetação morrendo”, diz o proprietário Pedro Lacerda. Sua fazenda, a Bela Vista, teve 60% das terras comprometidas pelas águas e o número de cabeças de gado foi reduzido à metade. “Tive de comprar outra área no Pantanal para deslocar os animais”, conta Lacerda, que é presidente do Sindicado Rural de Corumbá. Com vista para o rio Paraguai, a sede do sindicato estampa na fachada os dizeres: “Passa boi, passa boiada... a natureza fica”. Mas Lacerda teme que o lema não resista aos impactos à região. “É preciso uma ação urgente de controle, porque os rios estão agonizando”, adverte o fazendeiro, defendendo a realização de obras para estancar o assoreamento.
O Ministério da Integração Nacional reservou R$ 54 milhões para consertar os estragos no rio Taquari e recuperar o equilíbrio das cheias e vazantes. Estão previstas dragagens e construção de canais, entre outras intervenções. A obra, prevista para começar no fim de 2009, será executada pela Transrio – empresa que recuperou a calha do rio Tietê, em São Paulo.
O foco da ferida
A “doença” do Taquari tem o poder de se alastrar pelas águas de todo o Pantanal, como já ocorre em outros dois importantes rios – o Miranda e o São Lourenço. “Estamos diante do maior acidente ecológico do país na atualidade e a situação chegou a tal ponto que não dá para ficar de braços cruzados”, afirma o senador Delcídio Amaral (PT-MS), ferrenho defensor do projeto de dragagem. O projeto, no entanto, é polêmico. Para Alcides Faria, diretor da organização não-governamental Ecoa, em Campo Grande, “será dinheiro jogado no ralo”.
Faria argumenta que, antes de mais nada, é necessário estancar o foco da ferida, ou seja, os sedimentos que descem das plantações de soja, milho, cana-de-açúcar e algodão na beira do Pantanal. Medidas como curvas de nível nos cultivos, reflorestamento da beira dos riachos e recuperação de voçorocas e outras áreas degradadas começaram a ser empregadas. Mas o ritmo é lento: o material sólido continua entupindo a planície, também alvo de práticas destrutivas, como as queimadas.
“Em 2009, o fogo para renovar pastagens foi muito mais frequente”, afirma Faria. Ele diz que a criação extensiva de gado alimentado por pastagens naturais por séculos contribui para a conservação do Pantanal. É o modelo mais adequado de produção e, portanto, deveria ser valorizado com novas iniciativas, como a pecuária orgânica. A carne com selo ecológico é exportada e chega às redes de supermercados com preços compensadores para os fazendeiros. Em complemento, o ecoturismo é hoje uma importante fonte de renda. A ideia é criar alternativas capazes de competir com atividades predatórias que chegam à região com modelos diferentes da tradição pantaneira.
Um dos perigos é o desmatamento para abrir espaço para novas pastagens, que ocorre principalmente porque a cada geração as grandes fazendas são divididas entre herdeiros. “Em menor tamanho, as áreas acabam desmatadas para aumentar a produtividade”, explica o biólogo George Camargo, da Conservação Internacional. Na contramão dessa tendência, a entidade é proprietária da Fazenda Rio Negro, que preserva um refúgio de áreas virgens para pesquisas de campo sobre o Pantanal e sua função de suprir água, estabilizar o solo e conservar o clima.
Outras ameaças
A mineração é outro foco de problemas para quem defende a preservação do Pantanal. Nos arredores de Corumbá, a BR-262 cruza morrarias que guardam a segunda maior jazida de ferro do país, explorada há mais de uma década por um polo de mineração e siderurgia que agora planeja ampliar a atividade. Como a tubulação de gás natural que liga os poços da Bolívia a São Paulo atravessa o local, o governo estadual acenou com a possibilidade de incentivar ali a instalação de indústrias químicas. O debate sobre o impacto para a vida do Pantanal acirrou-se, levando empresas, organizações ambientalistas e Ministério Público a buscar soluções. O grupo encomendou um amplo estudo para avaliar os riscos da mineração e decidir o melhor caminho. “Todo cuidado é pouco, porque o sistema pantaneiro é complexo e frágil”, afirma o pesquisador Emílio La Rovere, coordenador do estudo realizado pela Coppe, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Um dos perigos é alimentar os fornos da siderurgia com o carvão obtido da mata nativa ou de florestas de eucalipto plantadas sem métodos de controle. Outra ameaça está no consumo exagerado de água, foco de conflitos na região. As mineradoras chegaram ao Maciço do Urucum com a promessa de gerar emprego, mas a atividade fez os riachos secarem. “Apesar de o Pantanal ter tanta água, hoje dependemos de carros-pipa”, reclama Luzinete Correia, presidente da Associação de Moradores de Antônio Maria Coelho. O povoado se localiza ao pé da morraria, vizinho à linha de trem que transporta o minério de ferro para o resto do país. Três balneários que garantem renda para a localidade foram prejudicados.
“A situação só não é pior porque cuidamos do que restou”, afirma Rômulo Mesquita, mostrando o riacho Pirapitanga que corre no quintal de sua casa. O morador não aceitou o acordo com as empresas para deixar a área, cercada por montanhas que são refúgio da biodiversidade durante as cheias na planície pantaneira. Árvores de ipê-roxo e amarelo colorem a paisagem verde, cenário de pesquisas com espécies que dão pistas sobre alterações no ambiente. Jacarés-paguás, por exemplo, receberam implante de chips e são monitorados por técnicos da Embrapa para detectar mudanças de comportamento. A ciência faz a sua parte, os ambientalistas mapeiam impactos, mas “falta uma política do governo federal específica para o Pantanal”, afirma Michael Becker, do WWF-Brasil, uma das entidades que fez o mapeamento dos problemas dessa que é uma das regiões mais belas do Brasil.
Revista Horizonte Geográfico
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