segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O Brasil tem mais assassinatos do que todos estes países somados




(Speech500/Divulgação)

Brasil = EUA, Canadá, Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, China, Mongólia, Malásia, Indonésia, Austrália, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Coreia do Norte, Japão, Portugal, Espanha, Reino Unido, Irlanda, França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Itália, Suíça, Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Áustria, Hungria, Belarus, Ucrânia, Romênia, Moldávia, Bulgária, Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegóvina, Sérvia, Montenegro, Albânia, Grécia e Macedônia

O Brasil teve 59 mil assassinatos em 2015. Dez anos antes, eram “apenas” 48 mil. São mais homicídios do que os 52 países listados no mapa. Mas 52 é um número grande demais, e essa lista inclui muitos países pequenos e ricos, você pode argumentar, e com razão. Certamente incluir a achocolatada Suíça (57 assassinatos em 2015) ou o endinheirado Grão-Ducado de Luxemburgo (QUATRO em 2014) deturparia a quantidade de nações comparadas. Além disso, somos um gigante de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e 207 milhões de habitantes. Não seria injusto comparar com esses países pequetiticos? Até mesmo a França, que tem um dos maiores territórios da Europa, é do tamanho da Bahia, apenas o 5º maior estado brasileiro.

Então tome o continente inteiro de uma vez. A Europa tem 10,1 milhões de quilômetros quadrados, área um tanto maior, mas ainda assim comparável à do Brasil. Mas são 743 milhões de pessoas – muito mais do que aqui. Ainda assim, o continente inteiro teve 22 mil assassinatos no último ano contabilizado. O Brasil (com uma população mais de três vezes menor), teve quase o triplo.

Ok, mas é Europa. O continente que parece ter aprendido com suas intermináveis guerras desde que Adolf Hitler foi sorrir no inferno. O continente que se tornou, salvo guerras regionais aqui e atentados terroristas acolá, um lugar pacífico. Esqueça um pouco a xenofobia e os nacionalismos recentes. Pense no continente dos carrinhos pequenos, das bicicletas, vielas medievais, waffles, baguetes, chocolates, vinhos, cervejas, queijos, praias (artificiais ou não) de nudistas, música eletrônica controversa, direitos humanos mais respeitados que a média, Bjork, príncipe Harry, Lego. Lego, caramba! Comparar com o Brasil? Fala sério.


Então pegue a Indonésia. Maior país de maioria muçulmana do mundo, 1,9 milhão de quilômetros quadrados, 253 milhões de almas. Um arquipélago grande, populoso e pobre: ainda assim, foram 1,2 mil assassinatos em 2014. Se for comparar conosco, não dá para o gasto: basta o Espírito Santo de 2016 para chegar ao mesmo número.

E os Estados Unidos, cheio de crimes, atiradores compulsivos, nacionalistas raivosos e repressão policial? Foram 15,7 mil homicídios em 2015, em um território de 322 milhões de humanos. Isso dá 4,8 por 100 mil habitantes. No Brasil, 28,9 – é como se alguém de Lagarto (SE), Assis (SP) ou Iguatu (CE) convivesse com o fato de que 30 moradores da cidade foram assassinados no último ano.

Mas calma, você ainda pode argumentar que os dados de muitos países são menos confiáveis que os do Brasil. Esse mapa mesmo inclui a Líbia, país dilacerado pela guerra desde 2011. As 156 vítimas no país em 2015 foram consideradas alheias ao conflito, mas, ainda assim, pode-se torcer o nariz para o dado. Mas é também justamente pela dificuldade em quantificar esses crimes em um cenário belicoso que as guerras não entram na conta. Afinal, guerra é outra coisa. O último dado disponível da Síria é de 2010, antes da guerra: 463 assassinatos, taxa de 2,2 por 100 mil. Naquele ano, o Brasil teve 53 mil, com taxa de 27,8.

Em tempo, a Guerra Civil da Síria já matou, na média das estimativas, 350 mil pessoas, o que pode colocá-la na lista das 100 matanças mais mortíferas da história.

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), que agrega os dados de todos os países, define o seguinte: “Dentro da grande gama de tipos de morte violenta, o elemento primordial do homicídio intencional é sua completa ligação com o perpetrador direto, o que consequentemente exclui mortes causadas por guerras e conflitos, mortes autoinfligidas (suicídio), mortes devido a intervenções legais ou motivos justos (como autodefesa, por exemplo) e mortes quando houve negligência do perpetrador mas este não tinha a intenção de tirar uma vida (homicídio não intencional).”
Revista Superinteressante

Rachadura gigante no Quênia mostra que África se dividirá em duas


Imagem chama atenção para o processo de separação de boa parte da porção leste da África

RACHADURA GIGANTE QUE SURGIU NO VALE DA FENDA, NO QUÊNIA (FOTO: REPRODUÇÃO / YOUTUBE)

Uma rachadura gigante, que se estende por vários quilômetros, apareceu de repente no sudeste do Quênia. A fenda, que não para de crescer, dividiu ao meio a estrada Nairobi-Narok e relembrou um fato geralmente esquecido: a África está se dividindo.

Como há 138 milhões de anos, quando o Brasil começou a se afastar do continente africano, a região conhecida como Chifre da África deve, daqui algumas dezenas de milhões de anos, formar um novo continente.

Apesar de haver divergências sobre o que está causando a rachadura, o mais provável é que as fortes chuvas que caíram sobre o país no mês de março tenham provocado uma atividade geológica que faz com que as camadas mais macias do subsolo fiquem sob pressão e colapsem. 

A rachadura apareceu próxima a uma cidade chamada Rift Valley, ou Vale da Fenda, em português, que percorre 3 mil quilômetros, desde o Golfo de Áden, na Somália, e segue sentido sul até o Zimbábue, passando ainda por Etiópia e Tanzânia, além do próprio Quênia. É esse o local de encontro de duas placas tectônicas: a Africana e a Somali.

TOPOGRAFIA DO VALE DA FENDA, NO QUÊNIA (FOTO: JAMES WOOD AND ALEX GUTH, MIT. IMAGE BY NASA)

A litosfera, formada pela crosta e a parte superior do manto terrestre, é dividida em várias placas tectônicas. Elas não são estáticas: estão em constante movimentação, flutuando sobre a viscosa astenosfera. Em situações extremas, essa movimentação pode causar uma ruptura da litosfera, ou um rifte, como é chamado na geologia.

É o que está acontecendo no Vale da Fenda. A situação extrema é causada por uma superpluma, uma espécie de jorro de lava que emerge desde as profundezas do planeta, causando um enfraquecimento da litosfera como resultado do aumento de temperatura e pressão. Além de causar o rifte, o fenômeno também é usado para explicar a topografia anormalmente alta no planalto africano.
ESQUEMA MOSTRA COMO SURGE A SUPERPLUMA (FOTO: CREATIVE COMMONS / DBOYD13)

O Vale da Fenda, porém, não foi formado todo de uma vez. Foram uma séries de rachaduras que tiveram início na região de Afar, no norte da Etiópia, cerca de 30 anos atrás e se propagou para o sul, em direção ao Zimbábue, a uma velocidade de 2,5 centímetros a 5 centímetros por ano.

Em Afar, o Vale da Fenda é todo coberto de pedras vulcânicas, o que indica que a litosfera é tão fina que pode estar a ponto de romper. Quando isso acontecer, um novo oceano começará a se formar pela solidificação do magma no espaço criado pelas placas quebradas.

Eventualmente, em um período de dezenas de milhões de anos, o oceano vai se espalhar por todo o Vale. Por fim, a África ficará menor, e uma ilha gigante surgirá no Oceano Índico. Embora o processo seja acompanhado de terremotos, na maior parte do tempo ele se dará de forma silenciosa, sem que ninguém perceba.

O FUTURO CONTINENTE. (FOTO: REPRODUÇÃO / TWITTER)
Revista   GALILEU

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Poluição do ar compromete desenvolvimento infantil, conclui análise

A equipe revisou 205 estudos publicados entre 1º de janeiro de 2000 e 30 de abril de 2018, que tinham informações sobre a relação entre a concentração de exposições a poluentes do ar e os efeitos na saúde

(foto: STR) 

Um estudo realizado por cientistas do Centro de Saúde Ambiental Infantil da Colômbia reuniu um número significativo de evidências dos efeitos prejudiciais da poluição do ar na saúde de crianças. O artigo, publicado recentemente na revista especializada Environmental Research, é a primeira revisão abrangente sobre o tema e revela os impactos da combustão dos combustíveis fósseis em meninos e meninas, incluindo o comprometimento do desenvolvimento cognitivo e a maior vulnerabilidade a cânceres.

“Há uma extensa evidência sobre os muitos danos da poluição do ar na saúde das crianças. Nosso trabalho apresenta essas descobertas de uma maneira que é conveniente ao apoio de políticas de ar limpo e de mudanças climáticas que protejam a saúde delas”, frisa Frederica Perera, diretora do centro e professora de ciências da saúde ambiental.

A equipe revisou 205 estudos publicados entre 1º de janeiro de 2000 e 30 de abril de 2018, que tinham informações sobre a relação entre a concentração de exposições a poluentes do ar e os efeitos na saúde. Os estudos referem-se a subprodutos da queima de combustíveis, como material particulado (PM2.5), hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (PAH) e dióxido de nitrogênio (NO2) — todos tóxicos para o corpo humano.

Uma tabela desenvolvida pelos autores fornece informações sobre o risco à saúde para cada tipo de exposição, com base nas pesquisas que abrangeram seis continentes. Eles acreditam que o modelo pode influenciar na decisão de medidas voltadas para o púbico específico. “As políticas para reduzir as emissões de combustíveis fósseis têm dois propósitos: diminuir a poluição do ar e mitigar as mudanças climáticas, com benefícios econômicos e de saúde combinados. Mas como apenas alguns resultados adversos em crianças são considerados, os formuladores de políticas públicas ainda não enxergam a extensão dos benefícios potenciais das políticas de ar limpo e de mudança climática particularmente para a infância”, explica Frederica Perera.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de 40% da carga de doenças relacionadas ao meio ambiente e cerca de 90% da carga da mudança climática são suportadas por crianças que têm no máximo 5 anos de idade, embora essa faixa etária constitua apenas 10% da população mundial.

Gravidez interrompida

Pesquisadores da Universidade de Utah Health descobriram que as mulheres têm o risco de sofrer um aborto espontâneo aumentado em 16% após a exposição de curto prazo à elevada poluição do ar. O estudo considerou dados de mais de 1.300 voluntárias, com em média 28 anos e atendidas em hospitais do estado americano devido à interrupção não desejada da gravidez até a vigésima semana. Aquelas que haviam sido expostas a níveis elevados de dióxido de nitrogênio durante uma janela de sete dias apresentaram risco aumentado de perder o filho. Detalhes do trabalho foram divulgados, neste mês, na revista Fertility and Sterility.

Estudo da Embrapa desvenda história do cultivo do milho pela humanidade


Os investigadores descobriram que agricultores do sudoeste da Amazônia também trabalharam no melhoramento da colheita há mais 6.500 anos.

Vilhena Soares

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(foto: Gustavo Moreno/CB/D.A Press) 

O milho tem uma história muito mais complexa do que o imaginado. Segundo um consórcio de pesquisadores americanos e brasileiros, a domesticação do grão não ocorreu apenas no México. A partir de dados genéticos e evidências arqueológicas, os investigadores descobriram que agricultores do sudoeste da Amazônia também trabalharam no melhoramento da colheita há mais 6.500 anos, dando os primeiros passos para uma das maiores culturas da atualidade. Detalhes do trabalho foram divulgados recentemente na revista Science. 

O ancestral selvagem do milho, chamado teosino, tinha espigas menores, poucos grãos e era protegido por uma espécie de capa extremamente dura, difícil de ser quebrada. Os primeiros agricultores foram selecionando características desejáveis e, com o tempo, começaram a surgir espigas maiores, com grãos macios e abundantes. Até então, geneticistas e arqueólogos acreditavam que essas transformações ocorreram apenas nas terras baixas tropicais — hoje, o sul do México — há cerca de 9 mil anos. “Podíamos dizer que parecia haver um único evento de domesticação no México e que, depois, indivíduos espalharam o milho domesticado”, resume, em comunicado, Logan Kistler, pesquisador do Museu Nacional de História Natural Smithsonian, nos Estados Unidos.

O trabalho atual, porém, coloca em xeque essa teoria. Os cientistas descobriram que, há cerca de 5 mil anos, os grãos não estavam totalmente domesticados em terras mexicanas. “Eles seguiram semidomesticados para Amazônia”, conta ao Correio Fabio Freitas, etnobotânico, pesquisador da Embrapa em Brasília e coautor do estudo. Os grãos chegaram às mãos de indivíduos que já cultivavam arroz e mandioca, entre outras culturas. Provavelmente, foi adotado como parte da agricultura local e continuou a evoluir sob influência humana até que, milhares de anos depois, se tornou uma cultura totalmente domesticada.

A partir daí, o milho mudou-se para o leste, como parte de uma expansão e intensificação da agricultura. Segundo Kistler, análises arqueológicas mostram que, por volta de 4.000 anos atrás, o grão havia se espalhado amplamente pelas terras baixas da América do Sul. Evidências genéticas e arqueológicas também se alinham para sugerir que o cultivo se expandiu para o leste uma segunda vez, desde o sopé dos Andes até o Atlântico, cerca de 1.000 anos atrás.

Ajuda indígena
A equipe chegou às conclusões fazendo comparação genética de mais de 100 variedades do milho moderno que crescem nas Américas, incluindo 40 variedades recém-sequenciadas. Fabio Freitas ressalta que muitas dessas variedades foram coletadas em colaboração com agricultores indígenas nos últimos 60 anos. “É importante destacar o papel desses grupos indígenas. Sem eles não teríamos esses dados conservados”, diz o pesquisador da Embrapa.

Os genomas de 11 plantas antigas, incluindo nove amostras arqueológicas recentemente sequenciadas, também fizeram parte da análise. A equipe mapeou as relações genéticas entre as plantas e descobriu várias linhagens distintas, cada uma com o próprio grau de semelhança com seu ancestral comum, o teosino.

Os resultados reforçam que os estágios finais da domesticação do milho aconteceram em mais de um lugar. “Esse trabalho muda fundamentalmente a nossa compreensão das origens desse alimento. Mostra que o milho não tem uma história de origem simples”, ressalta Robin Allaby, pesquisadora da Escola de Ciências da Vida da Universidade de Warwick, no Reino Unido, e coautora do trabalho.

Futuro
Para os cientistas, além de ajudar a recontar a história do milho, o estudo poderá ser usado no melhoramento dos cultivos atuais. “É a história evolutiva a longo prazo das plantas domesticadas que as torna aptas para o ambiente humano hoje. A história nos fornece ferramentas para avaliar o futuro do milho na medida em que continuamos a remodelar drasticamente o nosso ambiente global e a aumentar nossas demandas agrícolas”, explica Kistler.

Os pesquisadores pretendem dar continuidade ao trabalho, já que uma série de informações colhidas ainda não foi completamente estudada. “Temos muitos dados a analisar nessa área genética. Eles, futuramente, também poderão ajudar a entender detalhes evolutivos de outras espécies semelhantes, como o amendoim”, aposta Freitas.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O que é o 'projeto Jedi' do Pentágono e por que ele causa polêmica nos EUA


Ruth Clegg & Manveen Rana
BBC News

Direito de imagemREUTERSImage caption
O Pentágono é a sede do Departamento de Defesa dos EUA

Jedi não é apenas o personagem fictício da série americana Guerra nas Estrelas.

Também é o nome do mais novo e ambicioso projeto do Pentágono, o órgão de defesa dos Estados Unidos.

Orçada em US$ 10 bilhões (R$ 38 bilhões), o Empreendimento Conjunto de Infraestrutura de Defesa (Jedi, na sigla em inglês) consiste em uma enorme nuvem cibernética que poderia armazenar códigos nucleares.

Trata-se de uma tentativa do governo americano de competir com a Rússia e com a China na área da tecnologia militar.

A empreitada, no entanto, vem dividindo opiniões por vários motivos.

A mais recente polêmica aconteceu em meados de dezembro, quando a reportagem da BBC revelou que uma empresa de tecnologia que disputa o contrato do Pentágono para tocar o projeto Jedi tem relações estreitas com uma companhia ligada a um oligarca russo alvo de sanções do governo americano.

Viktor Vekselberg, que é próximo do Kremlin, tem ligações com o C5, um conglomerado de empresas de investimento focado na área cibernética que trabalhou em estreita colaboração com sua principal concorrente, a Amazon Web Services (AWS).

Tanto o C5 quanto a AWS dizem que o C5 não está envolvido na disputa pelo projeto Jedi.

Todos os lances são confidenciais. O Pentágono se recusou a comentar, afirmando que as informações sobre as empresas envolvidas não poderiam ser divulgadas.

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AWS é considerada favorita para vencer licitação do projeto Jedi
Em que consiste o projeto Jedi?

Em uma tentativa de competir com a Rússia e a China, o Empreendimento Conjunto de Infraestrutura de Defesa (ou Joint Enterprise Defense Infrastructure, Jedi) é uma das empreitadas mais ambiciosas já lançadas pelo Pentágono.

Em vez de dados militares serem armazenados em servidores menores em diferentes departamentos dentro do Pentágono, as informações serão mantidas em uma nuvem.

A nuvem é um termo usado para descrever vários servidores remotos, conectados à internet, que podem armazenar grandes conjuntos de informações e podem ser acessados de qualquer lugar do mundo.

Os principais segredos militares seriam, assim, transferidos para a nuvem Jedi, incluindo detalhes confidenciais sobre sistemas de armas, pessoal militar, inteligência e operações.

Soldados na linha de frente passariam, por exemplo, a ter acesso imediato a todas as informações mais recentes, o que aumentaria a eficiência no campo de batalha.

O major-general dos EUA, David Krumm, que ajudou a elaborar o contrato, explicou, durante o lançamento do projeto, que ter essas informações nas mãos dos militares ajudaria os EUA a vencer guerras.

"Um pelotão do exército precisa saber que uma unidade aliada está ao redor do quarteirão e que não deve abrir fogo", diz.

"Ou que um Dispositivo Explosivo Improvisado (IED, na sigla em inglês) foi encontrado antes invadir um local", acrescenta.

Existe a preocupação de que, se o sistema de TI do Pentágono não for atualizado com urgência, os EUA "perderão a guerra do futuro".

Grandes empresas globais de tecnologia, como Microsoft, Oracle e IBM, apresentaram propostas. A decisão final deve sair abril de 2019.

As principais vozes do setor - incluindo as outras empresas que disputam o contrato - afirmam que a Amazon Web Services (AWS) segue como clara favorita.

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Existe preocupação de que, se sistema de TI do Pentágono não for atualizado com urgência, os EUA 'perderão a guerra do futuro'
Por que o projeto é tão controverso?

"Não armazenaria meus dados mais pessoais, nem meus colegas, em uma nuvem comercial, ponto final", diz John Weiler, diretor do Conselho Consultivo de Aquisição de Tecnologia da Informação (IT-AAC na sigla em inglês), com sede em Washington.

Ele diz acreditar que há enormes riscos em armazenar essas informações confidenciais em uma nuvem pública, comercialmente controlada, administrada por apenas uma empresa.

"Temos nossos códigos nucleares, a localização de nossas tropas. Se a segurança da nuvem for violada, nossos inimigos poderão usar nossas informações contra nós. Eles podem estar nos esperando."

O Pentágono teve que explicar ao Congresso porque estava oferecendo apenas o contrato para uma única empresa, diante de pedidos para que uma nuvem desse porte fosse gerenciada por vários provedores de serviços para diluir o risco de violações de segurança.

Segundo o Departamento de Defesa americano, ter apenas um provedor de nuvem serviria melhor às tropas no solo e aceleraria o acesso a informações vitais.

A AWS também defendeu a posição do governo dos EUA, afirmando: "Uma única nuvem seria mais segura do que um ambiente com várias nuvens".

Também houve críticas de que a licitação foi pensada apenas com uma empresa em mente, a AWS, algo que o Pentágono nega, dizendo que o processo foi transparente e imparcial.

Além disso, foram levantadas questões sobre as ligações da AWS com o grupo C5.

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Viktor Vekselberg (à esq.) já foi visto com o presidente russo, Vladimitir Putin, em diversas ocasiões
Quem são a Amazon Web Services e a C5 Capital?

Braço da Amazon, a Amazon Web Services tornou-se a maior provedora de serviços em nuvem do mundo, controlando um terço do mercado de computação em nuvem.

O grupo C5 é relativamente novo, mas em poucos anos levantou 100 milhões de libras (US$ 125 milhões) para investir em segurança cibernética.

Apesar de AWS e C5 trabalharem juntos em vários projetos de computação em nuvem em todo o mundo, ambas as empresas negaram ter um relacionamento próximo.

Uma das muitas empresas cibernéticas do grupo C5, a C5 Accelerate afirma em seu site que está "desenvolvendo um Cloud Accelerator Cluster na Europa, Oriente Médio, África e Estados Unidos, junto com a Amazon Web Services".

O C5 afirma que nunca fez um lance para prestação de serviço de qualquer tipo em consórcio com a AWS em nenhum país e que trabalhou com outros provedores de serviços de nuvem, como a IBM e a Microsoft.

No entanto, a vice-presidente da AWS, Teresa Carlson, e o homem por trás do grupo C5, Andre Pienaar, percorreram o mundo promovendo o relacionamento de suas empresas.

As duas companhias também uniram forças em um projeto no Oriente Médio. A AWS ganhou um contrato para desenvolver plataformas de computação em nuvem para o Reino do Bahrein, e o C5 ficou responsável de migrar sites do governo para a nuvem.

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Em uma tentativa de competir com a Rússia e a China, a Joint Enterprise Defense Infrastructure (Jedi) é uma das empreitadas mais ambiciosas já lançadas pelo Pentágono
Quem é Andre Pienaar e como ele está ligado à Rússia?

Pienaar, que está por trás do grupo C5, é um empresário sul-africano bem relacionado.

O conselho de uma de suas principais empresas, a C5 Capital, tem acesso fácil a algumas das figuras mais influentes nos círculos militares e da área de segurança em ambos os lados do Atlântico.

Ele tem ainda ligações com Viktor Vekselberg, que está na lista de sanções dos EUA por seus laços próximos com Vladimir Putin.

Questionado pela BBC sobre se conhecia Pienaar, Vekselberg disse que, por dois anos e meio, o dono da C5 prestava serviços a uma de suas empresas na África do Sul. A parceria chegou ao fim no início deste ano.

Ou seja, ele teria trabalhado para Vekselberg enquanto comandava a C5 - além de, paralelamente, realizar projetos com a Amazon Web Services.

Piennar, por sua vez, negou ter trabalhado para a empresa do magnata russo e acrescentou que só prestou consultoria em questões sobre mineração.

Logo depois, o porta-voz de Vekselberg decidiu alterar a declaração que havia sido dada por seu chefe para coincidir com a de Pienaar - o que sugere que os dois ainda estão em contato.

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Vladimir Kuznetsov comandava Renova Group, empresa ligada a Vekselberg
Como o grupo C5 estaria ligado à Rússia?

A partir de uma análise das estruturas acionárias das empresas envolvidas com a C5, a BBC encontrou um aporte de dinheiro russo.

Uma das subsidiárias do conglomerado, a C5 Razor Bidco, recebeu um investimento de 16,1 milhões de libras em 2015. O russo Vladmir Kuznetsov, considerado homem de confiança de Vekselberg, tornou-se diretor e acionista majoritário da empresa.

A AWS ressaltou que não trabalha com a C5 Razor Bidco. A companhia, no entanto, faz parte do grupo C5 e é propriedade de Andre Pienaar.

Ele trabalhou para o oligarca russo de 1999 até o começo deste ano, quando as sanções contra Vekselberg levaram à renúncia em massa de todo o conselho de seu grupo de negócios, o Renova Group.

Kuznetsov disse à BBC que renunciou a cargos que possuía na maioria das empresas de Vekselberg em 2014. Permaneceu, contudo, no conselho da Renova Management até abril de 2018.

Também negou ser "braço direito" de Vekselberg.

A BBC também teve acesso a um documento, publicado por uma organização chamada Family Office Circle Foundation em 2016, que afirma que Kuznetsov admitiu ligação estreita com o magnata.

Ele teria dito em um dos eventos da entidade que trabalhava em "empresas familiares de Viktor Vekselberg" e que era "diretor do Renova Group".

Kuznetsov disse, por sua vez, que seu investimento na C5 Razor Bidco não foi influenciado nem por Vekselberg nem pelo Kremlin, e que o dinheiro veio de sua própria conta bancária.

A C5 disse que o oligarca não investiu direta ou indiretamente em nenhuma das empresas do grupo.

Vekselberg alegou que Kuznetsov nunca dirigiu "suas empresas familiares" e que não fez nenhum investimento por intermédio de Kuznetsov ou por qualquer outro meio.
Quem é Viktor Vekselberg?

Até abril deste ano, Vekselberg era conhecido como o magnata russo que gastava centenas de milhares de dólares em ovos Fabergé, peças produzidas por Peter Carl Fabergé e seus assistentes no período de 1885 a 1917 para os czares da Rússia.

Mas, a partir dessa data, ele passou a figurar na lista dos russos alvos de sanção por parte do governo dos Estados Unido por seus laços estreitos com o Kremlin.

Vekselberg disse que vai apelar contra as sanções, que impactaram negativamente seus negócios.

O ex-funcionário do Pentágono Michael Carpenter, que era subsecretário-adjunto de Defesa da Rússia, disse à BBC que acredita que Vekselberg "representa um risco para os EUA".

"Qualquer oligarca na Rússia, quando solicitado pelo Kremlin, seguirá suas ordens. Essa é a condição para que eles mantenham seu patrimônio."

Pouco depois de seu nome aparecer na lista de sanções do Tesouro dos EUA, o bilionário foi detido quando tentava embarcar em um avião em Nova York.

Agentes federais que trabalhavam no inquérito do procurador especial do Departamento de Justiça americano Robert Mueller sobre a suposta interferência russa na eleição de 2016 nos Estados Unidos questionaram Vekselberg e apreenderam seus aparelhos eletrônicos.

Ele nega qualquer delito ou envolvimento na campanha do presidente Donald Trump.

No início deste ano, entretanto, a imprensa americana noticiou que a Columbus Nova, uma empresa afiliada ao império de Vekselberg, pagou 500 mil libras a Michael Cohen, advogado de Trump na época.

O dinheiro foi para a empresa de Cohen, a Essential Consultants LLC, empresa que ele usou como parte de um "acordo secreto" com Stormy Daniels para evitar que ela divulgasse seu suposto caso com Trump.

Andrey Shtorkh, porta-voz de Vekselberg, disse à rede de TV americana NBC News que nem Vekselberg nem Renova "tiveram alguma relação contratual com Cohen ou com a Essential Consultants".

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Centro de Inovação Skolkovo era aposta da Rússia para rivalizar com Vale do Silício dos EUA
O que é o Skolkovo?

O Centro de Inovação Skolkovo foi estabelecido pelo primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev em 2009, ainda como presidente da Rússia. Era a resposta do país ao Vale do Silício dos EUA.

Viktor Vekselberg foi contratado para chefiá-lo e permaneceu em seu comando desde então.

O Skolkovo foi descrito como uma incubadora das mais recentes tecnologias que criariam milhares de empregos e ajudariam a reduzir a dependência da Rússia em petróleo e gás, permitindo ao país competir com o Ocidente.

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Skolkovo foi descrito como incubadora das mais recentes tecnologias que criariam milhares de empregos e ajudariam a reduzir dependência da Rússia em petróleo e gás

No entanto, alguns anos após sua criação, os alertas de potencial espionagem vieram tanto do Exército dos EUA quanto do FBI, acusações que Skolkovo e Viktor Vekselberg negam veementemente.

Tanto o FBI quanto os militares dos EUA alertaram que o centro de inovação, projetado para rivalizar com o Vale do Silício, na Califórnia, poderia ser uma fachada para a "espionagem industrial".

Vekselberg disse que foi com "grande pesar" que Skolkovo foi alvo de críticas e que o centro trabalhou de perto com os EUA e muitas empresas globais de tecnologia como parte de um "ecossistema" onde "inovação e empreendedorismo podem prosperar".
BBC Brasil

sábado, 22 de dezembro de 2018

Por que os Estados Unidos estão perdendo superioridade militar frente à Rússia e à China


Jonathan Marcus
Correspondente para assuntos de Segurança e Defesa da BBC

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Segundo relatório, margem de superioridade das Forças Armadas americanas está se deteriorando em várias áreas

Um grupo de especialistas independentes publicou uma análise sóbria e implacável da estratégia de defesa nacional do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

"O papel global que os Estados Unidos têm desempenhado por muitas gerações é baseado em um poder militar inigualável (...) Hoje, no entanto, nossa margem de superioridade tem sido minada em áreas importantes", diz o relatório.

"Há desafios urgentes que devem ser enfrentados caso os Estados Unidos queiram evitar danos permanentes à sua segurança nacional", afirma o documento.

O duro diagnóstico é resultado de uma solicitação do Congresso à sua Comissão de Estratégia Nacional de Defesa, um painel concebido para conduzir estudos independentes sobre a segurança do país - desta vez, foi pedida uma avaliação da estratégia de defesa do governo Trump.

O relatório foi presidido por Eric Edelman, ex-funcionário do Pentágono durante o mandato de George W. Bush, e Gary Roughead, ex-chefe de operações navais. Ambos são conhecedores do orçamento da defesa e do que acontece nos corredores do Pentágono.

"A segurança e o bem-estar dos Estados Unidos enfrentam seus maiores riscos em décadas", afirma o documento. "A superioridade militar dos Estados Unidos diminuiu para um nível perigoso".
A ameaça da China e da Rússia

A chegada de Trump à Casa Branca coincide com uma mudança nas prioridades militares do país: longe de operações contra insurgências e da chamada "guerra ao terror", indo em direção ao preparo para um potencial conflito contra seus principais concorrentes, como a China e a Rússia.

Mesmo aqueles concorrentes não tão diretos, como o Irã ou a Coreia do Norte, apresentam novos e perigosos desafios.

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O porta-aviões americano USS Carl Vinson; os avanços da China e Rússia impõem novos desafios para os EUA

As implicações são enormes para os militares dos EUA.

Algumas características de lugares como Iraque ou Afeganistão, às quais os EUA já estão mais adaptados, não se repetem em um eventual conflito com a Rússia ou a China. O país tem operado, por exemplo, em ambientes sem qualquer ameaça aérea ou sem grandes desafios para suas comunicações, como o uso de GPS.

Enquanto isso, os dois potenciais adversários vêm estudando as Forças Armadas americanas e continuam a modernizar as suas, reforçando suas vantagens tradicionais enquanto exploram novos caminhos para contrabalançar as vantagens dos EUA.

A intervenção da Rússia na Ucrânia demonstrou o extraordinário poder destrutivo da artilharia russa - tributário em parte de sua sofisticada capacidade de combate por meios eletrônicos, que possibilitou encontrar e destruir armas ucranianas e ao mesmo tempo esconder a localização dos equipamentos russos.

Em muitas dessas áreas, os Estados Unidos têm muito a fazer para se colocar no mesmo nível.

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Relatório recomenda esfoço conjunto de órgãos nacionais em questões militares

Isso exige ajustar e reequipar certas áreas, mas muito mais do que isso. Requer um esforço massivo para impulsionar a inovação em inteligência artificial, acesso à banda larga etc.

O relatório soa como um alerta. A partir do documento, se fosse preciso dar uma nota aos planos do Pentágono, diria que ela seria uma avaliação de aprovação - mas não muito mais que isso. O diagnóstico resumido é que as forças militares americanas têm muitas boas intenções e alguma prospecção dos grandes desafios, mas abordagens duvidosas para enfrentá-los e, basicamente, recursos insuficientes para isso.

O documento traz mais de 30 recomendações detalhadas. Aqui apresento alguns dos mais importantes, resumidos e selecionados:
Concentrar os gastos das ações dos EUA e de aliados contra a China e a Rússia;
Reduzir o risco da perigosa dependência de itens importados, como por exemplo aqueles provenientes da China;
Manter a presença militar dos EUA no Oriente Médio, inclusive depois da planejada derrota do Estado Islâmico;
Ampliar as forças para que se possa lutar duas guerras, já que atualmente só são capazes de enfrentar uma;
Aumentar o número de tanques, mísseis de longo alcance e artilharia;
Criar mais unidades de engenharia e de defesa aérea;
Expandir a frota submarina da Marinha e ampliar a capacidade de transporte marítimo;
Aumentar os provimentos à força aérea no que for necessário: em resumo, mais de tudo;
Manter, e não diminuir, o pessoal da Marinha.

O relatório freia a grandiloquência com a qual o presidente Trump apresentou sua estratégia para a defesa. Mas o relatório não tem nada de revolucionário, pois compartilha a visão estratégica que define o pensamento do Pentágono.

Ele destaca os pontos em que os planos oficiais são mal fundamentados ou inconsistentes. É um apelo por maiores gastos, mas também por gastos mais coerentes.

Entrar no ramo de armamentos de alta tecnologia será caro. Habilidades tradicionais terão que ser reaprendidas. Os novos desafios, analisados e redirecionados.

Mas o documento reitera que os EUA continuarão sendo um grande ator militar em todo o mundo.
Diplomacia

Alguns dos problemas fundamentais para as forças armadas estão fora de seu escopo: na indústria e na diplomacia. Na Guerra Fria, por exemplo, o longo domínio dos EUA foi baseado em um extraordinário lastro científico e industrial com o qual ninguém podia rivalizar.

Avanços na pesquisa aeroespacial e outras tecnologias relacionadas ao setor militar se fundiram lentamente na vida civil.

Hoje as coisas são diferentes. É a pesquisa civil - como em computação e inteligência artificial - que está impulsionando o progresso tecnológico. E os Estados Unidos, embora sejam um jogador poderoso, não estão sozinhos nesta corrida.

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Xi Jinping comandou uma renovação nas forças armadas chinesas

A China, em particular, está investindo enormemente em tecnologias que podem, um dia, dar-lhe vantagem em batalhas do século 21. A globalização interligou as economias chinesa e americana de maneiras que podem ser prejudiciais à segurança dos EUA.

Segundo as recomendações do Comissão de Estratégia Nacional de Defesa, os programas de aquisição de armas precisam ser mais rápidos e eficientes. Os gastos dos EUA excedem os de seus principais rivais militares, mas o país ainda não consegue obter frutos proporcionais aos investimentos.

Há também o aspecto diplomático.

Os Estados Unidos não treinam para lutar sozinhos, mas com aliados. Trump tem se concentrado apenas em um aspecto desta relação: a partilha de responsabilidades, como a necessidade de países da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), em especial, gastarem mais na defesa coletiva.

Mas Trump já ofendeu os aliados de maneira ímpar.

A própria Aliança Atlântica enfraqueceu politicamente, mesmo que mais forças dos EUA tenham sido mobilizadas na Europa para reforçar a defesa contra a Rússia.
Uma nova mentalidade?

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Homens verdes' que atuam na Crimeia exemplificam novos desafios na segurança

Talvez o grande desafio apresentado por este relatório seja seu apelo para que os Estados Unidos adotem uma abordagem que envolva todo o governo

Tanto a Rússia quanto a China, destaca o documento, possuem estratégias que integram todas as peças do poder nacional. Os EUA precisam fazer o mesmo.

Não vivemos mais em um mundo onde existe uma clara distinção entre a paz e a guerra. O espaço entre esses pólos é preenchido por uma variedade de desafios e armadilhas: ataques cibernéticos, assassinatos políticos e atividades de forças cuja identidade só se torna clara ao longo do tempo (pense nas tropas russas que operam como os chamados "homens verdes", que lutam sem identificação, na Crimeia).

Enfrentar essa nova realidade requer também novas estratégias, orientações e ferramentas. Por último, e não menos importante, exige uma nova mentalidade do governo - talvez a coisa mais difícil de ser alcançada.
BBC Brasil

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Taiwan, a ilha que não para de pedir desculpas


Leslie Nguyen-Okwu
BBC Travel

Direito de imagemSEAN PAVONE/ALAMYImage caption
A cultura 'buhaoyisi' revela muito sobre a modéstia e a timidez do povo de Taiwan

Yun-Tzai Lee e Joanne Chen são um daqueles casais irritantes que terminam as frases um do outro, andam de mãos dadas e não se cansam de ser fofos. Mas dizer "eu te amo" não é tão fácil para Lee. O rosto dele fica vermelho como um pimentão diante da simples ideia de proferir a frase, e faz com que ele se sinta buhaoyisi - uma das muitas maneiras de dizer que está envergonhado ou pedir desculpas em Taiwan.

"A maioria das pessoas aqui vai se sentir assim", afirma Lee.

Bem-vindo ao minado campo linguístico dos pedidos de desculpa em Taiwan, onde apenas dizer buhaoyisi pode abrir uma caixa de Pandora de boas maneiras.

A palavra é composta de quatro caracteres que são traduzidos literalmente como "sentido ruim" ou "mau pressentimento", e serve como uma solução que pode ser aplicada a todos os tipos de situações - como chamar gentilmente a atenção de um garçom, pedir desculpas ao chefe ou corar na hora de fazer uma declaração de amor.

Buhaoyisi está sempre na boca dos taiwaneses, segundo Chia-ju Chang, professora de chinês da Universidade Brooklyn College em Nova York, nos EUA.

"Nós usamos o tempo todo, já que Taiwan tem uma cultura oralmente gentil. Usamos quando interrompemos alguém ou pedimos um favor. Podemos usar até para iniciar uma conversa."

A expressão costuma ser pronunciada tão rápido que pode soar como uma mistura de consoantes ou algo sem sentido para ouvidos desavisados. E diferentemente de entschuldigung em alemão ou excuse me em inglês, traduzir buhaoyisi não é uma tarefa simples, explica Ouyu Yang, professor do departamento de língua chinesa da Universidade Nacional de Taiwan.

A noção ocidental de "desculpa" é muito limitada para expressar todas as graças sociais e boas maneiras que pesam sobre essa expressão tão rica; buhaoyisi também pode ser um sentimento, uma sensação, um código de conduta e todo um sistema de pensamento que permeia a cultura taiwanesa.

Direito de imagemKEITMA/ALAMYImage caption
Dizer 'buhaoyisi' em Taiwan pode abrir uma caixa de Pandora de boas maneiras

Ao andar de metrô na capital Taipei você vai ouvir uma profusão desarmônica de buhaoyisi, pela simples consideração dos passageiros ao esbarrar sem querer em alguém. Nas salas de aula, escutará os alunos começarem e terminarem cada pergunta com buhaoyisi, expressando um sentimento de dívida e gratidão, mesmo que a discussão continue.

Quando abrir um e-mail, a primeira frase que você vai ler geralmente será buhaoyisi, o que significa "desculpe incomodá-lo", mesmo para os menores favores. E se um primo querido te der um presente, a resposta correta não é "obrigada", mas buhaoyisi pelo inconveniente que causei a você.

Para os leigos que vêm de fora, Taiwan pode parecer o país mais indulgente do mundo, uma nação obcecada em pedir desculpas - mas, na verdade, a cultura do buhaoyisi revela muitos aspectos ocultos da timidez e modéstia do povo da ilha.

Décadas de colonização japonesa, junto aos ensinamentos morais do confucionismo (sistema filosófico chinês), desempenharam um papel importante na formação da enraizada cultura de pedidos de desculpas que se vê (e ouve) hoje em Taiwan, de acordo com Khin-huann Li, professor emérito de sociolinguística da Universidade Nacional de Taiwan.

Embora a origem exata da expressão seja desconhecida, Li e outros linguistas acreditam que seja em grande parte produto da concepção milenar confucionista de harmonia, que se concentra na manutenção de relações interpessoais, em vez de individuais.

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Usamos ('buhaoyisi') quando interrompemos alguém ou pedimos um favor. Até para iniciar uma conversa', diz Chia-ju Chang

Preservar a coesão social a todo custo ainda é o alicerce da moral social taiwanesa. Ou seja: colocar o clã maior, a sociedade, antes de você, o indivíduo, é fundamental.

Além disso, parte do costume buhaoyisi é fortemente influenciado pela cultura sumimasen de desculpas do Japão - uma vez que ambos os países dividem um passado em comum (a ilha foi uma colônia nipônica).

Em geral, o hábito de dizer buhaoyisi costuma fazer com que os confrontos não ganhem proporções ainda maiores, afirma Li.

"A cultura taiwanesa tradicional é assim - mais delicada e pensa nas outras pessoas, tentando manter relações civilizadas com os outros", explica.

Por um lado, a expressão carrega um ar de submissão e decoro, mas por outro, também demonstra a inigualável gentileza taiwanesa. É por isso que, para o turista, pedir desculpas em chinês pode virar facilmente em um campo linguístico minado.

Quando estiver em dúvida, aconselha Li, opte sempre pelo caminho mais seguro e diga apenas buhaoyisi; é provável que eles respondam buhaoyisi de volta. É a regra tácita nas ilhas de Taiwan.

Li também sugere que a cultura buhaoyisi de Taiwan é única, em comparação ao resto do mundo de língua chinesa. É bem comum ouvir buhaoysi pelas ruas de Taipei, mas é menos provável que você escute a expressão sendo usada da mesma maneira na China ou na Malásia, que colocam menos ênfase nos princípios de polidez.

De acordo com o índice Expat Insider da InterNations, comunidade online de expatriados, Taiwan é classificado constantemente como um dos países mais amigáveis do mundo. Cerca de 90% dos expatriados da ilha deram notas altas aos taiwaneses pela hospitalidade, em comparação com uma média de 65% no restante dos países pesquisados.

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Décadas de colonização japonesa, e de ensinamentos morais do confucionismo, desempenharam papel importante na formação da cultura 'buhaoyisi'

Atualmente, mais de um terço dos expatriados pensa em ficar para sempre na pequena ilha do Pacífico, segundo o levantamento, que ouviu mais de 12,5 mil entrevistados em todo o mundo. O segredo para atrair as pessoas para as exuberantes ilhas tropicais de Taiwan? Nenhum, apenas a gentileza.

No entanto, de acordo com o farmacêutico Jieru You, de 25 anos, que mora na cidade portuária de Kaohsiung, a bela narrativa de que Taiwan é líder mundial em simpatia pode ser falsa, ou pelo menos não oferece o panorama completo.

Ter que se diminuir e se desculpar constantemente por pequenos inconvenientes - e muitas vezes por sua mera presença - pode acabar fazendo mais mal do que bem. E, ironicamente, pedir permissão para ir e vir o tempo todo pode ser desnecessariamente incômodo - mais para você mesmo do que para qualquer outra pessoa.

"Ao fazer um pedido para outra pessoa, o povo de Taiwan costuma usar buhaoyisicomo introdução para expressar seu desejo de pedir ajuda a partir de uma posição de submissão", avalia Jieru You. Na verdade, ele já estava se sentindo um pouco buhaoyisi - envergonhado de ser entrevistado - antes de se aprofundar em seus pensamentos.

O conceito de "manter a reputação" é levado a sério em Taiwan. Imagine um tabuleiro de xadrez de trocas sociais, em que os movimentos de cada pessoa afetam o da próxima. A reputação, neste caso, é a moeda social que permite fazer amigos e promover conexões profissionais que podem levar você ao seu próximo emprego, a um investimento na sua empresa ou até mesmo a conhecer sua futura esposa ou marido.

Sem uma "reputação", é menos provável que as pessoas confiem em você ou te ajudem a progredir na vida. O objetivo do jogo é proteger a si mesmo, sua autoimagem e dignidade, agradando aos outros e retribuindo seus atos de gentileza.

É por isso que Taiwan é avesso ao confronto. É um país que se esforça para evitar conflitos e preservar a harmonia a todo custo.

Em contrapartida, pessoas com "uma reputação frágil", ou seja, com moral social e status arranhados, tentam não incomodar os outros por medo de serem inconvenientes, e certamente porque não gostam de perder o respeito em público, acrescenta Yang.

Para ele, Taiwan está se afogando em um amontoado de pedidos de desculpas superficiais, onde dizer buhaoyisi é mais um hábito do que uma expressão com significado mais profundo. O resultado é pouco convincente, sem qualquer demonstração sincera de lamentação ou arrependimento.

Sem contar que, graças ao crescente isolamento global e ao mal-estar econômico da ilha, os taiwaneses sofrem da síndrome de guidao, ou da "ilha fantasma".

No cenário mundial, a identidade de Taiwan é muitas vezes mal interpretada, explica Wenhui Chen, professor de informática da Universidade Ming Chuan, que estuda o fenômeno da ilha fantasma.

Direito de imagemKEITMA/ALAMYImage caption
Taiwan é avesso ao confronto, se esforçando para evitar conflitos e preservar a harmonia a todo custo

Segundo ele, Taiwan costuma ser visto como um joguete entre a China e os EUA, flutuando sem muitas das armadilhas diplomáticas de um país oficialmente reconhecido.

Chen acredita que a cultura subserviente de Taiwan talvez não se revele tão frutífera no final e possa até levar à ruína da própria sociedade.

Mas nem todo mundo prevê um futuro tão sombrio para a ilha. Li enxerga a enraizada cultura buhaoyisi como parte importante da manutenção da paz - e se essa cultura desaparecer, também vai se perder uma tradição secular.

"Se a sociedade mantém esses conceitos e expressa essas palavras diariamente, pode ser mais educada, ética e conservadora."

"Se não, a sociedade se torna indelicada, imoral e agressiva demais. A cultura de Taiwan [deve] ser mantida nos termos da moralidade e da harmonia", acrescenta Li, encerrando com o "obrigatório" buhaoyisi.
BBC Brasil

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Brexit: 4 perguntas para entender por que a fronteira irlandesa é crucial no acordo entre UE e Reino Unido



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Bem-vindo à Irlanda do Norte', diz placa na fronteira, que hoje é mantida aberta por conta do histórico acordo de entre as Irlandas

"Este é o melhor acordo possível."

A premiê britânica, Theresa May, tem repetido há semanas essa frase na tentativa de convencer o Parlamento de seu país a aprovar o acordo que ela negociou com a União Europeia, estabelecendo os termos do Brexit - o processo de saída do Reino Unido do bloco.

Mas, na segunda-feira, a premiê adiou indefinidamente a votação do acordo no Parlamento, reconhecendo que ele seria rejeitado pela maioria dos parlamentares britânicos. Na quarta-feira, ainda enfrentou um voto de desconfiança de seus pares - ela sobreviveu por 200 votos a seu favor e 117 contra, mas prometeu renunciar à liderança do partido antes das próximas eleições e agora permanece em uma posição enfraquecida para convencê-los a aprovar os termos negociados com a UE.

"Há um amplo apoio a muitos aspectos do tratado. Mas também há oposição", afirmou May, que voltou a se reunir com líderes europeus para transmitir a eles as preocupações dos parlamentares britânicos, em especial aquela ligada ao tema mais espinhoso do acordo: a fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte.

Saiba, a seguir, por que esse se tornou o ponto mais controverso da saída britânica do bloco europeu:

1. Por que a fronteira é um tema sensível?

O acordo de paz de 1998 que pôs fim a três décadas de sangrentos conflitos entre a República da Irlanda (país independente e membro da UE) e a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) contempla a ausência de barreiras físicas entre os dois lados.

Desde aquele ano, pode-se cruzar a fronteira sem passar por nenhum controle físico. A venda de bens e serviços ocorre com poucas restrições, já que ambos os lados fazem parte do mercado comum europeu e da união aduaneira.

Mas, quando o Brexit se concretizar em 29 de março de 2019 e o Reino Unido deixar de fazer parte da UE, a fronteira entre as duas Irlandas passará a ser, na prática, a fronteira física entre a UE e o Reino Unido.Direito de imagem
PARLAMENTO BRITÂNICO Image caption
Theresa May foi obrigada a adiar votação do Brexit no Parlamento porque não conseguiu obter maioria para aprovar acordo

As duas Irlandas ficarão sob regimes distintos, o que implica que produtos poderiam ser inspecionados na fronteira - algo que os britânicos não querem, justamente por temerem que checagens na divisa tragam à tona antigas tensões entre irlandeses e norte-irlandeses.

O controle tampouco é desejável sob o ponto de vista da UE, mas o bloco vê dificuldades em evitá-lo a partir do momento em que os britânicos abandonarem o mercado comum e a união aduaneira.

No âmbito político, a Comissão Conjunta Norte-Sul da Irlanda advertiu que eventuais controles fronteiriços advindos do Brexit sinalizam que estará sendo rompido o acordo de paz de 1998.
2. E o que diz o acordo Reino Unido-UE a respeito da fronteira irlandesa?

Embora Londres e Bruxelas tenham acordado, desde o princípio, em não fixar uma fronteira "dura" (ou altamente controlada) na divisa irlandesa, o grande obstáculo foi definir os termos para tal.

A opção foi por uma espécie de "escudo", chamado em inglês de "backstop".

O mecanismo prevê que a Irlanda do Norte continue alinhada a algumas regras aduaneiras da UE, para dispensar a necessidade de checagem na fronteira com a Irlanda, mas exigirá que alguns produtos vindos do restante do Reino Unido sejam sujeitados a controles, para averiguar se cumprem com as normas da UE.

O "backstop" também envolverá uma união aduaneira temporária, o que, na prática, mantém a UE e o Reino Unido dentro de um mercado comum - contrariando, para alguns, o princípio básico do Brexit.

Esse mecanismo acabou se convertendo na principal dor de cabeça nas negociações do Brexit, gerando forte oposição ao acordo.

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Cartaz de protesto contra o Brexit e mudanças na fronteira irlandesa; temor é que processo de paz seja colocado em risco

3. Por que o "backstop" gera tanta oposição?

A ideia é de que o "backstop" só entre em vigor em último caso, na hipótese de UE e Reino Unido não conseguirem definir rapidamente como será o controle aduaneiro e a relação comercial bilateral após o Brexit.

O mecanismo prevê, assim, que a Irlanda do Norte siga sob o regimento do mercado único europeu caso nenhuma solução bilateral seja alcançada até dezembro de 2020.

May defende o "backstop" argumentando que ele só será colocado em prática como último recurso. No entanto, críticos afirmam que sua implementação causaria uma fratura na unidade territorial do Reino Unido.

A premiê tem enfrentado dura oposição nesse ponto, sobretudo do Partido Unionista Democrático, o principal aliado de May (que é do Partido Conservador) no governo de coalizão britânico.

Os unionistas rejeitam a ideia de a Irlanda do Norte ficar em um regime diferente do restante do Reino Unido, temendo que isso implique em um distanciamento em relação ao país e um flerte não desejado com uma eventual união entre as duas Irlandas.

Além disso, até mesmo parlamentares do Partido Conservador consideram a proposta do "backstop" inviável, por submeter a Irlanda do Norte a regras europeias (e não britânicas) e pelo temor de que, uma vez que o mecanismo entre em vigor, não possa ser suspenso sem a aprovação da UE.

Sob essa visão, o "backstop" significaria manter o Reino Unido submetido, de alguma forma, à vontade europeia e pode dificultar a assinatura de outros tratados comerciais que pudessem beneficiar o Reino Unido.

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Sinais dados até agora pela UE é de que não há abertura para renegociar acordo do Brexit
4. Há alternativas?

Diante da forte oposição, é grande a possibilidade de a rejeição ao "backstop" implique na não aprovação do acordo do Brexit entre UE e Reino Unido. E o fato é que, caso isso se concretize, não há um "plano B".

Na ausência de um acordo, os parlamentares britânicos terão de decidir entre:
"se divorciar" da UE sem nenhum termo definido, o que pode causar insegurança e fricções em fronteiras, na circulação de bens e pessoas e em acertos comerciais
voltar a negociar com a UE, possibilidade que o bloco descarta no momento
realizar uma votação no Parlamento
voltar a consultar a população, em plebiscito, sobre o tema

Todas as alternativas implicam em dificuldades e, possivelmente, em adiar a implementação do Brexit - o desligamento do Reino Unido do bloco -, prevista para 29 de março de 2019.

Após sobreviver ao voto de desconfiança, May voltou a Bruxelas para buscar mais salvaguardas legais para o "backstop", mas não teve sucesso.

O acordo "não está aberto para renegociação", afirmou nesta sexta-feira Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu.

Mais tarde, ele chamou o "backstop" de uma "apólice de seguros", agregando que a União Europeia se mantém determinada a buscar alternativas que evitem que ele seja implementado.

O premiê da Irlanda, Leo Varadkar, também afirmou que o acordo do Brexit "é o único sobre a mesa" e que "não é possível reabrir um aspecto do acordo sem reabrir todos".

Se a atual proposta em discussão for rejeitada pelo Parlamento, "não haverá um acordo para a saída do Reino Unido nem para um período de transição", destacou o editor de economia e negócios da BBC na Irlanda do Norte, John Campbell.

"Isso significa um Brexit duro, possivelmente caótico", prevê. "Se chegar a esse ponto, a UE e o governo da Irlanda terão de tomar decisões difíceis sobre o que ocorrerá na fronteira."

Ao mesmo tempo, o Tribunal de Justiça da UE acrescentou outra possível cartada ao jogo, ao determinar, na segunda-feira, que o Reino Unido pode revogar o Brexit unilateralmente a qualquer momento, sem acordo unânime com os demais Estados-membros do bloco.

May, por sua vez, afirmou que a data limite para o Parlamento votar a questão é 21 de janeiro de 2019, a depender de como avancem as negociações com a UE.
BBC Brasil

domingo, 16 de dezembro de 2018

Lítio, "ouro branco" e esperança da Bolívia


Nenhum celular nem carro elétrico funciona sem lítio. Num deserto de sal da América do Sul está a maior reserva da cobiçada matéria-prima. Governo Morales tudo faz para não repetir história de exploração colonial.


Brancura preciosa no país andino


O futuro da Bolívia é branco e salgado. Ele jaz sob um lago seco de 10 mil quilômetros quadrados, o Salar de Uyuni. O engenheiro Juan Montenegro bate na crosta de sal e diz: "Aqui começa a época industrial do nosso país."

Ele se refere ao lítio, uma matéria-prima que atualmente interessa a firmas de todo o mundo. O local pode abrigar até 10 milhões de toneladas do metal alcalino, a maior reserva do mundo. Ele é um componente central das baterias de relógio e indispensável para um futuro provavelmente movido a eletricidade.

Sem baterias recarregáveis de íon-lítio, nada de telefone celular, bicicleta elétrica e, naturalmente, nada de carro elétrico. Michael Schmidt, da Agência Alemã de Matérias-Primas, estima que a demanda global alcançará 111 mil toneladas ate 2025, em comparação com apenas 33 mil toneladas em 2015.

Ao governo de esquerda de Evo Morales não escapou o tesouro que jaz sobre o pobre Estado andino. Atualmente, uma tonelada de lítio está cotada em 16 mil dólares, e o preço vem subindo de ano para ano. Investidores da China, Estados Unidos e Rússia fazem fila, mas a Bolívia mantém suas portas fechadas.

"Não queremos uma segunda Potosí", afirma Juan Montenegro, que Morales nomeou chefe da empresa estatal Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB). Ele se refere a uma velha cidade mineira, a mais de duas horas de carro do deserto salino.

Ao longo de séculos, os colonizadores espanhóis extraíram ali tanta prata que, diz-se, teria sido possível construir uma ponte da Europa até a América do Sul. Milhões morreram nas atividades de mineração, até hoje crianças procuram restos pelos túneis. No centro de Potosí uma exposição fotográfica junta donativos para que elas possam ir à escola.

Essa história não deve se repetir em Uyuni. Quem queira extrair lítio aqui, deve se ater às condições de La Paz, mantendo no local os empregos e a agregação de valor.

Não se trata apenas de ser fornecedores de matéria-prima, afirma Montenegro: a meta é produzir baterias made in Bolivia. Os pacotes de baterias recarregáveis improvisadamente embalados com fita adesiva, que os cientistas trouxeram de La Paz, são prova de quanto falta até alcançar essa meta.

Jazidas de lítio do Salar de Uyuni já são motivo de orgulho nacional

Joint venture com firmas alemãs

É um dia seco e frio em Uyuni, a YLB comemora seu primeiro aniversário de fundação. A banda militar se apresenta, escolares dançam em trajes andinos, e a prefeita louva as "perspectivas de emprego" graças ao lítio.

E há mesmo o que festejar: está prometido para Uyuni um investimento bilionário vindo da Alemanha. A empresa de energia sustentável ACI Systems, de Baden-Württemberg, e a turíngia K-Utec, de tecnologia de sais, ganharam a concorrência para o megaprojeto.

Dada a partida oficial, nesta quarta-feira (12/12), uma joint venture teuto-boliviana extrairá sulfato de lítio do Salar em escala industrial, calculam-se 25 mil toneladas da preciosa matéria prima por ano. A partir dela se produzirá carbonato de lítio, a alma das baterias recarregáveis.

Até agora só há uma pequena central-piloto no deserto de sal. O caminho até lá passa pelo lugarejo de Colchani. Quando acabam as casas, a pista se perde no branco infinito. Chegando finalmente à pequena fábrica, soldados vigiam a entrada.

Dentro, o operário Jorge Macías afirma que consegue viver bem do lítio: seu salário equivale a 600 euros, o que é relativamente muito na Bolívia. Depois de três semanas trabalhando direto, ele já sente falta da mulher e dos filhos, mas está convencido: "Finalmente, nós mesmos, bolivianos, estamos nos beneficiando das riquezas da terra."

Bolívia espera produzir 25 mil toneladas de lítio por ano. Preço atual é de 16 mil dólares por tonelada

O diretor geral da ACI Systems, Wolfgang Schmutz, vê a situação de forma surpreendentemente semelhante: "A coisa toda é um projeto de igual para igual. Decisiva para o nosso trabalho aqui foi a confiança dos bolivianos, que contam com um desenvolvimento sério e sustentável no Salar."

Agora se busca na Alemanha quem esteja disposto a passar alguns meses na Bolívia, revela Schmutz: justamente no setor de técnica de baterias ainda falta muito know-how aos sul-americanos.

Um outro fator se interpõe no caminho dos bolivianos à era industrial: o país não tem acesso ao mar, as exportações têm que ser transportadas pela cadeia andina até o porto chileno de Antofagasta, para cuja utilização Santiago exige altas taxas. Isso também deverá encarecer as baterias bolivianas. Em outubro o país perdeu uma causa contra o Chile no Tribunal Internacional de Justiça.

Em Uyuni, porém, as esperanças permanecem altas. No momento, os mochileiros são a única fonte de verbas para a desolada região: o deserto de sal é uma cenário apreciado para fotos do Instagram. Mas em geral os turistas só permanecem por poucos dias.

"Para os agricultores da região, a única outra fonte de renda é a criação de lhamas", comenta a prefeita Carmen Gutiérrez. Ela espera que o lítio vá finalmente lhes trazer prosperidade – uma prosperidade que nenhuma potência colonial será capaz de tomar.
 Deutsche Welle

sábado, 15 de dezembro de 2018

O que mudou na Venezuela 20 anos após triunfo de Hugo Chávez


Guillermo D. Olmo (@BBCgolmo)
BBC News 


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Chávez teve muito apoio nas eleições de 1998

No dia 6 de dezembro de 1998, há 20 anos, Hugo Rafael Chávez Frías ganhava as eleições presidenciais na Venezuela pela primeira vez e inaugurava uma nova página na história do país. À época, a Venezuela era castigada por corrupção, pobreza e desigualdade. O novo presidente chegava ao poder com a promessa de uma república refundada, que regeneraria a política e entregaria a tão desejada justiça social.

Mas, 20 anos depois, muitos dos problemas daquela época pioraram. O país vizinho vive a maior recessão de sua história. São 12 trimestres seguidos de retração econômica, segundo anunciou em julho a Assembleia Nacional, o parlamento venezuelano, que atualmente é controlado pela oposição.

A inflação no país está próxima de 1.000.000% ao ano. A fome fez os venezuelanos perderem, em média, 11 quilos no ano passado. A violência esvazia as ruas das grandes cidades quando anoitece.
Como Chávez venceu?

O historiador Agustín Blanco Muñoz, autor de várias obras sobre a história recente da Venezuela e a figura de Chávez, explica o contexto daquela vitória chavista: "O sistema de Ponto Fixo, que acabou com a ditadura de Marcos Pérez Jiménez em 1958, era baseado em dois partidos, Ação Democrática (AD) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei), que se alternavam no poder sem conseguir resolver os problemas. Cada presidente que tomava posse culpava o anterior pela herança".Direito de imagemGETTY IMAGESImage caption
Chávez desvinculou sua imagem da velha política

Então, os venezuelanos decidiram confiar em Chávez, um jovem militar que havia ficado famoso como líder de uma tentativa de golpe de Estado em 1992, contra Carlos Andrés Pérez.

Sua mensagem televisiva ao país pouco depois do fracasso da rebelião, quando anunciou que seu movimento bolivariano não tinha alcançado seus objetivos "por ora", foi, na verdade, como escreveu na época Gabriel García Márquez, "o início de sua campanha eleitoral".

Depois de ser perdoado em 1994 pelo presidente Rafael Caldera, Chávez, de gravata e já sem uniforme militar, competiu nas urnas seis anos depois e venceu de lavada.

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Na campanha, Chávez tomou como bandeira a luta contra a corrupção e a pobreza

"A situação em 1998 era de verdadeiro desastre e ele conseguiu se apresentar como um salvador em meio a esse desastre, porque os venezuelanos já não acreditavam nos partidos políticos tradicionais", diz Blanco.
Como estava a economia em 1998?

Apesar de ter feitos declarações contrárias ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em seu mandato anterior (1974-79) e na campanha presidencial de 1989, o presidente Carlos Andrés Pérez fez ajustes acordados com o órgão em troca de crédito para que a Venezuela pudesse enfrentar sua enorme dívida externa e melhorar sua economia, afetada pela queda dos preços de petróleo nos mercados internacionais.

Na época, tal como hoje, a Venezuela dependia de suas exportações de petróleo bruto, sem refino (portanto, sem valor agregado).

Na década de 1970, principalmente no primeiro governo de Pérez, a Venezuela havia se beneficiado de um boom de petróleo que permitiu um volumoso gasto social. Foram os anos conhecidos como "Venezuela saudita", caracterizados pelo investimento público e pela criação de infraestrutura no país.

Mas na década de 1980 aquela bonança terminou. Os preços, o desemprego e a dívida pública cresceram.

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Carlos Andrés Pérez com o presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, em 1978

Até que, em 1989, logo depois de ser eleito pela segunda vez, Pérez implementou o programa econômico conhecido popularmente como "pacotão", que incluiu cortes em serviços sociais, aumento de impostos e privatização de empresas estatais.
Como era o clima social à época?

A Venezuela de 1998 ainda vivia sob o trauma do episódio conhecido como "Caracaço". Pouco depois de Pérez iniciar as reformas, uma revolta popular com protestos e saques estourou em Caracas.

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Carlos Andrés Pérez colocou o Exército nas ruas para conter a revolta contra reformas

O historiador Blanco Muñoz diz que o presidente suspendeu várias garantias constitucionais e, "para salvar a si mesmo e ao seu governo, botou o Exército na rua com ordem de matar". Ele chama esse momento de "massacre da Venezuela".

"Ainda estamos contando os mortos", lamenta em conversa com a BBC Mundo Juan Barreto, que acompanhou a candidatura de Chávez desde seus primeiros passos e foi responsável pela comunicação no seu governo.

A onda de violência e a repressão à época deixaram centenas de mortos, mas o número exato ainda é motivo de debate no país.

A indignação contra a resposta do governo aos protestos fortaleceu o apoio a Chávez mais tarde.

Gustavo Márquez, ministro de Chávez em duas ocasiões, afirma que nos anos finais do chamado sistema de alternância entre os dois principais partidos, "a elite política do país tinha se distanciado da população".
Qual é a situação da Venezuela hoje?

Esse contexto político e econômico do final da década de 1990 facilitou a ascensão de Chávez, um militar que propôs romper com a política tradicional.

Mas, a situação de hoje tem alguns paralelos com aquele momento.

Em 2014 e 2017, ocorreram diversas ondas de protesto contra o governo de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, que morreu em 2013. Os enfrentamentos entre forças de segurança e manifestantes também deixaram dezenas de mortos - não há consenso sobre o número exato.

Barreto diz que ultimamente "o governo Maduro vem cerceando liberdades, mas não se pode dizer que seja igual ao que se viu no Caracaço", quando, segundo ele, "obrigaram jovens a atirar contra a população".

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Filas e pequenos protestos são rotina na Venezuela

De acordo com o Observatório Venezuelano de Conflito Social, 2018 será o ano com mais protestos na Venezuela desde 2011, quando a organização começou a coletar os dados. No entanto, parece que eles estão se tornando menos intensos.

Já não acontecem as grandes marchas de oposição como em anos anteriores, mas sim concentrações menores de pensionistas, trabalhadores da área de saúde e outros grupos que protestam contra o governo e sua gestão econômica e contra a falta de acesso a serviços básicos.
E a economia venezuelana?

A economia da Venezuela começou a sofrer uma forte deterioração em 2013, ano em que morreu Chávez.

Segundo estimativa do FMI, o país terá vivido em 2018 seu terceiro ano consecutivo com uma queda superior a 10% do PIB, uma redução dramática de sua riqueza nacional. Entre 2013 e 2017, o PIB venezuelano teve uma queda de 37%. O FMI prevê que, neste ano, caia mais 15%; e descreve a situação como "uma das piores crises econômicas da história".

A isso se soma a hiperinflação, um aumento constante e acelerado dos preços, que o FMI estima totalizar 1.000.000% até o fim deste ano.

Ainda que em 1998 a inflação já fosse um problema, a atual supera todos os precedentes na Venezuela e quase todos no mundo.

A crise atual também teve como causa a queda do preço do petróleo. Para o chavista Barreto, "Chávez não conseguiu romper com o modelo rentista petroleiro".
Acabou a corrupção?

Todos os analistas concordam que a farra de autoridades venezuelanas com esquemas de corrupção foi outro motivo importante que deu a Chávez sucesso nas urnas.

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Já na década de 1970 proliferavam escândalos que vinculavam Carlos Andrés Pérez e figuras de seu entorno com suposto uso indevido de recursos públicos

Já na década de 1970, proliferavam escândalos que vinculavam Carlos Andrés Pérez e figuras de seu entorno a suposto uso indevido de recursos públicos.

Depois do "Caracaço" e de duas tentativas golpistas de Chávez, Pérez foi formalmente acusado de gastar indevidamente milhões de bolívares de um fundo secreto presidencial e destiná-los ao envio de uma missão policial à Nicarágua.

O processo acabou com sua destituição como presidente pelo Congresso e a Suprema Corte o condenou a dois anos e quatro meses de prisão domiciliar.

Em 1998, Pérez foi acusado de novo pelo uso indevido de recursos públicos, que teria ocultado em contas de bancos americanos. Pérez deixou a Venezuela e acabou se instalando em Miami, onde morreu sem ter atendido aos requerimentos dos tribunais venezuelanos.

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A justiça de Andorra investiga o mal uso de recursos públicos da empresa de petróleo venezuelana

O chavismo tampouco se livrou da mancha de corrupção.

Um tribunal da Flórida condenou recentemente Alejandro Andrade, que foi tesoureiro da República e guarda-costas de Chávez, a 10 anos de prisão por ter cobrado propina no valor de US$1 bilhão.

Outras pessoas do círculo de Chávez também estão sendo acusadas em diferentes lugares do mundo. Sua enfermeira, Claudia Patricia Díaz Guillén, espera na Espanha que a Justiça decida sobre sua extradição à Venezuela sob acusação de envolvimento no esquema do tesoureiro chavista.

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Os sobrinhos de Maduro foram condenados nos EUA por narcotráfico

A lista não acaba aí. Em Andorra, se investiga um grupo de diretores da PDVSA, a empresa de petróleo estatal venezuelana, acusados de roubar centenas de milhões de dólares.

O Ministério Público da Venezuela anunciou há poucas semanas que havia descoberto um esquema de apropriação indevida de dinheiro da companhia e disse que tinha prendido os responsáveis.

Além disso, dois sobrinhos da esposa do presidente Maduro foram condenados nos Estados Unidos, em 2017, por tentar levar 800 quilos de cocaína ao Haiti.

A situação se agrava com o acirramento político. Em 2015, o chavismo perdeu o controle do Parlamento e Maduro, que acusa constantemente os oposicionistas de tentarem tirá-lo do poder por meio de um golpe, decidiu convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.

Na prática, foi uma estratégia para esvaziar totalmente o poder do Legislativo comandado pelos opositores e criar uma instância paralela de decisão. O chavismo também domina o Tribunal Supremo de Justiça, instância máxima do Judiciário.
BBC Brasil

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