sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Cientistas criam mapa de risco de erosão do solo no Brasil

Recurso pode contribuir para o planejamento relativo a áreas com potencial produtivo
Rodrigo de Oliveira Andrade



O mapeamento da suscetibilidade à erosão hídrica é um dos recursos da plataforma
Reprodução

Pesquisadores da Embrapa Solos, no Rio de Janeiro, produziram mapas detalhados das áreas mais suscetíveis e vulneráveis à erosão hídrica no Brasil. Eles estão disponíveis na plataforma tecnológica do Programa Nacional de Levantamento e Interpretação de Solos no Brasil (PronaSolos). A ideia é que sirvam como subsídio em ações de conservação ou recuperação de áreas com potencial produtivo.

Um dos mapas oferece dados sobre a sensibilidade dos solos à erosão hídrica com base em informações sobre o relevo da paisagem e das condições climáticas às quais estão submetidos. Outro mostra o grau de vulnerabilidade dos solos brasileiros à erosão tendo em vista o nível de exposição às intempéries em razão de sua cobertura vegetal natural ou do uso agropecuário a que estão sujeitos. Os pesquisadores produziram ainda um terceiro mapa sobre a capacidade dos solos de resistirem à erosão de acordo com suas características intrínsecas.

A erosão é hoje um problema em todo o mundo, com impactos na produção de alimentos, disponibilidade de terras para a agricultura e qualidade da água.
Revista FAPESP

Sistema contra a fome

Tecnologia social desenvolvida pela Embrapa e UFU visa dar opção de alimentação para as comunidades rurais e periféricas
O tanque para criação de peixes é o coração do sistema. Os resíduos ricos em nutrientes produzidos pela piscicultura são reaproveitados pelos demais módulos de produção animal e vegetal

Embrapa
Frances Jones

Um tanque para a criação de peixes está no centro de um premiado sistema de produção de alimentos que vem sendo adotado por milhares de famílias, principalmente da região Nordeste, para evitar a fome. Proposta pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a tecnologia utiliza a água e os subprodutos de um modelo de piscicultura intensiva em pequenos espaços para organizar módulos que garantam a segurança alimentar em comunidades rurais – e até mesmo em áreas urbanas.

“O Sisteminha é, antes de tudo, uma ferramenta de combate à fome”, declara o zootecnista Luiz Carlos Guilherme, pesquisador da Embrapa Meio-Norte, no Piauí, referindo-se ao Sistema Integrado de Produção de Alimentos, lançado em 2012. “O objetivo principal é tirar as famílias da linha da pobreza, permitindo que tenham um aumento de até 300% na diversidade de alimentos para consumo próprio”, afirma (ver reportagem sobre segurança alimentar). “O excedente e a sua comercialização podem vir como consequência.”



Entrevista: Luiz Carlos Guilherme
Responsável pelo desenvolvimento do modelo, Luiz Guilherme calcula que 4,5 mil famílias em 11 estados brasileiros (Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, São Paulo e Tocantins), além de sete países da África (Angola, Camarões, Etiópia, Gana, Moçambique, Tanzânia e Uganda), adotem o pacote de tecnologia modular que é apropriado para áreas entre 100 e 1,5 mil metros quadrados (m2). São 15 os módulos propostos (ver infográfico) que podem ser utilizados pelas famílias segundo seu interesse.

O pacote básico inicial indicado é composto por cinco módulos: tanque de peixes, galinhas de postura, compostagem, produção de minhocas e horticultura. Há ainda a possibilidade de criação de animais. Todos aproveitam de alguma forma os resíduos ricos em nutrientes produzidos pela piscicultura. A ração industrial usada para alimentar os peixes acaba deixando disponível no tanque nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio e magnésio – aproveitados depois para a irrigação e adubação das plantas.

É no tanque circular de 4,4 m de diâmetro e 70 centímetros de profundidade, com capacidade para 10 mil litros de água, que as famílias devem dedicar maior atenção e investimento no início, segundo o pesquisador da Embrapa, que desenvolveu a solução durante doutorado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, detentora da patente.

No sertão nordestino, que sofre com a escassez hídrica, o pesquisador explica que a água para o tanque de peixes pode ser adquirida de caminhões-pipa, comuns na região. O pacote indica soluções relativamente baratas para a construção de um filtro biológico para aproveitamento da água, de uma bomba de recirculação e de aeração do tanque e de um sedimentador, que separa os resíduos sólidos do líquido.

“Primeiro, eu fiz o tanque mais artesanal e barato possível, usando talos da palmeira de babaçu, papelão e lona plástica”, contou a Pesquisa FAPESP o professor e radialista aposentado Paulo Afonso Silva Santos, conhecido na cidade piauiense de Esperantina como Paulo Brasil. Isso foi em 2013, quando ele conheceu o projeto. De lá para cá, em todas as casas em que morou de aluguel construiu um tanque de peixes, dentro do modelo do Sisteminha, e implantou os módulos de galinha de postura, cabra, composteira e horta.

“Sempre tivemos em torno de 2 litros de leite por dia”, afirma Brasil, que mora com a esposa e três filhos, de 6, 10 e 17 anos. “E isso com uma cabra só.” Com em média 20 galinhas, ele diz produzir por ano 5.500 ovos, além de obter a cada 100 dias entre 30 e 40 quilos de tilápia. “Como tenho limitação física, por ter contraído pólio, e uso muletas para andar, acabei melhorando o processo e adaptando para o mínimo trabalho e menor esforço.” O excedente de ovos e leite de cabra é vendido aos amigos.

Referência alimentar
Dimensionado para atender as recomendações nutricionais de uma família de quatro pessoas, o pacote de soluções tecnológicas do Sisteminha foi adotado em cidades, assentamentos rurais e comunidades quilombolas e indígenas como política pública. Desde março de 2018, a técnica de enfermagem Cláudia Leal e a filha Alba, técnica de informática, atuam como replicadoras da tecnologia na comunidade rural de Inajá, no sertão pernambucano, onde 13 unidades foram implementadas em sete comunidades.

“Cada família tem entre cinco e oito pessoas, mas indiretamente acabamos atendendo um número bem maior, porque a comunidade quer conhecer o Sisteminha”, relata Cláudia. “Por conta da pandemia, também houve muita procura para compra de verduras e legumes.”

“É interessante ressaltar que as unidades cujos trabalhos se destacam são tocadas apenas por mulheres”, comenta Alba Leal. “Elas dão conta sozinhas. Os homens só ajudam de vez em quando, pois geralmente estão fora fazendo outros trabalhos.”

De acordo com Luiz Guilherme, quando o Sisteminha é adotado como política pública, o investimento feito pelo Estado é de aproximadamente R$ 15 mil por família. Um terço desse valor é para custear as instalações necessárias como o tanque de peixes e outras estruturas; os dois terços restantes são divididos igualmente para o custeio no primeiro ano de rações e insumos e de assistência técnica, monitoramento e viagens.

“Os valores são dados pelo órgão público que fornece a tecnologia à família apenas uma única vez. A partir dos seis ou sete meses, ela já começa a ter autonomia na produção de alimentos e se encarrega da ração dos animais”, explica Guilherme. Segundo ele, a Embrapa transfere a tecnologia e passa todas as informações no início do programa para os produtores ou gestores da política pública. “Depois do primeiro ano, usamos muito a figura do multiplicador popular, pessoas que implantaram o sistema e têm bom domínio dele, para apoiar os participantes.”

A bióloga Adriana Miranda de Santana Arauco, professora de microbiologia do solo do curso de agronomia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), no campus de Bom Jesus, no sul do estado, já manifestou interesse em levar a tecnologia social para a região. “Quando há um bom manejo da terra, cultivando hortaliças, vegetais e outras culturas no mesmo espaço, é possível respeitar o ciclo biológico do solo”, afirma. “É uma forma de produzir sem agredir tanto, bem diferente de desmatar e de ter monocultura com uso de fertilizantes.”

Entre os vários reconhecimentos recebidos pela tecnologia, está o Prêmio Celso Furtado de Desenvolvimento Regional, concedido pelo Ministério da Integração Nacional em 2017. O Sisteminha também é objeto de estudos em escolas e universidades. Uma unidade demonstrativa foi instalada na Escola Agrícola de Jundiaí (EAJ), unidade acadêmica especializada em ciências agrárias da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) localizada em Macaíba, na Região Metropolitana de Natal. Karina Ribeiro, coordenadora de extensão da EAJ/UFRN, e seus alunos também montaram uma unidade em uma escola municipal em Lagoa de Pedras, no sudeste potiguar, como trabalho de conclusão de curso de um dos alunos da instituição.

Nos últimos meses, um projeto de extensão para difundir o Sisteminha em um assentamento de reforma agrária e em uma comunidade tradicional quilombola em Macaíba precisou ser interrompido por conta da pandemia, mas Ribeiro ressalta a importância da tecnologia como ferramenta social para o desenvolvimento. “Primeiro ele estabiliza uma situação de fragilidade daquela família ou comunidade”, pondera. “O sistema permite uma produção escalonada e exige a ligação do homem com a terra. Nós apresentamos ao produtor as possibilidades, mas cabe a ele o desenvolvimento.”
Revista FAPESP

O gás do antigo mar do sertão


Metano liberado por lago de água salgada pode ter favorecido a elevação da temperatura e a diversificação de formas de vida no planeta

Geólogos da USP coletam amostras de rochas calcárias na região de Januária, em Minas Gerais

Juan Camillo Gómez-Gutierrez

Paredões de 50 metros de altura cercam uma vasta planície no interior dos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Há cerca de 550 milhões de anos, quando a América do Sul, a África e a Antártida ainda estavam ligadas entre si, ali havia um mar interno, sem conexões com um oceano. Sua área de cerca de 350 mil quilômetros quadrados era similar à do mar Cáspio, igualmente fechado, entre a Rússia, o Azerbaijão e o Irã.

A bacia sedimentar do São Francisco, onde ficava o chamado mar de Bambuí, tinha uma peculiaridade: a água salgada liberava gás metano, um dos responsáveis pela elevação da temperatura global, de acordo com estudos de geólogos das universidades de São Paulo (USP) e Federal de Minas Gerais (UFMG). Os pesquisadores cogitam que o metano, ao chegar à atmosfera, possa ter contribuído para amenizar o clima do planeta, reduzir a intensidade das glaciações e favorecer a diversificação de formas de vida entre 540 milhões e 520 milhões de anos atrás, com o surgimento de moluscos, esponjas, equinodermas e artrópodes. Eles, no entanto, ainda não estimaram o volume de gás liberado nem o quanto teria sido necessário para modificar o clima terrestre, informações importantes para fortalecer essa hipótese.

O geólogo Sergio Caetano-Filho, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, chegou a essa hipótese após examinar 520 amostras de rochas calcárias e 198 de material orgânico extraídas em outubro de 2017 de pedreiras de Januária, norte de Minas, e Santa Maria da Vitória, sul da Bahia, às quais se somaram informações de materiais similares extraídos de um poço de petróleo e de um furo de sondagem na região do município mineiro de Arcos. Esse trabalho é parte de seu doutorado, defendido no início de novembro deste ano. Concluídas em 2019, as análises registraram um predomínio da forma mais pesada do carbono, o isótopo 13 (13C), em comparação com o isótopo 12 (12C), em uma proporção até 15 vezes maior que a encontrada em rochas como as do grupo Corumbá, na região do Pantanal.

Segundo Caetano-Filho, o excesso de 13C pode resultar da atividade de um grupo de microrganismos primitivos, as Archaeas, que transformam matéria orgânica em gás carbônico (CO2) e metano (CH4). Em consequência, pode ter se formado um ambiente hostil para outros seres vivos, pobre em oxigênio e rico em enxofre, na forma de gás sulfídrico, muito tóxico para os seres vivos. Segundo ele, as rochas das bordas do antigo mar de Bambuí ainda exalam um odor de ovo podre, característico do gás sulfídrico. Essa composição explicaria a escassez de fósseis marinhos incrustados nas rochas do mar de Bambuí – nas rochas similares do grupo Corumbá, diferentemente, os fósseis marinhos são comuns. Ele e outros colegas da USP e de universidades de Minas Gerais e de Paris detalharam os resultados em um artigo publicado em abril na revista científica Geoscience Frontiers.

“O fato de o mar de Bambuí provavelmente ser um ambiente tóxico para os seres vivos explica a extrema escassez de fósseis na região”, diz Marly Babinski, do IGc-USP e orientadora do doutorado de Caetano-Filho. Ela identificou o predomínio das formas mais pesadas de carbono em seu próprio doutorado, há 30 anos, atribuindo-o inicialmente ao acúmulo de matéria orgânica, uma hipótese que não se sustentou.

Geólogos da USP coletam amostras de rochas calcárias em Santa Maria da Vitória, na BahiaKamilla Amorim

“O mar de Bambuí não deve ter sido um caso isolado”, sugere Caetano-Filho, “porque existem outros mares fechados com a mesma idade geológica e sinais geoquímicos muito semelhantes”. Seria o caso, segundo ele, da bacia do Irecê, na Bahia, que integra a mesma unidade geológica, o cráton São Francisco, e da formação Hüttenberg, na Namíbia, sul da África, que poderiam reforçar a liberação de metano para a atmosfera.

Se a hipótese se mostrar correta, talvez esses mares fechados tenham sido a fonte de metano que ajudou a elevar a temperatura e a reduzir o impacto das glaciações. Além da maior oferta de oxigênio e nutrientes, a temperatura mais alta que nas épocas frias dos períodos geológicos anteriores pode ter contribuído para a gradual diversificação de formas de vida.

“Não existem análogos modernos ao mar de Bambuí, o que dificulta muito as análises”, diz o geólogo Gabriel Uhlein, da UFMG. Em estudo publicado em setembro na revista Precambrian Research, Uhlein argumenta que a erosão dos terrenos elevados nas margens do mar de Bambuí pode ter contribuído para o excesso de 13C nas águas; além disso, sedimentos de rios extintos poderiam ter alimentado o mar com carbonato, que pode formar metano ao se decompor. A seu ver, a liberação de metano deve ter tido um efeito local.

“Como Bambuí é uma bacia pequena, em comparação com as dimensões da Terra, ainda é incerto se poderia ter liberado metano em volume suficiente para interferir no clima global”, diz ele. Caetano-Filho contra-argumenta: “O mar de Bambuí provavelmente foi maior, antes de ser empurrado por montanhas e se isolar. E, se outras bacias também passaram por uma fase de produção intensa de metano, o impacto sobre a atmosfera pode ter sido considerável”.

Desde 2019, Uhlein e sua equipe têm coletado rochas orgânicas, calcários formados por cianobactérias, cristais de sal e outros sinais de variação de maré nos paredões rochosos de Januária e de Ubaí, no norte de Minas Gerais. Os achados levantam outras dúvidas: “Ou havia conexões do mar de Bambuí com o oceano que ainda não descobrimos ou a relação gravitacional entre a Terra e a Lua, que causa as marés, era diferente há 550 milhões de anos, resultando em marés mais altas que as atuais dos grandes mares continentais, como o Cáspio”.

“A distância entre a Lua e a Terra varia constantemente e era diferente meio bilhão de anos atrás”, comenta o geofísico Eder Molina, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. “Atualmente”, ele acrescenta, “a Lua se afasta da Terra a 3,8 cm por ano, aproximadamente.” Há 400 milhões de anos, a Lua girava mais rápido e estaria a uma distância da Terra 40% menor que a atual. Nesse caso, a maré subiria mais do que hoje e o mês – definido como o tempo necessário para a Lua realizar uma volta completa em torno da Terra – teria apenas nove dias.

Projetos
1. O Sistema Terra e a evolução da vida durante o Neoproterozoico (nº 16/06114-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trindade (USP); Investimento R$ 2.106.971,07.
2. Ciclos biogeoquímicos de enxofre e carbono no Ediacarano e seu registro em sucessões sedimentares brasileiras (nº 16/11496-5); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Marly Babinski (USP); Bolsista Sergio Caetano Filho; Investimento R$ 281.739,72

Artigos Científicos
CAETANO-FILHO, S. et al. A large epeiric methanogenic Bambuí sea in the core of Gondwana supercontinent? Geoscience Frontiers (no prelo).
CUI, H. et al. Global or regional? Constraining the origins of the middle Bambuí carbon cycle anomaly in Brazil. Precambrian Research. v. 348, 105861. 15 set. 2020.
Revista FAPESP

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Geografia da Fome


Josué de Castro e a Geografia da Fome no Brasil

Josué de Castro and The Geography of Hunger in Brazil

Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos

Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil 

RESUMO

O objetivo deste artigo é realizar uma releitura do clássico Geografia da Fome, publicado pela primeira vez em 1946. Realiza-se uma síntese dos mapas das cinco áreas alimentares e das principais carências nutricionais existentes no Brasil, de acordo com o delineamento realizado por Josué de Castro. Nos dias atuais, ao perfil epidemiológico nutricional desenhado por Josué de Castro, caracterizado pelas carências nutricionais (desnutrição, hipovitaminoses, bócio endêmico, anemia ferropriva etc.), sobrepuseram-se as doenças crônicas não-transmissíveis (obesidade, diabetes, dislipidemias etc.). Entretanto, a questão da complexa e paradoxal problemática da fome permanece como uma temática recorrente no Brasil. Diante de alguns dilemas da atualidade, tais como aqueles que dizem respeito à sustentabilidade ecológica do planeta e à garantia do direito humano à alimentação, torna-se imperante reacender a luta defendida por Josué de Castro pela adoção de um modelo de desenvolvimento econômico sustentável e uma sociedade sem miséria e sem fome.

Introdução

Josué de Castro nasceu em 5 de setembro de 1908, em Recife, Pernambuco, Brasil. Filho de um agricultor do Sertão Nordestino que em 1877, em função da seca, migrou para a capital, viveu sua infância e adolescência em um bairro pobre, às margens do rio Capibaribe 1,2,3. Em 1929, após concluir o Curso de Medicina da Universidade do Brasil, retornou ao Recife para dar início a uma consagrada trajetória político-intelectual, dedicada, particularmente, à complexa e paradoxal problemática da fome e suas formas de enfrentamento 4. A sua vastíssima produção intelectual, de abrangência internacional, composta por mais de 200 títulos, tem sido objeto de estudo de distintas investigações 3,4,5,6,7,8,9.

O objetivo geral do presente artigo é realizar uma releitura do clássico Geografia da Fome, publicado pela primeira vez em 1946 10. Como objetivos específicos, em um primeiro momento, realiza-se uma síntese do mapa das cinco áreas alimentares do Brasil traçado em Geografia da Fome, procurando identificar as principais características dos seus regimes alimentares. Em um segundo momento, realiza-se uma síntese do mapa das principais carências nutricionais existentes no Brasil, de acordo com o delineamento de Josué de Castro 10.

Em Geografia da Fome, Josué de Castro introduz os conceitos de áreas alimentares, áreas de fome endêmica, áreas de fome epidêmica, áreas de subnutrição, mosaico alimentar brasileiro e, por conseqüência, traça o primeiro mapa da fome no país. Por áreas alimentares, concebe uma determinada região geográfica que dispõe de recursos típicos, dieta habitual baseada em determinados produtos regionais e com seus habitantes refletindo, em suas características biológicas e sócio-culturais, a influência marcante da dieta. Por área de fome endêmica, concebe uma determinada área geográfica em que pelo menos metade da população apresenta nítidas manifestações de carências nutricionais permanentes. Por áreas de fome epidêmica, concebe uma determinada área geográfica em que pelo menos metade da população apresenta nítidas manifestações nutricionais transitórias. Por áreas de subnutrição, concebe uma determinada área geográfica em que os desequilíbrios e as carências alimentares, sejam em suas formas discretas ou manifestas, atingem grupos reduzidos da população. E por mosaico alimentar brasileiro, concebe a diferenciação regional dos tipos de dieta existentes no país, oriundas das variadas categorias de recursos naturais (alimentos) e das distintas etnias que constituíram a nação brasileira 9.

De acordo com Castro 10, o método de investigação que norteou a elaboração da Geografia da Fome foi baseado nos princípios estabelecidos pelos geógrafos alemães Carl Ritter (1779-1859) e Alexander von Humboldt (1769-1859), pelo geógrafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-1918), entre outros. Para seu autor, o objetivo básico da Geografia da Fome consiste em "localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais que ocorrem à superfície da terra10 (pp. 34-5). Assim sendo, afirma que o propósito do seu estudo foi realizar uma sondagem de natureza ecológica sobre o fenômeno da fome no Brasil, orientado pelos princípios geográficos da localização, extensão, causalidade, correlação e unidade terrestre 10.

Por outro lado, ao introduzir o uso dos termos fome endêmica e fome epidêmica, em nota explicativa, Castro faz alusão à adoção do conceito de epidemiologia da fome, explicitando a influência que sofreu do conceito de epidemiologia admitido por Wade Hampton Frost (1880-1938) e do conceito de epidemiologia do diabetes e do câncer defendido por Wilson George Smillie (1886-1971). Sendo assim, embora explicitando sua maior identificação com o método geográfico, os aspectos biológicos, médicos e higiênicos do fenômeno da fome também são enfocados em seu ensaio ecológico.

 

O mapa das áreas alimentares do Brasil

A partir de Geografia da Fome, o país seria dividido em cinco diferentes áreas alimentares assim distribuídas: (1) Área Amazônica - à época, abrangia os estados do Amazonas e Pará, parte dos estados do Mato Grosso, Goiás e Maranhão e os territórios do Amapá e Rio Branco; (2) Nordeste Açucareiro ou Zona da Mata Nordestina - à época, correspondia a todo o litoral nordestino, do Estado da Bahia ao Ceará, compreendendo uma faixa territorial com largura média de 80km; (3) Sertão Nordestino - correspondendo, à época, às terras centrais dos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia; (4) Centro-Oeste - compreendia os estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grasso; e (5) Extremo Sul - que à época abrangia os estados da Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

O regime alimentar da Área Amazônica

De acordo com o mapa das áreas alimentares do Brasil (Figura 1), a Área Amazônica apresentava como dieta básica o consumo de farinha de mandioca, associada ao feijão, peixe e rapadura. Em relação aos fatores etno-culturais que influenciavam a constituição da dieta, Castro 10 aponta a predominância da cultura indígena sobre as culturas dos brancos portugueses e negros africanos. O alimento básico da dieta, a farinha de mandioca, era consumido em diferentes preparações sob a forma de farofas, mingaus, beijus e bebidas fermentadas, sendo misturado a outros alimentos, oriundos da flora silvestre (frutos, sementes e ervas), da fauna aquática e terrestre (peixes, crustáceos, tartarugas, tracajás, jabutis, antas, macacos e patos), além da incipiente agricultura regional. Destaca o largo consumo de pimentas e outras ervas na preparação dos pratos regionais como uma importante contribuição da cultura indígena. Em relação aos frutos regionais, é interessante notar que, já àquela época, ele apontava algumas importantes características nutricionais do buriti e açaí (ricos em betacaroteno ou vitamina A) e castanha-do-pará (proteínas completas e ácidos graxos). A conclusão do autor sobre a dieta amazônica foi que se tratava de uma alimentação pouco trabalhada e atraente e que sua análise biológica e química revelava inúmeras deficiências nutritivas 10.

O regime alimentar do Nordeste Açucareiro

No Nordeste Açucareiro a dieta básica era o consumo de farinha de mandioca, associada ao feijão, aipim e charque (Figura 1). De acordo com Castro 10, esse regime alimentar era produto da inter-relação das culturas alimentares dos indígenas da região, dos colonizadores portugueses e dos negros africanos, tendo a cultura alimentar do negro africano uma influência mais expressiva e valorizadora sobre os hábitos alimentares do que as demais.

Ele aponta a existência de distintas subáreas alimentares nessa região nordestina. Inicialmente, faz distinção entre duas subáreas alimentares: a litorânea e a da mata ou da cana-de-açúcar. Ao longo da sua abordagem aparece referência a uma subárea alimentar do sururu no Estado de Alagoas e à especificidade da cozinha baiana. Ao final, também descreve a área alimentar do cacau que, à época, se estendia do Recôncavo para o sul da Bahia até o Espírito Santo 10.

Na descrição da área litorânea destaca a riqueza de proteínas e sais minerais, oriundos dos alimentos marinhos (peixes, moluscos e crustáceos) e a participação de dois produtos vegetais de alto valor nutritivo: o coco e o caju. O coco contribuía com o aporte de gordura, proteínas e sais minerais da dieta, participando de uma infinidade de preparações típicas: feijão de coco, peixe de coco, arroz de coco, vatapá, canjica, pamonha, mungunzá, doce de coco, cocada, entre outras. O caju, por sua vez, era rico em vitaminas (em ácido ascórbico) e em proteínas de alto valor biológico contidas na castanha 10.

Vale destacar a análise apresentada sobre os tabus alimentares da região, sobretudo em relação ao consumo de frutas como manga, jaca, abacaxi, melancia, abacate, laranja, entre outras. Para Castro 10, o grande número de superstições e restrições ao consumo de certos alimentos, sem nenhum fundamento biológico, decorria da sobrevivência cultural das interdições alimentares impostas por questões econômicas pelos senhores de engenho a seus escravos e moradores. Nesse aspecto, vale lembrar que grande parte dos tabus alimentares identificados continua sua reprodução no imaginário alimentar da população brasileira 11,12,13.

O regime alimentar do Sertão Nordestino

O Sertão Nordestino tinha como dieta básica o consumo de milho, associado ao feijão, carne (gado, carneiro e cabra) e rapadura (Figura 1). De acordo com Castro 10, esse regime alimentar tinha predominância da influência cultural colonial (árabe-portuguesa), sendo o mais isento das influências das culturas dos índios e negros.

O milho foi considerado o alimento básico da dieta, sendo consumido quase que pela totalidade da população em quantidades consideradas elevadas. Constituía a base calórica da dieta, sendo usado no preparo de vários pratos típicos: cuscuz, angu, pamonha e canjica. Segundo Castro 10, seu consumo associado ao do leite resultava numa combinação nutricional muito feliz, uma vez que a proteína caseína do leite completava as deficiências em aminoácidos da proteína zeína do milho.

O leite e seus derivados como coalhada fresca ou escorrida, queijo e manteiga eram consumidos em abundância, constituindo alimentos integrantes da dieta do sertanejo nordestino. Para completar o aporte de proteínas de origem animal, observava-se o consumo habitual de carne (boi, carneiro e cabra) em distintas preparações: carne com abóbora e leite; carne-de-sol; charque; paçoca, buchada, panelada etc. 10.

Completava o regime habitual do sertanejo nordestino o consumo de feijão (principalmente do tipo macassar), farinha de mandioca, batata-doce, inhame, rapadura e café. O consumo habitual de frutas e verduras era muito limitado, constituindo falha visível da alimentação do sertanejo. Sendo assim, ele identificava a ingestão limitada de frutas regionais como umbu, piqui, quibá, cajarana e quixaba. Identificava também o consumo limitado de verduras como abóbora, maxixe, e cebolinha e coentro, usados como temperos.

Castro 10 concluiu que o regime alimentar habitual da área do Sertão Nordestino apresentava-se quantitativa e qualitativamente equilibrado, atendendo sem déficits e sem excessos às necessidades nutricionais do sertanejo: "É esta mesma parcimônia calórica, sem margens a luxo, que faz do sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnes enxutas, sem arredondamentos de tecidos adiposos e sem nenhuma predisposição ao artritismo, à obesidade e ao diabetes, doenças essas provocadas, muitas vezes, por excesso alimentar10 (p. 207).

Entretanto, esse equilíbrio nutricional estava sujeito às rupturas cíclicas dos períodos de seca, quando se desorganizava completamente a economia regional e instalava-se a fome epidêmica. Nesse sentido, Castro 10 relata que nos períodos de seca o sertanejo passava imediatamente para um regime de subalimentação, limitando a quantidade e a variedade de alimentos, reduzindo a sua dieta ao consumo de um pouco de milho, feijão e farinha de mandioca. Quando a seca persistia e esses recursos alimentares se esgotavam, o sertanejo lançava mão de outras estratégias de sobrevivência, passando a consumir as "iguarias bárbaras" do sertão: raízes, sementes, frutos e animais resistentes à seca. Entre as "iguarias bárbaras" ele destaca: farinha de macambira, xique-xique, pereira brava, macaúba e mucunã, palmito de carnaúba, raízes de umbuzeiro, pau-pedra, serrote e maniçoba, sementes de fava-brava, manjerioba, beijus de catolé, gravatá e macambira.

Em relação ao consumo desses alimentos exóticos Castro 10 (p. 220-1) conclui: "Quando o sertanejo lança mão destes alimentos exóticos é que o martírio da seca já vai longe e que sua miséria já atingiu os limites de sua resistência orgânica. É a última etapa de sua permanência na terra desolada, antes de se fazer retirante e descer aos magotes, em busca de outras terras menos castigadas pela inclemência do clima".

O regime alimentar do Centro-Oeste

No Centro-Oeste a dieta básica era o consumo de milho, associado ao feijão, carne e toucinho (Figura 1). O prato típico foi identificado como o "tutu de feijão mineiro", preparado à base de farinha de milho, feijão, gordura, toucinho e lombo de porco. Esse foi considerado por Castro como de "alto valor calórico", mas qualitativamente de valor nutritivo inferior ao do "angu ou do cuscuz de milho com leite" da área do Sertão Nordestino, principalmente por seu teor mais baixo em cálcio e vitaminas. Entretanto, salienta que a dieta básica da região ganhava valor biológico a partir do consumo associado de vegetais verdes, principalmente couve mineira, outras hortaliças e frutas, principalmente laranja, mamão, banana e abacate. Com base na análise química do regime alimentar, afirma que não havia deficiência calórica na região, pelo contrário, deveria haver excesso calórico. Concluiu sua análise de forma um tanto preconceituosa ao afirmar que esse padrão alimentar resultava em "maior incidência da obesidade e do diabete, e na formação do tipo biológico dos mineiros lentos e pesados, conservadores e pachorrentos10 (p. 267).

O regime alimentar do Extremo Sul

O Extremo Sul consumia basicamente o arroz, pão, batata e carne (Figura 1). À época, por constituir a área mais rica e de maior desenvolvimento, tanto agrícola como industrial, também foi considerada a região de maior variedade alimentar, de mais alto consumo de verduras e frutas e, portanto, de mais elevado padrão alimentar. Além dos fatores econômicos e geográficos (clima, solo, pluviosidade etc.), Castro 10 ressalta os determinantes etno-culturais que possibilitavam diversificação e melhoria do padrão alimentar da região. Assim, as distintas etnias que migraram para a região, compostas por italianos, japoneses, alemães, poloneses, lituanos, entre outros, em muito contribuíram para a constituição do seu diversificado mosaico alimentar. Ele destaca a presença de distintas subáreas alimentares nessa região: (1) Subárea de influência italiana, caracterizada pelo largo consumo de trigo sob a forma de macarrão, ravioli e spaghetti; (2) Subárea localizada no Rio Grande do Sul, caracterizada pelo complexo alimentar do churrasco e do mate-chimarrão; (3) Subárea de influência japonesa, localizada em torno da capital de São Paulo e outros centros urbanos, caracterizada por abundante consumo de verduras; e (4) Subárea de influência germânica, caracterizada por um consumo mais freqüente de aveia, centeio, lentilhas, hortaliças, frutas, carne de porco (salsichas, bacon, presunto, defumados), pão preto, chucrute e cerveja.

 

O mapa das carências nutricionais do Brasil

As carências nutricionais da Amazônia

A Região Amazônica, considerada uma das áreas de fome endêmica, caracterizava-se pela presença de deficiências protéicas, vitamínicas e de sais minerais (Figura 2). À época, as carências nutricionais endêmicas eram: carências protéicas, de vitamina B2 (arriboflavinose); de ferro (anemias) e de cloreto de sódio. As formas frustas ou subclínicas eram: carências protéicas; de vitaminas A, B1 e niacina (pelagra) e de cálcio (sem manifestação de raquitismo). A carência de vitamina B1 (beribéri) aparecia em forma típica epidêmica. Em relação ao beribéri, vale ressaltar que ele destaca o período de 1870 a 1910, conhecido como ciclo econômico da borracha amazônica, como uma fase epidêmica desta carência nutricional na região. Ressalta-se ainda a interessante análise que ele faz sobre a associação entre a insuficiência alimentar quantitativa, caracterizada por um baixo consumo calórico, a adaptação orgânica forçada a partir desta situação permanente e a apregoada preguiça dos povos dessa região equatorial. Para Castro 10 (p. 76), "a preguiça dos povos equatoriais é um meio de defesa ou sobrevivência, funcionando como um sinal de alarme numa caldeira que diminui a intensidade de suas combustões, quando lhe falta o combustível".

As carências nutricionais do Nordeste Açucareiro

O Nordeste Açucareiro, considerado uma área de fome endêmica, apresentava como manifestações diretas da deficiência do regime alimentar: carências calóricas, protéicas, de vitaminas e minerais. As formas endêmicas das carências nutricionais identificadas foram: carências protéicas, de vitaminas A, B1 e B2 e dos minerais ferro e cloreto de sódio. As manifestações subclínicas identificadas foram: carências protéicas; de vitaminas B1, C (escorbuto) e niacina e do mineral cálcio (Figura 210.

Castro destaca que em conseqüência da deficiência calórica da dieta, decorria a reduzida capacidade de trabalho do nordestino da Zona da Mata, em relação aos trabalhadores mais bem alimentados de outras regiões do país. Chama a atenção para uma possível associação entre a deficiência permanente de proteínas da dieta e os índices de baixa estatura dos habitantes do brejo nordestino, os trabalhadores dos engenhos e usinas de açúcar. Como confronto, também chama a atenção para uma possível associação entre a dieta rica em proteínas e sais minerais e os índices de estatura elevada dos habitantes do litoral, as populações costeiras de pescadores.

Ao descrever o mapa das carências de vitaminas A, B1, B2, C e niacina, relativiza a magnitude e a gravidade do quadro, ressaltando que estas carências não eram tão abundantes como deveria se esperar. Como exceção, destaca a carência de vitamina B2 (arriboflavinose), afirmando ser esta abundante e generalizada entre crianças pobres das áreas rurais e urbanas da região. É interessante notar que ele aponta como explicação a possível influência de fatores protetores ou preventivos presentes na dieta regional, tais como condimentos e ingredientes especiais usados, sobretudo na cozinha baiana: o azeite-de-dendê (fonte de beta-caroteno ou provitamina A) e as variadas espécies de pimenta (fontes de ácido ascórbico) 10.

Em relação às carências minerais, aponta a deficiência de ferro (anemia alimentar) como a manifestação endêmica mais generalizada, a qual seria responsável pelo estereótipo de palidez, apatia e depressão física do habitante do brejo - o Jeca-Tatu Nordestino. Entretanto, apenas um estudo sobre a prevalência de anemia ferropriva é referido, segundo o qual 40% dos escolares da cidade de Salvador (Bahia) apresentavam baixas taxas de hemoglobina 10.

Ressalta-se ainda a importante análise realizada a respeito das conseqüências do consumo alimentar excessivo ou desequilibrado verificado entre os habitantes mais abastados, os senhores de engenhos e suas famílias. De acordo com Castro 10, a dieta com excesso de carboidratos, sobretudo, com excesso de açúcar e falta de frutas, apresentava como conseqüência a grande incidência de diabetes e avitaminoses B em certas famílias de senhores de engenhos. Nesse aspecto, faz uso de uma brilhante metáfora: "O açúcar em excesso de sua dieta desequilibrando as trocas metabólicas, como a cana desequilibrou de maneira tão nociva o metabolismo econômico da região. É como se a terra se vingasse do homem, fazendo-o sofrer de uma doença semelhante à sua - o organismo todo saturado de açúcar10 (pp. 155-6).

As carências nutricionais do Sertão Nordestino

De acordo com Castro 10, a área do Sertão do Nordeste caracterizava-se pela atuação de um tipo de fome diferente, aquela que se apresentava em surtos epidêmicos ou agudos nos períodos de seca ou estiagem. Eram epidemias de fome global quantitativa e qualitativa que afetavam de forma bastante violenta e sem discriminação todos os habitantes da região. Apresentava como formas endêmicas: carências protéicas, de vitaminas A, B1, B2, C e niacina e dos minerais cálcio, ferro e cloreto de sódio. A carência de iodo (bócio) apresentava-se em sua forma subclínica (Figura 2).

As carências nutricionais do Centro-Oeste

A área do Centro-Oeste foi considerada como uma "área de subnutrição, de desequilíbrio e de carências parciais, restritas a determinados grupos ou classes sociais10 (p. 265). A única forma endêmica descrita foi a carência de iodo (bócio endêmico). As carências de proteínas, de vitamina B1, de ferro e de cloreto de sódio foram identificadas como formas típicas esporádicas. As carências de vitaminas A, B1, B2, C e niacina e de cálcio foram identificadas em suas formas frustas (Figura 210.

Em relação ao bócio endêmico, relata que esta deficiência nutricional grassava no país desde os tempos coloniais, apresentando maior incidência nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Goiás e Mato Grosso. De acordo com Castro 10, à época, estudos realizados com escolares de Minas Gerais e São Paulo verificaram incidências de 44% e 60% de bócio endêmico, respectivamente.

As carências nutricionais do Extremo Sul

O Extremo Sul também foi considerado uma área de deficiências alimentares discretas e menos generalizadas, apresentando "carências parciais, restritas a determinados grupos ou classes sociais10 (p. 265) Era a região que tinha o melhor perfil epidemiológico nutricional. As carências de vitaminas A, B2, C e niacina, de cálcio e de ferro apareciam em suas formas subclínicas. A carência de vitamina D (raquitismo) aparecia sob forma típica esporádica. A carência de iodo manifestava-se de forma endêmica (Figura 2). Entretanto, ao concluir sua análise ele faz um alerta sobre o aumento da incidência da carência de proteínas, que se manifestava em quadros típicos de kwashiorkor, entre crianças das classes pobres e proletárias dos grandes centros urbanos da região, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo 10.

 

Considerações finais

A releitura de Geografia da Fome evidencia quão viva, polêmica e sedutora permanece esta obra sexagenária. Nos dias atuais, ao perfil epidemiológico nutricional traçado por Josué de Castro, caracterizado pelas carências nutricionais (desnutrição, hipovitaminoses, bócio endêmico, anemia ferropriva etc.), sobrepuseram-se as doenças crônicas não-transmissíveis (obesidade, diabetes, dislipidemias etc.). Nesse aspecto, tanto o mapa das cinco áreas alimentares como o das principais carências nutricionais existentes no Brasil traçados em Geografia da Fome precisam ser redesenhados em função deste novo perfil epidemiológico nutricional brasileiro. Tarefa imprescindível, mas que ainda está por vir. A questão da complexa e paradoxal problemática da fome, entretanto, permanece como uma temática recorrente no Brasil. Portanto, diante de alguns dilemas da atualidade, tais como aqueles que dizem respeito à sustentabilidade ecológica do planeta e à garantia do direito humano à alimentação, torna-se imperante reacender a luta defendida por Josué de Castro pela adoção de um modelo de desenvolvimento econômico sustentável e uma sociedade sem miséria e sem fome.

 

Referências

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