O tanque para criação de peixes é o coração do sistema. Os resíduos ricos em nutrientes produzidos pela piscicultura são reaproveitados pelos demais módulos de produção animal e vegetal
Frances Jones
Entrevista: Luiz Carlos Guilherme
Um tanque para a criação de peixes está no centro de um premiado sistema de produção de alimentos que vem sendo adotado por milhares de famílias, principalmente da região Nordeste, para evitar a fome. Proposta pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a tecnologia utiliza a água e os subprodutos de um modelo de piscicultura intensiva em pequenos espaços para organizar módulos que garantam a segurança alimentar em comunidades rurais – e até mesmo em áreas urbanas.
“O Sisteminha é, antes de tudo, uma ferramenta de combate à fome”, declara o zootecnista Luiz Carlos Guilherme, pesquisador da Embrapa Meio-Norte, no Piauí, referindo-se ao Sistema Integrado de Produção de Alimentos, lançado em 2012. “O objetivo principal é tirar as famílias da linha da pobreza, permitindo que tenham um aumento de até 300% na diversidade de alimentos para consumo próprio”, afirma (ver reportagem sobre segurança alimentar). “O excedente e a sua comercialização podem vir como consequência.”
Entrevista: Luiz Carlos Guilherme
Responsável pelo desenvolvimento do modelo, Luiz Guilherme calcula que 4,5 mil famílias em 11 estados brasileiros (Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, São Paulo e Tocantins), além de sete países da África (Angola, Camarões, Etiópia, Gana, Moçambique, Tanzânia e Uganda), adotem o pacote de tecnologia modular que é apropriado para áreas entre 100 e 1,5 mil metros quadrados (m2). São 15 os módulos propostos (ver infográfico) que podem ser utilizados pelas famílias segundo seu interesse.
O pacote básico inicial indicado é composto por cinco módulos: tanque de peixes, galinhas de postura, compostagem, produção de minhocas e horticultura. Há ainda a possibilidade de criação de animais. Todos aproveitam de alguma forma os resíduos ricos em nutrientes produzidos pela piscicultura. A ração industrial usada para alimentar os peixes acaba deixando disponível no tanque nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio e magnésio – aproveitados depois para a irrigação e adubação das plantas.
É no tanque circular de 4,4 m de diâmetro e 70 centímetros de profundidade, com capacidade para 10 mil litros de água, que as famílias devem dedicar maior atenção e investimento no início, segundo o pesquisador da Embrapa, que desenvolveu a solução durante doutorado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, detentora da patente.
No sertão nordestino, que sofre com a escassez hídrica, o pesquisador explica que a água para o tanque de peixes pode ser adquirida de caminhões-pipa, comuns na região. O pacote indica soluções relativamente baratas para a construção de um filtro biológico para aproveitamento da água, de uma bomba de recirculação e de aeração do tanque e de um sedimentador, que separa os resíduos sólidos do líquido.
“Primeiro, eu fiz o tanque mais artesanal e barato possível, usando talos da palmeira de babaçu, papelão e lona plástica”, contou a Pesquisa FAPESP o professor e radialista aposentado Paulo Afonso Silva Santos, conhecido na cidade piauiense de Esperantina como Paulo Brasil. Isso foi em 2013, quando ele conheceu o projeto. De lá para cá, em todas as casas em que morou de aluguel construiu um tanque de peixes, dentro do modelo do Sisteminha, e implantou os módulos de galinha de postura, cabra, composteira e horta.
“Sempre tivemos em torno de 2 litros de leite por dia”, afirma Brasil, que mora com a esposa e três filhos, de 6, 10 e 17 anos. “E isso com uma cabra só.” Com em média 20 galinhas, ele diz produzir por ano 5.500 ovos, além de obter a cada 100 dias entre 30 e 40 quilos de tilápia. “Como tenho limitação física, por ter contraído pólio, e uso muletas para andar, acabei melhorando o processo e adaptando para o mínimo trabalho e menor esforço.” O excedente de ovos e leite de cabra é vendido aos amigos.
Referência alimentar
Dimensionado para atender as recomendações nutricionais de uma família de quatro pessoas, o pacote de soluções tecnológicas do Sisteminha foi adotado em cidades, assentamentos rurais e comunidades quilombolas e indígenas como política pública. Desde março de 2018, a técnica de enfermagem Cláudia Leal e a filha Alba, técnica de informática, atuam como replicadoras da tecnologia na comunidade rural de Inajá, no sertão pernambucano, onde 13 unidades foram implementadas em sete comunidades.
“Cada família tem entre cinco e oito pessoas, mas indiretamente acabamos atendendo um número bem maior, porque a comunidade quer conhecer o Sisteminha”, relata Cláudia. “Por conta da pandemia, também houve muita procura para compra de verduras e legumes.”
“É interessante ressaltar que as unidades cujos trabalhos se destacam são tocadas apenas por mulheres”, comenta Alba Leal. “Elas dão conta sozinhas. Os homens só ajudam de vez em quando, pois geralmente estão fora fazendo outros trabalhos.”
De acordo com Luiz Guilherme, quando o Sisteminha é adotado como política pública, o investimento feito pelo Estado é de aproximadamente R$ 15 mil por família. Um terço desse valor é para custear as instalações necessárias como o tanque de peixes e outras estruturas; os dois terços restantes são divididos igualmente para o custeio no primeiro ano de rações e insumos e de assistência técnica, monitoramento e viagens.
“Os valores são dados pelo órgão público que fornece a tecnologia à família apenas uma única vez. A partir dos seis ou sete meses, ela já começa a ter autonomia na produção de alimentos e se encarrega da ração dos animais”, explica Guilherme. Segundo ele, a Embrapa transfere a tecnologia e passa todas as informações no início do programa para os produtores ou gestores da política pública. “Depois do primeiro ano, usamos muito a figura do multiplicador popular, pessoas que implantaram o sistema e têm bom domínio dele, para apoiar os participantes.”
A bióloga Adriana Miranda de Santana Arauco, professora de microbiologia do solo do curso de agronomia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), no campus de Bom Jesus, no sul do estado, já manifestou interesse em levar a tecnologia social para a região. “Quando há um bom manejo da terra, cultivando hortaliças, vegetais e outras culturas no mesmo espaço, é possível respeitar o ciclo biológico do solo”, afirma. “É uma forma de produzir sem agredir tanto, bem diferente de desmatar e de ter monocultura com uso de fertilizantes.”
Entre os vários reconhecimentos recebidos pela tecnologia, está o Prêmio Celso Furtado de Desenvolvimento Regional, concedido pelo Ministério da Integração Nacional em 2017. O Sisteminha também é objeto de estudos em escolas e universidades. Uma unidade demonstrativa foi instalada na Escola Agrícola de Jundiaí (EAJ), unidade acadêmica especializada em ciências agrárias da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) localizada em Macaíba, na Região Metropolitana de Natal. Karina Ribeiro, coordenadora de extensão da EAJ/UFRN, e seus alunos também montaram uma unidade em uma escola municipal em Lagoa de Pedras, no sudeste potiguar, como trabalho de conclusão de curso de um dos alunos da instituição.
Nos últimos meses, um projeto de extensão para difundir o Sisteminha em um assentamento de reforma agrária e em uma comunidade tradicional quilombola em Macaíba precisou ser interrompido por conta da pandemia, mas Ribeiro ressalta a importância da tecnologia como ferramenta social para o desenvolvimento. “Primeiro ele estabiliza uma situação de fragilidade daquela família ou comunidade”, pondera. “O sistema permite uma produção escalonada e exige a ligação do homem com a terra. Nós apresentamos ao produtor as possibilidades, mas cabe a ele o desenvolvimento.”
Revista FAPESP
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