domingo, 10 de abril de 2022

Desaparecimento de lago expõe risco da privatização da água


Naomi Larsson


Estiagens e concessão sistemática de recursos hídricos a terceiros levam à extinção de lagos e agricultores ao desespero no Chile. Novo governo e Constituição são esperança para reverter esse cenário.



https://www.dw.com/pt-br/desaparecimento-de-lago-exp%C3%B5e-risco-da-privatiza%C3%A7%C3%A3o-da-%C3%A1gua/a-61084094

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Segundo uma antiga lenda, no fundo do lago de Aculeo, no centro do Chile, haveria uma grande riqueza de ouro dos incas. Os moradores das proximidades dizem que até se podia ver o ouro brilhando nas águas cristalinas da lagoa, que é cercada por colinas exuberantes e pela Cordilheira dos Andes.

Mas a lagoa, que já foi um dos maiores lençóis naturais do Chile, agora está completamente seca, sem sinais de vida. Isso revelou que ali nunca houve algum tesouro escondido. No entanto, os habitantes locais se deram conta da verdadeira riqueza da água.

"Ouvia pássaros cantando o dia inteiro porque a flora e a fauna da lagoa eram espetaculares. Era possível ver os peixes nadando, de tão clara que era a água", conta Viola Gonzalez Vera, que mora em Aculeo, a 70 quilômetros da capital, Santiago, há 30 anos.

O leito do lago agora está ressequido e rachado, desfigurado pelas frequentes secas. As antigas margens marcam onde o lago costumava estar, como fantasmas deixados para trás para lembrar aos habitantes locais o que este lugar foi um dia.
Em 2011, o lago de Aculeo ainda era atração turística para esportes aquáticosFoto: Martin Bernetti/AFP/Getty Images

O Chile enfrenta uma enorme estiagem nesta última década, com as regiões centrais recebendo 30% menos chuva do que o normal. Durante anos, acreditou-se que a mudança climática estava por trás do desaparecimento da laguna de Aculeo, que existiu por mais de 3 mil anos. Porém, no início deste ano, pesquisadores de hidrologia e gestão da água descobriram que o principal culpado foi a exploração excessiva da região.
Lagoa extinta e fim dos meios de subsistência

O estudo publicado na revista Sustainability em janeiro deste ano apontou que, embora tenha havido uma influência da quantidade de chuvas abaixo da média na última década, há "provas indiscutíveis" de que a laguna desapareceu graças à atividade humana, principalmente através do desvio dos rios e do bombeamento das águas subterrâneas dos aquíferos que a abasteciam.

Mesmo após quatro períodos de estiagem com poucas chuvas no século 20, a lagoa nunca chegou perto de secar, de acordo com o estudo. "Mas ao longo dos anos 90 as indústrias agrícolas começaram a desviar esses rios quando o Estado começou a ceder 100% dos direitos de água de um rio, e depois outro, depois outro", disse Pablo Garcia-Chevesich, professor chileno da Escola de Minas do Colorado e da Universidade do Arizona, e coautor do relatório.

Em 2010, o rio Pintue − um importante afluente − foi completamente desviado. Grandes fazendas produtoras de cerejas e abacates também cavaram poços profundos e bombearam água diretamente da lagoa. Como resultado, "não importava mais o quanto chovia; pela primeira vez a lagoa não pôde suportar uma seca", explicou Garcia-Chevesich, que também é membro do Programa Hidológico Intergovernamental da Unesco.

Quando a lagoa secou e a vida ao redor desapareceu, o mesmo aconteceu com os turistas. Ao mesmo tempo, os pequenos agricultores das redondezas viram suas colheitas encolherem e os animais morrerem.

Água potável está cada vez mais escassa no mundo



02:51


Ao longo dos anos, alguns na comunidade perderam o acesso à água potável, quando surgiram novas casas de verão com gramados e piscinas abastecidas com essa água. Mas nada se compara à exploração que ocorreu quando os produtores de abacate e cereja se mudaram para a região, dizem os moradores locais.

"Já vi pessoas chorando na rua porque não tinham água para escovar os dentes", conta Gonzalez Vera, que tem um tanque em seu quintal − a poucos metros de onde esteve o lago um dia – que é abastecido por um caminhão pipa que traz água ao vilarejo.

Garcia-Chevesich culpa o Estado pela perda da lagoa e pelo impacto resultante na população local. "É a concessão fora de controle dos direitos da água sem nenhum estudo ou avaliação que inclua mudanças climáticas ou danos sociais ou ecológicos". Esse problema ocorre em todo o país.
Quando a água é uma mercadoria e não um direito humano

A Constituição do Chile, escrita durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, considera a água uma propriedade privada, tornando-a um bem econômico. O Código da Água de 1981 também permite ao governo conceder gratuitamente direitos permanentes e transferíveis sobre a água a terceiros.

Essa legislação criou um mercado para a água e dificultou a administração do abastecimento hídrico. Na Aculeo, por exemplo, não foram realizadas auditorias para administrar os níveis de consumo antes que o Estado entregasse os direitos sobre a água. "O problema da água no Chile é muito profundo. Ela é vista como mais um recurso a ser explorado", disse Estefania Gonzalez, coordenadora de campanhas do Greenpeace Chile.

Mais de 1 milhão de chilenos não têm acesso à água potável, enquanto algumas partes do Chile enfrentam secas mais frequentes e prolongadas devido à mudança climática. Apesar deste cenário, a água tem sido explorada em excesso por décadas. Indústrias extrativas sedentas, como a mineração de lítio e cobre, impulsionam a economia do país. Quase 80% da água doce é destinada à agricultura, especialmente para a produção de abacate, na qual cada fruta consome cerca de 70 litros de água.

A situação ficou tão ruim em Petorca, uma cidade da região chilena de Valparaíso cercada pela produção de abacate, que o governo declarou uma "emergência hídrica", permitindo a cada residente o uso de apenas 50 litros por dia.
Nova visão verde para o futuro

Atualmente, 155 delegados eleitos por representantes de toda a sociedade civil − majoritariamente independentes e de esquerda − estão reformulando a Constituição da era ditatorial do país. Uma nova carta magna foi a exigência central dos violentos protestos em todo o país contra a profunda desigualdade social que ocorreram em 2019.

É uma oportunidade rara para um país criar uma nova visão para o futuro, na qual o meio ambiente tenha prioridade máxima. Por exemplo, 81 dos membros da assembleia constituinte apoiaram uma campanha do Greenpeace para proteger os direitos da água e os ecossistemas no novo documento.
Violentos protestos no Chile em 2019Foto: Claudio Abarca Sandoval/NurPhoto/picture alliance

"Poremos um fim ao armazenamento de água, restringiremos a apropriação de terras e o estoque de água para acabar com a criação destas paisagens de vales secos", disse à DW Carolina Vilches Fuenzalida, membro da assembleia.

A ativista ambiental e outros delegados dizem que uma de suas prioridades é criar um estatuto para mudar a natureza legal da água, garantindo acesso seguro e saneamento para toda a população chilena. As propostas serão debatidas durante os próximos meses e cada projeto de lei precisará de uma maioria de dois terços para chegar ao documento final, antes de ir a um referendo público no final deste ano.

Durante a campanha eleitoral, o novo presidente do Chile, o esquerdistaGabriel Boric, prometeu impulsionar a mudança ambiental e apoiar a mudança constitucional

"O país inteiro está esperando por isso. Se ele não fizer nada [sobre as questões da água] estamos falando de enormes consequências sociais, com até uma nova onda de protestos", avalia Garcia-Chevesich, se referindo aomovimento de 2019.



Alguns dos recursos mais escassos no mundo

Embora pareçam intermináveis, reservas de elementos essenciais como água, carvão e areia estão ameaçadas. Uso excessivo, má distribuição e fatores climáticos tornam recursos naturais cada vez mais valiosos.Foto: AFP/S. Qayyum




Qual é o tamanho da sua pegada hídrica


Natalie Müller | Neil King

Água é um recurso precioso, que precisa ser preservado. Fechar a torneira enquanto se escova os dentes já ajuda. Porém até 30 vezes mais abundante é a água "virtual", oculta em tudo que se come, veste ou usa.

Quanta água é necessária para fazer uma xícara de café? Uma pista: muito mais do que uma xícara só. A Water Footprint Network, uma plataforma que advoga o uso sustentável desse recurso, calcula que, para produzir essa quantidade de bebida, são necessários 132 litros de água.

A estimativa leva em consideração toda a cadeia de produção, desde a irrigação do cafeeiro, processamento dos grãos e embalagem até o transporte ao supermercado. É o que se denomina água "oculta" ou "virtual": ela não é vista, mas desempenha um papel central em quase tudo o que se consome, incluindo energia, alimentos, roupas, telefones celulares, automóveis e café.

"Tudo precisa de água para ser produzido", explica à DW Ertug Ercin, pesquisador-chefe da Water Footprint Network. "Uma quantidade significativa é usada para produtos alimentares e bebidas, em particular. E essa, na verdade, é a sua pegada hídrica, a quantidade de água exigida pelos seus padrões de consumo."

No fim das contas, a água que sai das torneiras de casa – o consumo direto – só constitui uma parcela mínima da pegada hídrica pessoal, em comparação com a água "indireta" ou virtual.
Demanda crescente e estresse hídrico

A água doce é um recurso finito: dos 1,386 bilhão de quilômetros cúbicos de recursos líquidos estimados na Terra, apenas 3% é água doce, e cerca de 1% é disponível, estando o restante estocado em geleiras e calotas de gelo.

Essa reserva de água doce sofre pressão crescente da mudança climática e das necessidades de uma população humana global em expansão. O aumento da demanda hídrica agrária, industrial e residencial já desperta temores de escassez em algumas partes do mundo.

De acordo com a Organização das Nações Unidas, cerca de 2 bilhões de seres humanos não têm acesso a água potável segura, enquanto 2,3 bilhões vivem em países sob estresse hídrico – ou escassez hídrica física.

"Estamos numa crise. Isso é alarmante", afirma Ercin. "Ao mesmo tempo, os padrões de disponibilidade estão mudando: não vamos encontrar água onde mais precisamos dela, nem quando mais precisarmos." Portanto, só será possível evitar secas severas ou áreas sob estresse hídrico se a água for usada com mais cuidado e eficiência. O que leva de volta às pegadas hídricas.
Pegadas hídricas desiguais

As pegadas hídricas dos diversos países variam significativamente, dependendo de suas atividades industriais e agrárias, e dos padrões de consumo da população.

Existe água no espaço e dá para usá-la?



02:40


Nos Estados Unidos, por exemplo, ela é de 7.800 litros diários por indivíduo – o dobro da média global. O consumo direto doméstico é 3,5% desse volume, ou 270 litros por dia.

Na Alemanha, esse consumo direto pessoal é de 125 litros, mas chega-se a 3.900 litros se levar-se em consideração a água virtual. Na Índia, a pegada total é de 3 mil litros diários, na China, 2.934 litros.

Na Índia, por exemplo, a dieta se baseia menos em carne, enquanto "nos EUA, há um grande setor de carne, um grande setor de consumo, o poder aquisitivo é grande", observa Ercin, ressalvando que o consumo global pode subir drasticamente, caso chineses e indianos passem a consumir na mesma proporção que europeus e americanos.
15.400 litros para um quilo de carne, 12.760 para um smartphone

A agricultura é responsável por mais de 70% do consumo global de água. Produtos como vestuário e alimentos, oriundos da lavoura ou de animais que se alimentam de plantas cultivadas, necessitam muita água.

Derivados de carne e frutos secos contam entre os maiores "bebedores". A Water Footprint Network estima que sejam necessários mais de 15.400 litros para produzir um quilo de carne bovina, por exemplo; enquanto para um quilo de frutos secos são 9.063 litros. Legumes e verduras aparecem no outro extremo da escala, com 322 litros por quilo.

Plantações de algodão igualmente precisam de muita irrigação: um relatório de 2015 da companhia Trucost, que monitora recursos não sustentáveis, estipulava que uma camiseta de malha envolve 3.900 litros d'água; enquanto a Water Footprint Network calculava 8 mil litros para uma calça jeans, considerando a irrigação das safras, conversão em tecido e confecção final.

Além disso, quase 20% do gasto global de água serve a fins industriais. Para fabricar um smartphone, por exemplo, são precisos 12.760 litros – o equivalente a 160 banhos. Muita água vai para a produção e montagem de componentes, em grande parte a fim de diluir poluentes liberados durante o processo de manufatura.
Caso países como Índia adotem padrões de consumo ocidentais, consumo hídrico global crescerá drasticamenteFoto: Rajesh Kumar Singh/AP Photo/picture alliance
Como reduzir a pegada pessoal?

Apesar de o volume d'água usado individualmente seja ínfimo, comparado com o que vai para a indústria e agricultura, os consumidores têm algumas alternativas para reduzir suas pegadas hídricas.

Segundo Ertug Ercin, uma vez que a água está envolvida em todo processo de fabricação, a meta global deveria ser consumir menos, em geral. Isso inclui usar menos energia em casa, comprar produtos de segunda mão sempre que possível, reciclar, evitar desperdício de alimentos: "Toda comida que se desperdiça implica desperdiçar água indiretamente", frisa.

Susanne Schmeier, professora associada de direito e diplomacia hídrica do IHE Delft Institute for Water Education, acredita que estar ciente da pegada hídrica da comida que se compra já faz uma diferença: os 132 litros de água por trás de cada xícara de café "são definitivamente algo a considerar, e com que se pode fazer um impacto ainda maior na Europa do que fechando a torneira enquanto se escovam os dentes".

Beber menos café ou mudar para chá – que exige apenas 27 litros de água por xícara – é uma opção. Outra seria comer mais vegetais, em vez dos derivados de carne, cuja produção envolve muita água.
Selos de pegada hídrica e conexões tortuosas

Tem havido apelos para que as companhias adotem selos de pegada hídrica, semelhantes aos dados nutricionais dos itens alimentícios, a fim de aumentar a consciência pública sobre a água por trás de seus produtos, mas até agora não se chegou a um acordo.

"Acho que definitivamente faz sentido", opina Schmeier. "A rotulagem é certamente um passo adiante para tornar mais consciente o consumidor aqui na Europa e nos EUA, e também mais apto a fazer suas próprias escolhas."

No entanto, ressalva, a conexão da água com o comércio global e com os produtos que se compram é complicada, pois há outros fatores a se levar em conta quando se trata de bens envolvendo alto consumo d'água importados de outros países.

"Nós, na Europa, e também nos EUA, consumimos muita comida, assim como outros produtos, empregando recursos cultivados em outros países, inclusive regiões que sofrem escassez de água."

"Do ponto de vista hídrico, talvez não devêssemos estar mais consumindo uvas da África do Sul. Por outro lado, elas são um setor econômico importante para o país, desesperadamente necessário, por exemplo, para promover os serviços de educação e saúde. Então acho que temos que ver os dois lados da moeda."



Alguns dos recursos mais escassos no mundo

Embora pareçam intermináveis, reservas de elementos essenciais como água, carvão e areia estão ameaçadas. Uso excessivo, má distribuição e fatores climáticos tornam recursos naturais cada vez mais valiosos.Foto: AFP/S. Qayyum


Água, a fonte da vida



Em algumas partes do mundo, o acesso à água doce é considerado rotina, mas na verdade é um luxo. A água doce representa apenas 2,5% do volume total de água no mundo e mais da metade disso é gelo. A agricultura é responsável por 70% da água consumida no mundo. Até 2050, prevê-se que dois terços da população mundial sofram com escassez de água, o que afetará todos os aspectos da vida das pessoas.Foto: picture-alliance/Zumapress


Solo, o novo ouro



A disputa pela terra está aumentando mundo afora. À medida que a população mundial cresce, a terra disponível não aumenta. Pelo contrário, está cada vez mais degradada. Eventos climáticos extremos devido ao aquecimento global agravam estes problemas. Países muito populosos ou nações com pouca área para agricultura, como China e Arábia Saudita, já buscam terras na África. O solo é o novo ouro.Foto: Imago/Blickwinkel


Petróleo, ouro negro



A reserva de combustíveis fósseis no planeta é limitada, e, se eles se esgotarem, não poderão ser repostos. Se continuarmos com a atual taxa de consumo, isso levará ao esgotamento. Esse cenário seria um grande desafio para países como o Iraque e a Líbia, que têm grandes reservas de petróleo e gás natural.Foto: picture-alliance/dpaH. Oeyvind


Carvão, hora de repensar seu uso



O mesmo se aplica ao carvão. Mesmo que países como a Alemanha estejam relutantes em abandonar esta fonte de energia poluente, as reservas estão acabando. Na Polônia, as reservas de linhito das minas em funcionamento deverão esgotar-se até 2030. A hulha pode durar um pouco mais, mas não muito, dizem os especialistas. Por isso, é preciso criar alternativas ao carvão.Foto: picture alliance/PAP/A. Grygiel


Areia, recurso infinito?



Ao vermos um deserto, a areia parece infinita, mas sua produção natural é um processo bastante lento. É um recurso renovável, mas que está sendo usado em um ritmo tão rápido - na construção, por exemplo - que a natureza não tem tempo para a reposição. Em áreas em desenvolvimento como a África Oriental, onde a população deve duplicar até por volta de 2050, a areia pode tornar-se um recurso escasso.Foto: picture-alliance/ZB/P. Förster


Extinção de espécies



O descuido do ser humano em relação aos seres vivos está deixando várias espécies à beira da extinção. Os animais são amplamente vistos como recursos pelo ser humano, e como tal, pangolins (foto) podem ser incluídos na lista de recursos naturais escassos. Se esses recursos continuarem sendo explorados de forma insustentável, a vida humana estará em risco.Foto: picture-alliance/Zuma/I. Damanik


Qual o mais valioso dos recursos escassos?



Parece que está tudo desmoronando e que nada mais pode ser feito para evitar um futuro sombrio. No entanto, uma coisa ainda disponível é o tempo, um recurso escasso, mas extremamente valioso. Alguns dizem que a emergência climática ainda pode ser revertida se forem tomadas medidas ao longo dos próximos 12 anos. E este é um recurso que podemos explorar ao máximo. Não há tempo a perder.Foto: AFP/S. Qayyum


 
DW BRASIL

Bósnia ainda procura seu futuro, 30 anos após a guerra






Rüdiger Rossig

Separatistas seguem ameaçando a existência da Bósnia e Herzegovina. Contra eles, a pequena nação balcânica precisaria de democracia, Estado de direito, prosperidade e uma perspectiva de integração à União Europeia.

Todos os anos, em 6 de abril, os habitantes de capital bósnia comemoram o Dia da Cidade de Sarajevo. Ele marca tanto o fim da ocupação alemã, em 1945, quanto o início do sítio pelas tropas dos sérvios da Bósnia, em 1992. Dias antes, o Parlamento bósnio declarara a independência do país até então pertencente à comunista Iugoslávia.

Além disso, em 5 de abril, mais de 100 mil cidadãos haviam protestado pela paz – até que, da sede do partido nacionalista sérbio, partiram tiros contra os manifestantes. Duas mulheres foram mortas: as primeiras vítimas da guerra na Bósnia.

Alguns dias depois, as Forças Armadas, antes iugoslavas e agora controladas por nacionalistas sérbios, começaram com o cerco a Sarajevo. Ele duraria 1.425 dias e custaria 11.541 vidas. Até esse momento, a maioria dos quase 4,4 milhões de bósnios – quer os 44% de bosníacos muçulmanos, os 17% de croatas católicos, os 31% de sérvios ortodoxos ou as numerosas minorias nacionais – não acreditava que haveria uma guerra.

Eles tinham bom motivo para tal: um terço dos matrimônios no pequeno Estado do Bálcãs Ocidentais era entre nacionalidades mistas. Devido à industrialização, numerosos trabalhadores migrantes haviam ido de outras partes da Iugoslávia para lá, mas nunca houvera conflitos nas décadas anteriores.

Por outro lado, há muito havia discordância quanto ao futuro da Bósnia. Em 1º de março de 1992, 99,4% do eleitorado votara em referendo pela independência em relação à Iugoslávia. No entanto a participação fora de apenas 63,4%, já que a maioria dos sérvios-bósnios boicotara a consulta.

No fim de 1991, a maioria dos deputados bósnios já abandonara o Parlamento, para, em 9 de janeiro de 1992, fundar seu próprio para-Estado, a República Sérvia (Republika Srpska, RS).
Guerra desigual e mediadores equivocados

No princípio de abril do mesmo ano, os nacionalistas sérvios começaram com a brutal "limpeza étnica" das regiões da Bósnia controladas por suas tropas. A meta não era derrubar as elites não sérvias, mas toda oposição e sociedade civil, culminando com a união com a vizinha Sérvia. Além disso, em 1993 nacionalistas bósnio-croatas armados atacaram os bosníacos, até então seus aliados, exigindo a união com a vizinha Croácia, numa "guerra dentro da guerra" que duraria anos.

Na Bósnia, quem combatia não eram povos contra povos, mas ex-funcionários comunistas convertidos ao nacionalismo, agentes do serviço secreto e militares contra o povo, cuja maioria, segundo as pesquisas de opinião, desejava democracia, Estado de direito e prosperidade como no Oeste da Europa. Isso, contudo, teria representado o fim do domínio pelas elites da época, tendo, portanto, que ser impedido por todos os meios.

Ainda assim, os mediadores internacionais, que desde 1991 intervinham na guerra na Iugoslávia em processo de dissolução – principalmente as Nações Unidas e a Comunidade Europeia, a organização antecessora da atual União Europeia (UE) – tentaram mediar entre os agressores fortemente armados e os quase indefesos agredidos como se se tratasse de um conflito entre adversários equivalentes.

Uma consequência desse equívoco de avaliação foi o envio da levemente armada tropa da ONU Unprofor para assegurar a paz num território onde já reinava a guerra. Não só os capacetes azuis foram incapazes de implementar sequer um dos inúmeros "cessar-fogos" nos três anos e meio seguintes, como fracassaram também na "zona de proteção" das Nações Unidas, onde, em julho de 1995, sérvios armados massacraram mais de 8 mil adolescentes e homens bosníacos.
Acordo de Dayton: consenso indispensável, mas imperfeito

Só com esse genocídio e as ofensivas sérvias aos membros da Unprofor, a comunidade internacional finalmente impôs, no fim de 1995, o Acordo de Paz de Dayton, incluindo uma nova Constituição.

Segundo o pacto que levou o nome da base da Aeronáutica americana em Dayton, Ohio, a Bósnia permaneceu um Estado, mas dividido em duas "entidades", a RS e a Federação da Bósnia e Herzegovina – por sua vez subdividida em dez cantões – além de uma zona administrativa especial.

Nessa construção estatal, uma das mais complicadas do mundo, com um incompreensível caos de ministérios e competências, a manutenção da paz é supervisionada por um Alto Representante (OHR), que responde às potências-garantes de Dayton, reunidas no Conselho de Implementação da Paz (PIC; na sigla em inglês), o qual inclui, além de diversos países europeus, entre os quais a Alemanha, também os Estados Unidos e a Rússia.

Dayton provou ser um mau consenso, mas o único capaz de dar rapidamente fim à guerra que resultara em mais de 100 mil mortos e de 2 milhões de deslocados. No entanto, em vez de ficarem gratos pelo acordo, os líderes bósnio-sérvios o interpretaram como sua vitória.

Nos anos seguintes, o presidente da RS Milorad Dodik expandiu sua zona de poder cada vez mais, na direção de um Estado dentro do Estado bósnio. No entanto, nem a RS nem o restante da Bósnia evoluíram positivamente nos interesses de suas cidadãs e cidadãos.

Hoje, o país dos Bálcãs Ocidentais tem apenas 3,2 milhões de habitantes, o desemprego é alto, os salários são baixos. Numa população envelhecida, a expectativa de vida é cada vez mais baixa, muitos jovens emigram. A política segue sob o domínio de ex-comunistas nacionalistas, como Dodik ou o bósnio-croata Dragan Covic, acusado, tanto pela oposição como por ONGs como a Transparência Internacional, de corrupção, clientelismo e violações dos direitos dos cidadãos e humanos.

A Bósnia está ameaçada de um prolongamento infinito da agonia que a domina desde o fim da guerra. Para evitar isso, o PIC e o OHR precisariam ser reformulados como instituições eficazes, cujo mandato inclua uma reforma do Acordo de Dayton. Além disso o país precisa de uma perspectiva definida em relação à UE.

Isso só será possível sem a Rússia, que, ao que tudo indica, não deseja um Estado democrático funcional na Bósnia. Democracia, Estado de direito, prosperidade e integração europeia são os instrumentos mais eficazes que as democracias podem mobilizar contra o domínio das poderosas "panelas" das nações pós-comunistas, seja na Bósnia, Belarus ou Rússia.
DW Brasil

O esforço do Brasil para reduzir a pegada de carbono da pecuária



Dono do maior rebanho comercial bovino do mundo, o país recorre a tecnologias para mitigar as emissões de gases de efeito estufa associadas ao gado

Área integrada de pasto e floresta na Fazenda Canchim, da Embrapa Pecuária Sudeste, em São Carlos (SP)

Léo Ramos Chaves


Situada em Rondônia, próximo à divisa com Mato Grosso, a fazenda Corumbiara abriga em seus 16,8 mil hectares (ha) 16 mil cabeças de gado nelore, a principal raça de corte do país. Até seis anos atrás, a propriedade sofria com a baixa produtividade e adotava poucas práticas de sustentabilidade ambiental. Tinha o pasto degradado, com erosão crescente, e o rebanho bebia água em mananciais situados em suas Áreas de Preservação Permanente (APP), reservas legais de vegetação natural que não devem ser acessadas pelos animais.

A mudança veio com a adoção de um sistema produtivo que promove a integração da lavoura com a pecuária (ILP), sistematizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) nos anos 1990. O ILP preconiza a rotação entre atividades agrícolas e pecuárias em uma mesma área com o objetivo de aumentar a eficiência de uso dos recursos naturais e reduzir o impacto ambiental das atividades. A lavoura e os pastos bem manejados podem sequestrar carbono da atmosfera, compensando as emissões do gado – o rebanho bovino é um grande gerador de metano (CH4), um dos gases de efeito estufa (GEE) responsáveis pelo aquecimento global.
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O resultado não demorou a aparecer. Hoje, cada tonelada de carne produzida pelos animais de Corumbiara gera 11,5 toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e). Embora ainda considerado alto, o volume é cerca de 40% inferior à média mundial, estimada em 19,9 tCO2e – dióxido de carbono equivalente é uma medida usada para representar em forma de CO2 os gases de efeito estufa. Os dados são de um estudo pioneiro no país da organização não governamental Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), que fez a mensuração do balanço de carbono entre fornecedores do frigorífico Minerva Foods na América do Sul.

A Corumbiara tem hoje 1.850 ha dedicados ao sistema ILP, o que equivale a 22% dos 8.400 ha de área útil da propriedade destinada à agropecuária – o restante da fazenda, por lei, não pode ser explorado. Outros 1.250 ha da área útil correspondem às APP cercadas e em recuperação com plantio de vegetação nativa. O consórcio entre lavoura e pecuária funciona assim: em setembro é plantada soja, que depois de colhida é comercializada. Em fevereiro, é a vez do milho, combinado com um capim de alta digestibilidade, Brachiaria ruziziensis. O milho é colhido em maio e gradativamente usado como ração, complementando a dieta baseada no capim. A combinação sustenta os animais no período seco, de junho a agosto, quando a área de ILP é liberada para o gado.

Alexandre Affonso


Além de absorver carbono, o capim permite que a produção na área seja intensificada, com três cabeças de gado ocupando cada ha, enquanto a média em outros espaços da fazenda é de 1,5 cabeça por ha. A boa alimentação na seca acelera a engorda dos animais na área de ILP, que chegam ao peso ideal para abate em 22 meses, cerca de um ano a menos do que o padrão. Quanto menor o tempo de vida do boi, mais baixa a emissão de GEE por quilo (kg) de carne produzida.

O plantio do capim traz outros benefícios. Suas raízes e as sobras da pastagem incorporam matéria orgânica ao solo e, com isso, estocam carbono. Ao mesmo tempo, ajudam a descompactação do pisoteio do gado, promovendo melhor reciclagem dos nutrientes da terra. “O ILP é um sistema que gera produtividade e sustentabilidade”, destaca o engenheiro-agrônomo Fábio Souza, gestor da Corumbiara. “Nos próximos dois anos, vamos ampliar para 4 mil ha a área de ILP. Queremos reduzir ainda mais nosso impacto ambiental.”

O peso do metano
O sistema produtivo que associa a criação de gado com o cultivo agrícola ou com o plantio de árvores (IPF) – e, numa versão mais ampla, com lavoura e floresta (ILPF) – é uma das soluções que já vêm sendo usadas no país para tornar a pecuária mais amigável ao ambiente. O Brasil detém o maior rebanho comercial bovino do mundo, de 218 milhões de animais, à frente da China e dos Estados Unidos. Em 2020, liderou o ranking de exportação de carne, com 2,2 milhões de toneladas (t), 14% do mercado global.

Importante fonte de divisas, a pecuária está na mira do movimento ambientalista em razão dos elevados volumes de GEE, principalmente CH4, que lança no ar. Fruto do processo digestivo dos ruminantes, conhecido como fermentação entérica, o metano é gerado no rúmen, um dos quatro compartimentos do estômago dos bovinos, e liberado majoritariamente por meio do arroto ou eructação (ver infográfico acima). Seu potencial para elevar a temperatura global num curto espaço de tempo, como 20 anos, é 80 vezes superior ao do CO2 – no horizonte de 100 anos, é 28 vezes maior. O desmatamento da floresta amazônica, para extração e venda de madeira de modo a abrir espaço para pastagens e lavouras, também colabora indiretamente para as emissões de carbono pelo setor agropecuário. Outro gás gerado pela criação de gado é o óxido nitroso (N2O), resultado da deposição de dejetos animais nas pastagens. A aplicação de fertilizantes nitrogenados em lavouras para corrigir a acidez do solo também libera o gás.

As emissões antrópicas (causadas pela ação humana) de GEE no país somaram 1.467 teragramas (Tg) de CO2e em 2016 – uma Tg equivale a 1 milhão de toneladas. O dado consta do relatório “Quarta Comunicação Nacional do Brasil à UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima]”, divulgado pelo governo brasileiro em 2020. A agropecuária é o setor que mais emite GEE, com 33% do total, sendo que o subsetor fermentação entérica, que contabiliza o metano liberado por ruminantes (bovinos, búfalos, caprinos e ovinos), representou 19% do total. A bovinocultura, sozinha, foi responsável por 97% das emissões da pecuária. Contas feitas, o arroto do gado foi a causa de 18,5% dos GEE gerados no país (ver infográfico abaixo).
Alexandre Affonso

No ano passado, durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP26, realizada em Glasgow, na Escócia, o Brasil aderiu, com cerca de 100 países, ao Compromisso Global sobre o Metano. Essas nações concordaram em reduzir em 30% as emissões do gás até 2030, tendo como base o ano de 2020. Para cumprir o tratado, o país terá obrigatoriamente que tornar sua pecuária mais limpa.

“É um desafio considerável, mas há condições de cumprir a meta firmada na COP26. Temos hoje 165 milhões de ha de pasto e grande espaço para manejar essas áreas a fim de torná-las mais sustentáveis”, avalia o engenheiro-agrônomo Flávio Augusto Portela Santos, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), especialista em produção e nutrição de bovinos.

Segundo o pesquisador, o Brasil dispõe de várias tecnologias para tornar a pecuária uma atividade mais eficiente e com menor emissão de carbono. Além do sistema ILP e suas variantes, já implantados em estimados 16 milhões de ha de pasto, os pecuaristas podem recorrer a técnicas para fazer o correto manejo da pastagem e a suplementação alimentar com aditivos a fim de reduzir a geração de metano (ver reportagem). O melhoramento genético do pasto, para produzir capim mais facilmente digerível, e dos bovinos, para que atinjam mais cedo o peso para o abate (ver Especial 50 anos FAPESP), também são soluções possíveis.

“As pesquisas avançaram muito nos últimos anos. Agora, é preciso que esse conhecimento chegue ao campo e as tecnologias sejam aplicadas em maior escala no processo produtivo”, ressalta Santos, que liderou um projeto apoiado pela FAPESP sobre suplementação de bovinos em pastagem tropical.

Uma das linhas atuais de investigação do agrônomo é o processamento de milho e sorgo para melhorar a eficiência alimentar e reduzir o metano gerado por quilo de carne e litro de leite produzidos. Outro estudo, em parceria com a multinacional do setor agrícola Syngenta, tem como foco um milho geneticamente modificado, dotado de uma enzima, a amilase, que ajuda o animal a digerir melhor o grão. “Com uma digestão mais eficaz, conseguimos reduzir a geração de metano”, explica.

Em laboratório da Esalq-USP, momento de experimento que avalia ingredientes nutricionais com potencial para diminuir a emissão de metano por bovinosLéo Ramos Chaves

Estratégias para mitigar
Especialista em mitigação de emissão de GEE em sistemas de produção de ruminantes, o engenheiro-agrônomo Guilhermo Congio também defende ser possível tornar a pecuária brasileira mais amigável ao clima do planeta. “Diversas pesquisas feitas no país nos últimos anos indicam que a adoção de tecnologias pelo setor pode compensar suas emissões, ao sequestrar mais gases de efeito estufa do ambiente do que emite”, destaca.

Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Animal e Pastagens da Esalq-USP, Congio foi um dos coordenadores de um projeto internacional de pesquisa, o Latin America Methane Project (Lamp), concluído no ano passado, que fez uma meta-análise de 34 estratégias potenciais para mitigação de metano entérico. Essas soluções foram divididas em três grupos: melhoramento genético animal, nutrição e manipulação do rúmen.

“Das 34 estratégias avaliadas, 16 reduziram a taxa de ao menos uma métrica relativa à emissão do gás sem comprometer a produção animal. Dessas, três diminuíram as emissões absolutas de metano pelo gado, medidas em gramas por dia, e 13 reduziram a emissão do gás de forma relativa, em gramas de metano por kg de carne ou litro de leite produzido ou por kg de alimento ingerido pelo animal”, explica Congio. O projeto teve a participação de cerca de 80 pesquisadores de 26 instituições de oito países da América Latina e Caribe. Os resultados foram divulgados no Journal of Cleaner Production, em agosto de 2021.

O pesquisador explica que, grosso modo, as soluções para tornar a pecuária mais sustentável podem focar tanto na redução das emissões de metano entérico pelo gado e de óxido nitroso pelo solo e dejetos dos animais, quanto no sequestro de carbono do ambiente, compensando o lançamento de GEE pelo setor. O uso de aditivos na alimentação animal é um exemplo do primeiro grupo, enquanto o plantio de florestas junto ao pasto, do segundo. “Embora a pecuária responda por uma fração considerável das emissões brasileiras, as pastagens manejadas de maneira correta e sistemas integrados de produção com inclusão de árvores têm grande capacidade de sequestrar CO2 da atmosfera”, diz Congio. Para compensar a emissão de um 1 kg de metano liberado pelos animais, é preciso remover 28 kg de CO2 do ambiente.

O cientista do clima Alexandre Costa, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), questiona os esforços que o país tem feito para reduzir a pegada de carbono da indústria da carne e defende que o setor precisa rever sua extensão. “O modelo brasileiro não é sustentável”, afirma. Costa foi um dos autores do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) e lembra que a agropecuária tem crescido em extensão de terra em biomas como o Cerrado e a Amazônia, causando destruição. “Como sabemos, desmatamento implica emissões de CO2.”

Um estudo brasileiro, cujos resultados foram publicados na revista científica Communications Earth & Environment, em 2021, mostrou que a Amazônia produz 8% do metano do planeta, sendo que 11% desse volume é gerado pela pecuária (ver Pesquisa FAPESP nº 312).

O empenho para descarbonizar a pecuária brasileira não é de hoje. Há mais de duas décadas universidades e centros de pesquisa se dedicam a encontrar soluções para o problema e em 2010 o governo lançou o Plano ABC – Agricultura de Baixa Emissão de Carbono. Elaborado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), foi criado para levar tecnologias sustentáveis e produtividade ao campo. O sistema ILPF e suas variantes, assim como a recuperação de pastagens degradadas e o tratamento de dejetos animais, integravam o programa e viraram políticas públicas.

Em laboratório da Esalq-USP, momento de experimento que avalia ingredientes nutricionais com potencial para diminuir a emissão de metano por bovinosLéo Ramos Chaves

Como explica a zootecnista Fernanda Garcia Sampaio, da Coordenação-geral de Mudança do Clima e Agropecuária Conservacionista do Mapa, a ação do governo se divide no apoio ao desenvolvimento das tecnologias, na promoção de assistência técnica capaz de levar as inovações até os produtores e na oferta de financiamento. Em 10 anos, o Plano ABC concretizou 38 mil contratos de crédito voltados à adoção de práticas mais sustentáveis no campo, totalizando R$ 32 bilhões.

Para o período 2020-2030, o plano, rebatizado de ABC+, incorporou novas práticas, entre elas a terminação intensiva, que reduz o tempo de engorda do animal para o abate. O objetivo é ampliar em 72 milhões de ha a área agropecuária com as tecnologias do plano – hoje são perto de 50 milhões de ha – e alcançar uma capacidade de mitigação estimada em 1,1 bilhão de tCO2e até 2030.

O ABC+ projeta uma expansão do sistema ILPF em mais 10 milhões de ha no período. Caso seja bem-sucedido, o consórcio entre lavouras, florestas e pecuária responderá por cerca de 23% dos 112 milhões de ha de área de pastagens plantadas no Brasil. Cada ha onde é implementado o ILPF tem potencial de remover, em média, 3,79 tCO2e da atmosfera por ano.
Alexandre Affonso


Uma pesquisa coordenada pelo engenheiro-agrônomo José Ricardo Pezzopane, da Embrapa Pecuária Sudeste, em São Carlos (SP), comprovou os benefícios para o clima global do plantio de eucaliptos em um sistema produtivo ILPF. As mudas foram plantadas em 12 ha em linhas simples e espaçamento de 15 metros (m) entre as linhas e 2 m entre as árvores, gerando uma densidade de 333 eucaliptos por ha. “Os eucaliptos acumularam 65 toneladas de carbono por ha ao longo de oito anos, até o corte, gerando 225 metros cúbicos (m3) de madeira – uma fonte extra de renda ao pecuarista. Um artigo detalhando o estudo foi divulgado no ano passado no periódico Agriculture, Ecosystems & Environment.

Segundo Pezzopane, a escolha das espécies de árvores plantadas em um sistema de ILPF depende de vários fatores relacionados à busca de benefícios ambientais, econômicos e sociais. “Temos muitas possibilidades de escolha entre espécies nativas e exóticas, assim como de densidade de plantio [número de árvores por hectare]”, destaca. Alguns tipos de árvore, como frutíferas ou castanheiras, permanecem, em tese, mais tempo no ambiente e podem absorver mais carbono do que as espécies destinadas ao corte.

A estratégia de produção ILPF também está sendo adotada fora do país. Austrália e Nova Zelândia são exemplos. Nesses dois países da Oceania o sistema é parte importante nas políticas que estão sendo implantadas para zerar as emissões líquidas de carbono na pecuária até 2050.

Outros grandes produtores globais de carne investem para tornar suas pecuárias mais limpas. Em novembro de 2021, a administração Joe Biden, dos Estados Unidos, lançou um ambicioso plano de ação que tem como uma de suas metas descarbonizar a pecuária do país. Os Estados Unidos também lideram a Iniciativa Global para o Metano, uma colaboração internacional, da qual o Brasil faz parte, com a finalidade de mitigar a emissão do gás em vários setores da economia, inclusive o agropecuário.
REVISTA FAPESP

Brasil prepara-se para iniciar produção de hidrogênio verde





Projetos produtivos e pesquisas acadêmicas tentam colocar o país no mapa mundial do gás sustentável, apontado como o combustível do futuro


Experimento na UFSCar com célula de eletrólise de água para geração de hidrogênio feita com catalisador de fosfato de níquel

O Brasil está fazendo um esforço para entrar no mapa global de produção de H2V (H2 de hidrogênio e V de verde), combustível limpo com potencial para atender demandas do setor elétrico e automotivo com baixo impacto ambiental. Até o final deste ano, a EDP Brasil, uma das empresas líderes do setor de energia no país, planeja iniciar as atividades em uma unidade-piloto de produção de H2V em São Gonçalo do Amarante, no Ceará. O hidrogênio será obtido por meio da eletrólise da água, um processo químico que utiliza corrente elétrica para decompor a água em seus constituintes, hidrogênio (H, formando H2) e oxigênio (O, formando O2) existentes na molécula de água (H2O). Quando o processo de eletrólise emprega fontes renováveis de energia, como eólica, solar ou biomassa, o hidrogênio é classificado como verde. A usina da EDP utilizará energia fotovoltaica e terá capacidade para produzir 22,5 quilos (kg) de hidrogênio por hora. O investimento previsto é de R$ 41,9 milhões.

Frequentemente apontado como o combustível do futuro, o hidrogênio tem alto poder calorífico, quase três vezes superior ao do diesel, da gasolina e do gás natural. Ao ser transformado em energia – alimentando um motor a combustão ou em qualquer outra aplicação –, não emite gases de efeito estufa (GEE). O hidrogênio residual liberado na atmosfera, em contato com o oxigênio, resulta em vapor-d’água.

Elemento mais abundante do Universo, o hidrogênio é raramente encontrado de forma isolada na Terra, mas está presente em inúmeros compostos, incluindo água, combustíveis fósseis e diferentes tipos de biomassa. A obtenção do gás, nesses casos, depende dos processos envolvidos. O mais comum deles é a reforma a vapor, uma reação química de hidrocarbonetos, comumente gás natural, com água. O hidrogênio produzido por essa via é denominado de cinza, uma vez que seu processo de conversão libera CO2 na atmosfera, ou azul, quando o gás carbônico gerado durante sua produção é capturado e armazenado geologicamente.

O hidrogênio verde produzido na usina-piloto cearense será utilizado para substituir parte do carvão mineral que abastece a Usina Termelétrica do Pecém (UTE Pecém). “É um projeto de pesquisa e desenvolvimento [P&D] que nos permitirá entender o ganho energético proporcionado pelo hidrogênio, com poder energético mais de quatro vezes superior ao do carvão”, diz Cayo Moraes, gestor de operação da EDP.

A usina-piloto de H2V também permitirá à companhia observar a viabilidade técnica, regulatória e econômica da produção do combustível. A expectativa é que a unidade forneça os subsídios necessários para a decisão sobre a implementação de uma planta em escala industrial no estado. Nesse caso, o hidrogênio poderá ser exportado para companhias energéticas europeias, gerar combustível veicular ou abastecer empresas industriais.

O projeto é visto por especialistas do setor energético como o primeiro de uma série de iniciativas voltadas à produção de hidrogênio verde no país. Apenas o governo do Ceará já soma 14 memorandos de entendimento com grupos privados interessados em produzir o combustível no estado. “Talvez nem todos se viabilizem. Mas se a metade dos acordos se tornar efetivo, teremos o equivalente a uma Itaipu em operação no Ceará entre 2025 e 2030”, declara Roseane Medeiros, secretária-executiva da Indústria da Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Estado do Ceará (Sedet). A hidrelétrica de Itaipu, a maior do país, tem potência instalada de 14 gigawatts (GW).

Rio Grande do Norte, Piauí, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul também informam possuir memorandos assinados com grupos geradores de energia. A corrida pela atração de projetos de produção de hidrogênio verde é global. Chile, Japão, Alemanha, Holanda, Estados Unidos, Coreia do Sul, Austrália e China são alguns dos países que anunciaram programas nacionais de estímulo ao desenvolvimento tecnológico e à produção de H2V.

Participação ínfima
O mundo soma 520 projetos de usinas de hidrogênio, segundo o Hydrogen Council, associação que reúne representantes dos maiores produtores do gás. Se confirmados, demandarão investimentos de US$ 160 bilhões. A estimativa da associação é que a produção do combustível ultrapasse 600 milhões de toneladas por ano (mt/ano) e responda por 22% da demanda mundial de energia em 2050, o que permitiria uma redução de 20% nas emissões de GEE no mundo. As projeções da Agência Internacional de Energia Renovável (Irena) são mais modestas. Para ela, o setor irá produzir 409 mt/ano em 2050, o que responderá, nos cálculos da entidade, por 12% da demanda global de energia.

Atualmente, a contribuição do hidrogênio na matriz energética mundial é ínfima. Praticamente todo o hidrogênio produzido, pouco mais de 100 milhões de toneladas anuais, é utilizado com finalidades químicas em processos industriais, como o refino de petróleo, na produção de fertilizantes, em siderúrgicas e na indústria química.

Especialistas preveem que o processo produtivo de H2V predominante nos próximos anos será o de eletrólise da água – o mesmo proposto para a usina-piloto cearense. Esse método será obtido principalmente por plantas equipadas com eletrolisadores (equipamentos responsáveis pelo processo de eletrólise) abastecidos por fontes de energia renovável, garantindo que todo o processo seja isento de GEE (ver infográfico).
Alexandre Affonso


Uma das principais barreiras para maior oferta de hidrogênio verde no mundo é a necessidade de ganhos de maturidade tecnológica na cadeia produtiva do hidrogênio, informa o relatório “Geopolitics of the energy transformation: The hydrogen fator”, divulgado pela Irena em janeiro. Outra é o alto custo produtivo e logístico.

Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), o custo do quilo do hidrogênio cinza é de pouco mais de US$ 1 – o que permite que seja competitivo em relação ao gás natural. O hidrogênio azul custa em média US$ 2,3 por quilo. O quilo do hidrogênio verde fica entre US$ 3 e US$ 8, dependendo da fonte de energia utilizada e a região do mundo onde essa energia é produzida. A expectativa da Irena é que a ampliação da oferta de energias renováveis no mundo e ganhos de escala produtiva tornem o hidrogênio verde competitivo com o azul em 2030 e, no decorrer da próxima década, os custos produtivos se aproximem do apresentado pelo hidrogênio cinza.

De acordo com o Plano Nacional de Expansão de Energia (PDE 2031), elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), instituição ligada ao Ministério de Minas e Energia, o Brasil reúne condições para produzir hidrogênio verde mais barato que a média internacional. O custo estimado do H2V – uma vez que ainda não há produção efetiva – está entre US$ 2,2 e US$ 5,2 por quilo no país.

“A popularização do hidrogênio se dará por necessidade. Vivemos uma emergência ambiental e o mundo já percebeu que não é possível mais depender de combustíveis fósseis para gerar eletricidade e abastecer veículos”, diz o engenheiro Paulo Emílio Valadão de Miranda, diretor do Laboratório de Hidrogênio do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) e presidente da Associação Brasileira de Hidrogênio (ABH2).

Eletrolisadores
Uma oportunidade para reduzir os custos da produção de hidrogênio é aumentar a eficiência dos eletrolisadores. Pesquisadores do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais da Universidade Federal de São Carlos (CDMF-UFSCar), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, estudam materiais capazes de reduzir o consumo de energia no processo químico de decomposição da molécula da água. Como explica a química Lúcia Helena Mascaro Sales, diretora de pesquisa do projeto, um dos melhores materiais catalisadores – substâncias que aumentam a velocidade das reações químicas na eletrólise – são os metais nobres, principalmente a platina. Níquel, cobalto ou molibdênio também podem ser utilizados associados a ligas de ferro ou como sulfetos com ótimo desempenho.

A equipe da UFSCar pesquisa o uso de materiais como óxido de titânio modificado com sulfeto de molibdênio ou diferentes ligas compostas por níquel, cobre, molibdênio e ferro. “Em escala de laboratório, demonstramos que é possível reduzir significativamente o consumo de energia na eletrólise da água”, diz Mascaro. A petroleira anglo-holandesa Shell, copatrocinadora com a FAPESP em outro projeto de pesquisa do qual Mascaro participa, sobre portadores densos de energia, tem interesse em testar os catalisadores desenvolvidos em plantas-piloto em Amsterdã, nos Países Baixos, e em Houston, nos Estados Unidos.

Carro é abastecido com hidrogênio em uma estação de combustível em Antuérpia, na Bélgica
Jasper Jacobs / Belga MAG / AFP via Getty Images

Carro é abastecido com hidrogênio em uma estação de combustível em Antuérpia, na BélgicaNa Universidade Federal do Ceará (UFC), a professora Adriana Nunes Correia, do Departamento de Química Analítica e Físico-química, também investiga materiais metálicos capazes de aumentar a eficiência e reduzir custos dos eletrolisadores. A proposta da pesquisa, ainda em fase inicial, é utilizar células de eletrólise microbiana, empregando microrganismos como biocatalisadores, para produzir hidrogênio a partir de esgotos domésticos ou de efluentes industriais. A ideia é transformar a energia química do esgoto em corrente elétrica, que possibilita a obtenção do gás. “O processo permitiria produzir hidrogênio e, simultaneamente, tratar resíduos orgânicos”, afirma Correia.

Pesquisas com foco em hidrogênio verde também são feitas na Universidade Federal do Paraná (UFPR). O químico Helton José Alves, coordenador do Laboratório de Materiais e Energias Renováveis, dedica-se ao estudo de novas rotas tecnológicas para a produção do combustível. Uma delas recorre a bactérias acidogênicas para degradar a biomassa residual proveniente de efluentes industriais.

A investigação rendeu a publicação de dois artigos no periódico International Journal of Hydrogen Energy. Os trabalhos abordam a produção de hidrogênio a partir de água residual de cervejaria. “A grande vantagem é reduzir os custos de produção e economizar recursos hídricos”, diz Alves. O processo produtivo seria indicado para a produção de hidrogênio como solução energética para a própria indústria onde o efluente é gerado.

Outro caminho estudado para produção de hidrogênio é usar o método conhecido como reforma a seco do biogás. Alves explica que o sistema prevê o uso do metano e do dióxido de carbono presentes no biogás para a geração de gás de síntese, uma mistura de hidrogênio e monóxido de carbono. O processo ocorre em reatores com catalisadores metálicos à base de níquel, a uma temperatura entre 700 e 800 graus Celsius. Posteriormente, o gás de síntese é purificado para obtenção de hidrogênio. “Junto com parceiros, pretendemos instalar uma unidade-piloto capaz de produzir 1 kg de hidrogênio por hora ainda em 2022”, antecipa Alves. Ao contrário do sistema convencional de reforma a vapor do gás natural, o sistema a seco não demanda água.

O estudo de rotas produtivas de hidrogênio que não dependem de água pura em seus processos é de grande relevância e acompanhado de perto pelos profissionais do setor. De acordo com a Irena, para produzir 409 milhões de toneladas anuais de hidrogênio verde e suprir 12% da demanda mundial de energia em 2050, será necessário o consumo de algo entre 7 bilhões e 9 bilhões de metros cúbicos de água por ano. O total é menos de 0,25% do consumo atual de água doce. Pode parecer pouco, mas é um volume impactante em um mundo onde esse recurso está se tornando escasso.

Projetos
1. Divisão de Pesquisa 1 – Portadores densos de energia (nº 17/11986-5); Modalidade Centros de Pesquisa em Energia; Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisadora responsável Ana Flávia Nogueira (Unicamp); Investimento R$ 8.282.252,10.
2. CDMF – Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (nº 13/07296-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Elson Longo da Silva (UFSCar); Investimento R$ 34.869.423,03.

Artigos científicos
SANTOS, H. L. S. et al. NiMo-NiCu nimo-nicu inexpensive composite with high activity for hydrogen evolution reaction. ACS Applied Materials & Interfaces. v. 12, n. 15, p. 17492–501. 27 mar. 2020.
SALOMÃO, A. C. et al. Towards highly efficient chalcopyrite photocathodes for water splitting: the use of cocatalysts beyond Pt. ChemSusChem. v. 13, n. 21, p. 4671-9. 4 nov. 2021.
ARAÚJO, M. A. et. al. Improved photoelectrochemical hydrogen gas generation on Sb2S3 films modified with an earth-abundant MoSx co-catalyst. ACS Applied Energy Materials. v. 5, n. 1, p. 1010-22. 13 jan. 2022.
ARANTES, M. K. et al. Treatment of brewery wastewater and its use for biological production of methane and hydrogen. International Journal of Hydrogen Energy. v. 42, n. 42, p. 26243-56. 19 out. 2017.
ESTEVAM, A. et al. Production of biohydrogen from brewery wastewater using Klebsiella pneumoniae isolated from the environment. International Journal of Hydrogen Energy. v. 43, n. 9, p. 4276-83. 1º mar. 2018.
ALVES, H. J. et al. Overview of hydrogen production technologies from biogas and the applications in fuel cells. International Journal of Hydrogen Energy. v. 38, n. 13, p. 5215-25. 1º mai. 2013.
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