terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A agonia do Cerrado

As terras do segundo maior bioma do Brasil viraram um enorme celeiro agrícola, à custa da perda de metade de sua cobertura vegetal nativa. O prejuízo pode se agravar ainda mais se o desmatamento da região não for contido

Vegetação típica do Cerrado: árvores baixas e resistentes, que vêm perdendo espaço para a agricultura (Foto: iStockphotos)

Com 207 milhões de hectares (cerca de 22% do território nacional), o Cerrado, o segundo maior bioma do Brasil – atrás apenas da Amazônia –, era visto até algumas décadas atrás como um ecossistema desinteressante, com uma vegetação raquítica e pouco diversa, de onde quase nada se poderia aproveitar. Graças a muitas pesquisas e ciências aplicadas, no entanto, essa imensa savana de solos pobres e sujeita a secas se transformou numa das mais importantes zonas agrícolas do Brasil e do mundo.

Mas essa pujança tem um preço. O agronegócio se estabeleceu abrindo a fronteira agrícola, desmatando e degradando vastas áreas. Só entre 2013 e 2015, por exemplo, foram destruídos 18.962 km2 da região. Isso significa que, a cada dois meses, a vegetação nativa de um território equivalente ao da cidade de São Paulo (1.521 km2) desaparece.

Para evitar que esse quadro se agrave, 40 organizações ambientalistas lançaram em 11 de setembro (Dia do Cerrado) o manifesto “Nas mãos do mercado, o futuro do Cerrado: é preciso interromper o desmatamento”. No documento, elas pedem uma medida imediata em defesa do bioma a ser tomada pelas empresas que compram soja e carne produzidas na região, assim como os investidores que atuam nesses setores, no sentido de adotar políticas e compromissos eficazes para eliminar o desmatamento e desvincular suas cadeias produtivas de áreas naturais recentemente convertidas em agricultáveis.

O processo que culminou na atual situação vem de longe. As vastidões do Cerrado começaram a ser ocupadas no século 18, com a mineração de ouro e pedras preciosas. Junto com essa atividade começaram a surgir os primeiros povoados. Esgotadas essas riquezas, os habitantes da região tiveram que descobrir outra forma de ganhar a vida. A alternativa que vingou foi a pecuária extensiva, principal atividade econômica daquelas paragens até praticamente o fim da década de 1950.
Proteção pequena

Com a construção de Brasília, na virada dos anos 1950 para 1960, vieram as estradas e ferrovias, pelas­ quais chegaram os migrantes. Vinham atraídos pelas políticas agrícolas desenvolvimentistas do governo, que queria integrar aquele território ao restante do país. Criaram-se assim as condições para a expansão da agricultura comercial. O resultado disso em termos ambientais pode ser medido em números. “O Cerrado já perdeu 50% de sua cobertura vegetal nativa”, diz a bióloga Mercedes Bustamante, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB). “Os remanescentes estão fragmentados e sob pressão de conversão nas novas frentes do desmatamento. As áreas de proteção integral cobrem um percentual muito baixo do bioma e não representam sua variabilidade espacial.”

A construção de Brasília (acima) estimulou a ocupação do bioma, hoje marcado pelo plantio de soja (abaixo) (Fotos: iStockphotos)


Cristiane Mazzetti, especialista do Greenpeace em Desmatamento Zero, lembra que a taxa anual de desmatamento do bioma superou a da Amazônia nos últimos dez anos. “Em 2014 e 2015 ela ficou próxima de 9.500 km2/ano, enquanto a do Norte para os mesmos anos foi de 5.012 e 6.207 km2 respectivamente”, informa.

“Para piorar, no Cerrado a área passível de desmatamento legal (com autorização do órgão ambiental competente) é de 65%-80% de cada propriedade rural, enquanto na Amazônia é de apenas 20%. Isso mostra que o simples cumprimento da legislação, embora seja fundamental, não é suficiente para barrar a rápida perda da vegetação nativa.”

A situação é mais grave no Matopiba, região na confluência dos estados de Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia. “Grandes áreas de lá estão sendo perdidas para abrir espaço para pastagens e plantações de soja”, diz Cristiane. “Ao manter esse ritmo de destruição, o Cerrado segue o mesmo caminho da Mata Atlântica, onde restaram apenas 10% da sua formação original, gerando assim a perda de serviços ambientais fundamentais para toda a sociedade.”

Conflito prejudicial

Para o geógrafo Eguimar Felício Chaveiro, da Universidade Federal de Goiás (UFG), o conflito entre a agricultura e a conservação ambiental tem trazido grandes prejuízos para o bioma. “Ele tem potencial para diversos tipos de usos, mas o modelo de desenvolvimento adotado tem destruído parte considerável dessa riqueza, transformando-a em pobreza”, critica.

“Há, inclusive, uma contradição: transformam o Cerrado em marca, mas o destroem; enaltecem seu valor, mas consagram um modelo de desenvolvimento econômico que extingue parte de sua diversidade genética e cultural. Há problemas de erosão genética, de degradação ambiental de matas ciliares, repercutindo nos seus componentes hídricos. Já se vê o secamento de vários canais e a extinção de algumas espécies de animais, como o tatupeba.”

Tatupeba: espécie típica já extinta em algumas áreas do Cerrado (Foto: Divulgação)

Segundo Mercedes, a falta de atenção comparada à dispensada a outros biomas do país é outro problema que a região tem de enfrentar. “Enquanto há uma preocupação internacional e nacional com o desmatamento na Amazônia, há pouca divulgação sobre o acelerado processo de degradação do Cerrado, que constitui a savana mais diversa do mundo e a origem de três grandes bacias hidrográficas brasileiras (Tocantins, São Francisco e Platina)”, lamenta.

“Entender como ela – que apresenta zonas de contato com os principais biomas brasileiros (Pantanal, Amazônia e Caatinga) – funciona e divulgar esse conhecimento em nível nacional e internacional é urgente para reverter o processo atual de uso e ocupação e preservar os remanescentes de vegetação nativa.”

A situação se torna mais preocupante quando se sabe que, de acordo com os signatários do manifesto, é desnecessário que a agricultura e a pecuária continuem se expandindo sobre áreas naturais no Cerrado, pois há cerca de 40 milhões de hectares já desmatados no Brasil com aptidão para a expansão da soja – principal cultura agrícola associada ao desmatamento.

“Isso é suficiente para o atendimento das metas brasileiras de expansão produtiva de soja nos próximos 50 anos”, diz o documento. “O setor da soja já detém conhecimento suficiente para a expansão sobre zonas abertas, sendo esse o padrão nas demais regiões, como no bioma Amazônia e em outros locais do Cerrado fora do Matopiba.”


Estímulo para o aquecimentoPecuária no Cerrado: atividade que favorece a mudança climática (Foto: iStockphotos)

Afora levar ao desmatamento e à degradação ambiental de grandes áreas, a ocupação do Cerrado pela agropecuária contribui para o aquecimento global, constatou a bióloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB). Ela pesquisa há vários anos os impactos das mudanças na cobertura vegetal e do uso da terra no bioma. Mercedes quer entender como a agropecuária no Cerrado contribui para o efeito estufa e o aquecimento global.

Segundo ela, esse bioma tem muito dióxido de carbono (CO2) fixado no solo, sobretudo nas raízes de sua vegetação, muito profundas devido à escassez de água perto da superfície. “O Cerrado é como uma floresta de cabeça para baixo. Há mais biomassa vegetal enterrada no solo do que na parte aérea”, afirma. De acordo com Mercedes, ao mexer nisso, muito carbono e outros gases-estufa, como o metano, são lançados no ar. Só as queimadas liberam cerca de 17 toneladas de carbono por hectare por ano.
Revista Planeta

Morte acelerada

Estudo internacional com participação brasileira, mostra que os riscos corridos pelas florestas tropicais do mundo estão se intensificando em ritmo crescente


Desmatamento na Amazônia: só um dos fatores que estão destruindo a floresta (Foto: iStockphotos)

Como se o desmatamento já não fosse suficientemente ruim, uma série de outras ameaças mata, num ritmo cada vez mais intenso, as árvores da Amazônia e de outras florestas tropicais úmidas da Terra. Uma revisão de artigos científicos feita por especialistas no tema, incluindo o pesquisador brasileiro Paulo Brando, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), e publicada na revista “New Phytologist” em fevereiro, indica que a taxa de mortalidade dessas árvores mostra sinais de aceleração nos últimos anos.

Os motivos são o aumento da temperatura, secas longas e piores, ventos mais fortes, incêndios mais extensos, mais cipós e até a abundância de gás carbônico na atmosfera – uma das causas do efeito estufa e elemento fundamental da fotossíntese. As mudanças climáticas estão ligadas a todos os problemas apontados. “O trabalho mostra que há indícios fortes que relacionam a mortalidade das árvores de florestas tropicais úmidas às alterações esperadas para essas regiões, em escalas global e regional”, afirma Brando.

O foco do estudo foram as florestas intactas, primárias ou antigas, na América do Sul, África e no Sudeste Asiático. A Amazônia brasileira aparece em destaque porque é o local mais estudado de todos. “Na Amazônia, todas essas causas de mortalidade de árvores estão presentes”, diz Brando. “Mas é difícil dizer que uma é mais relevante do que outra, porque todas têm um papel. Secas causam picos de mortalidade, enquanto o aumento de CO2 provoca mudanças de fundo. Já eventos de tempestades de vento impactam mais áreas fragmentadas, e o fogo causa muitos danos no sudeste da Amazônia.”

Equação letal

É impossível estabelecer qual desses ataques é pior. As secas têm se tornado cada vez mais longas e severas – na Amazônia, episódios anômalos ocorreram em 1997, 2005, 2010 e 2015. Como defesa imediata, as árvores tomam atitudes extremas, como fechar os estômatos (células por onde ocorre a respiração das plantas) e perder mais folhas. Essas folhas, por sua vez, se acumulam em abundância no solo e servem de combustível para incêndios florestais, que se alastram facilmente e por mais tempo.

As novas condições estão favorecendo a proliferação de cipós (Foto: iStockphotos)

Secas e temperaturas mais altas podem ainda levar as árvores a definhar de fome, também num mecanismo de defesa que acaba se tornando um algoz. Ao fecharem os estômatos para salvar água em seu interior, elas deixam de capturar o CO2 do ar, sua fonte de alimentação, enquanto consomem o que têm dentro. O regime forçado as deixa mais suscetíveis a ataques de pestes, como insetos, ou à competição por comida com os cipós – que, por sua vez, têm proliferado nesses ambientes. E, mesmo que a dieta não aconteça, o excesso de CO2 no ar também não significa que as florestas crescerão abundantemente.

“Quando há muito gás carbônico, algumas árvores podem dominar o pedaço e roubar os recursos dos vizinhos. Assim, há um aumento esperado na mortalidade de árvores, mas não necessariamente mudanças drásticas nos estoques de carbono”, afirma Brando. “Outra explicação é que a floresta se torna mais dinâmica com mais CO2; cresce e morre mais rapidamente, tanto pelo metabolismo quanto por mudanças na sua estrutura.” Tampouco o fato de estarem próximas à linha do equador traz vantagem para as florestas tropicais úmidas num planeta mais quente: um novo regime de temperatura, esperado para os próximos anos devido às mudanças climáticas, pode mudar o metabolismo das árvores.

Segundo Brando, reduzir a taxa de mudança no clima e estabilizar o processo o quanto antes, o que envolve tanto derrubar os níveis de emissão de CO2 quanto os do desmatamento, são fatores essenciais para manter as florestas tropicais. “Quanto menor a área de borda de floresta, comum em paisagens fragmentadas, menor o impacto de seca, fogo e ventos.” Ele ainda destaca a importância de aprofundar as análises: “Precisamos saber o que realmente está ocorrendo, para fechar buracos nas observações que ainda existem e nos preparar para os efeitos das mudanças climáticas”.
Revista Planeta

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Mar de plástico


A notícia de que a Grande Mancha de Lixo do Pacífico já ocupa uma área 16 vezes maior do que se estimava aumenta a urgência de uma solução para o problema dos resíduos plásticos, os principais poluidores dos mares

Acúmulo de lixo plástico flutuando na costa norte de Honduras, em foto de Caroline Power: o problema é global (Foto: Caroline Power Photography)

A vida moderna é inimaginável sem os plásticos. Eles estão em praticamente todos os produtos tecnológicos que caracterizam a civilização atual. A lista é infindável: computadores, celulares, televisões e até contêineres e assentos de privada, afora produtos descartáveis como talheres, pratos, canudos, garrafas, boias, cordas, embalagens, cotonetes e redes de pesca. Não há dúvida de que é um produto útil, durável e versátil. Mas também é incontestável que os plásticos são uma praga ambiental, que contamina todo tipo de ambiente na Terra. Apenas nos oceanos, estima-se que sejam despejados 8 milhões de toneladas de plástico a cada ano.

Foca capturada em rede de pesca (um dos principais itens dos resíduos plásticos) no atol de Kure, na região do Havaí (Foto: Nature Picture Library / Easypix Brasil)

Esse volume se espalha por todos os mares do planeta, com destaque para a chamada Grande Mancha de Lixo do Pacífico, localizada entre a costa oeste dos Estados Unidos e o Havaí. Essa “ilha” de entulhos está crescendo mais rapidamente que se previa. Uma pesquisa recente, publicada na revista científica “Scientific Reports”, constatou que ela tem cerca de 80 mil toneladas de plásticos descartados, em uma área de 1,6 milhão de quilômetros quadrados, um pouco maior que o estado do Amazonas (1.559.159km2) e quase duas vezes e meia o território da França (643.800km2). O estudo também concluiu que a mancha ocupa hoje uma área 16 vezes maior do que se estimava.

De acordo com o oceanógrafo Laurent Lebreton, da fundação holandesa The Ocean Cleanup, que desenvolve tecnologias para extrair a poluição plástica dos oceanos e realizou a pesquisa, a situação está pior a cada dia. “Encontramos uma quantidade impressionante e precisamos de medidas urgentes para acabar com o plástico que ocupa a Grande Mancha de Lixo do Pacífico”, declarou, durante a divulgação da pesquisa. Segundo ele, cerca de 20% dos resíduos podem ter chegado à região após o terremoto e tsunami de 2011 no Japão.

Montanha de lixo plástico em uma ilha das Maldivas, no Oceano Índico (Foto: Alison’s Adventures)

A pesquisa da Ocean Cleanup é considerada uma das maiores realizadas até hoje para avaliar a extensão da Grande Mancha de Lixo do Pacífico. Para fazer o trabalho, os pesquisadores contaram com o apoio de 30 navios, várias aeronaves e imagens tridimensionais obtidas do alto e na superfície. Além disso, 1,2 milhão de amostras foram coletadas. Desse total, selecionaram-se 50 itens com data de fabricação legível. Verificou-se que havia plástico de 1977, sete itens da década de 1980, 17 da década de 1990, 24 da década de 2000 e um de 2010.
Fragmentos

A análise também revelou que os pedaços pequenos, que medem menos de meio centímetro, compõem a maior parte do 1,8 trilhão de peças que flutuam na mancha, embora respondam por apenas 8% da massa suspensa no mar. Em todos os oceanos do planeta, estima-se que esse número chegue a 5,25 trilhões, com um peso total de cerca de 290 mil toneladas. As redes de pesca descartadas são responsáveis por quase metade do peso dos resíduos.

Pilhas de pneus no leito oceânico da Grande Mancha de Lixo do Pacífico (Foto: Divulgação)

Segundo a pesquisadora Daniela Gadens Zanetti, que faz pós-graduação em oceanografia com ênfase em microplásticos na Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC), essas partículas estão presentes em todos os habitats marinhos, desde a superfície oceânica até o fundo do mar, e estão disponíveis para todos os níveis da cadeia alimentar, dos produtores primários aos superiores. “Um relatório de 2016 da Organização das Nações Unidas (ONU) estima que mais de 800 espécies marinhas e costeiras são afetadas pela ingestão desses plásticos”, diz. “Além disso, esses resíduos têm um efeito adverso nas indústrias de pesca, navegação e turismo. O relatório da ONU avalia o custo da poluição causada por detritos marinhos em US$ 13 bilhões.”

Para o professor Sandro Donnini Mancini, do Instituto de Ciência e Tecnologia de Sorocaba da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o problema do lixo de um modo geral é bem complexo e ainda sem solução. “Se mal conseguimos resolver o problema em cidades, imagine no mar”, afirma. “Apesar de todos os alertas, como a Grande Mancha de Lixo do Pacífico, não creio que a situação esteja melhorando, embora tecnologias venham sendo desenvolvidas para tentar capturar e depois tirar o material dali. A imensidão do oceano torna isso bem difícil, quase um sonho mesmo. Mais do que em qualquer lugar, o ideal é não sujar os mares.”

Amostra de água da Grande Mancha de Lixo do Pacífico coletada pelo pesquisador Charles Moore, que descobriu essa área do oceano em 1997 (Foto: Jonathan Alcorn, Bloomberg/Getty)

Mas os plásticos não são os únicos poluentes jogados ao mar. Como observa Sandra Tédde Santaella, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), da Universidade Federal do Ceará (UFC), o problema vai bem além deles. “Eles são mais visíveis e por isso mais ‘lembrados’, incomodam mais e expõem a situação”, afirma. “Mas aos oceanos chegam vários tipos de resíduos com tempo de degradação muito elevado, como bitucas de cigarro, latas, fraldas descartáveis, vidro, entulho de construção civil, concreto, pneus, tecidos, entre outros.”
Praias poluídas

Seja como for, os plástico compõem o grosso da poluição marítima. Um monitoramento que vem sendo realizado desde 2012, pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) em parceria com o Instituto Socioambiental dos Plásticos (Plastivida), associação que reúne entidades e empresas do setor, constatou que mais de 95% do lixo encontrado nas praias brasileiras é composto por itens feitos desse material.

Albatroz encontrado morto no atol de Midway, com o interior repleto de plástico (Foto: Dan Clark/USFWS/AP)

O levantamento foi feito em seis praias do estado de São Paulo (Ubatumirim, Boraceia, Itaguaré, Barra do Una, Jureia e Ilha Comprida), três da Bahia (Taquari, Jauá e Imbassaí) e três de Alagoas (Ipioca, Praia do Francês e do Toco). “No total foram realizadas seis coletas, inicialmente com intervalos de seis meses e, depois, de um ano”, conta o biólogo Alexander Turra, do IO-USP, coordenador do trabalho. “Dessas, as mais poluídas são Boraceia e Itaguaré, Praia do Francês e Taquari.” O monitoramento também mostrou que, em São Paulo, o maior volume de lixo se acumula nas dunas ou restingas e é proveniente das atividades de pesca. No Nordeste, o grosso do material é encontrado na areia seca e vem do turismo.

Diante desses resultados, não é de se estranhar que o Brasil ocupe a 16a posição no ranking dos países mais poluidores dos mares, segundo um estudo realizado por pesquisadores americanos e divulgado em 2015. Eles estimaram a quantidade de resíduos sólidos de origem terrestre que entram nos oceanos em países costeiros de todo o mundo. Aqui, todos os anos são lançados nas praias entre 70 mil e 190 mil toneladas de materiais plásticos descartados. Para Sandra, o Brasil é um grande poluidor porque não há educação, conscientização, sensibilização, legislação, orientação e punição no que diz respeito ao lançamento de resíduos no oceano. “Somos todos omissos e culpados, população e Estado”, conclui.

Arraia-manta nada perto de plástico no litoral da Indonésia (Foto: Divulgação)

Mancini lista cinco condições para afirmar que o Brasil é um grande poluidor dos mares: economia razoavelmente forte; grande população; muita gente morando no litoral; muita troca internacional marítima e um péssimo gerenciamento de lixo de um modo geral. “Ainda falamos em ‘jogue o lixo no lixo’ e lutamos para acabar com os lixões”, afirma. “Não tem por que termos realidade e comportamento diferente quando falamos de poluição dos oceanos.”

Domínio chinês

A mesma pesquisa de 2015 mostrou que a China, a Indonésia e as Filipinas são os países que mais poluem os oceanos, descartando até 3,5 milhões de toneladas de plásticos por ano. Elas também aparecem nos primeiros lugares de outro levantamento, realizado pela ONG americana Ocean Conservancy. Juntos com a Tailândia e o Vietnã, são responsáveis por 60% dos resíduos desse material encontrados nos mares do mundo.

Segundo Sandra, também é importante lembrar os danos que os resíduos sólidos causam à fauna marinha, pois muitos animais morrem enroscados em linhas, sacos e redes de pesca perdidas. “Ou então por ingestão de pedaços de lixo de diversos tamanhos que ficam no seu trato digestivo por muito tempo e lhes dão sensação de saciedade, levando-os à morte por inanição”, acrescenta. “Além disso, muitos ficam aprisionados nas embalagens, tambores, outros enroscam-se e ferem-se letalmente nos resíduos.”

Barreira coletora de plástico que a organização The Ocean Cleanup pretende usar na Grande Mancha de Lixo do Pacífico (Foto: Divulgação)

O mais grave é que a situação tende a piorar. Um relatório recente, divulgado pelo governo britânico, concluiu que até 2025 os oceanos do planeta estarão três vezes mais poluídos com plástico. Outro estudo, tornado público em 2016 no Fórum Econômico Mundial de Davos, afirmou que até 2050 os mares da Terra terão mais pedaços desse produto do que peixes. São materiais que levam pelo menos 450 anos para serem totalmente decompostos.

Para tentar mitigar a situação atual e evitar que ela piore, a Ocean Cleanup está desenvolvendo um sistema de grandes barreiras flutuantes com telas suba­quáticas com o objetivo de coletar cinco toneladas de lixo por mês a partir dos próximos anos. “O esforço pode ser inócuo, no entanto, diante de um aumento desenfreado da produção de plástico que, segundo pesquisas, pode triplicar na próxima década”, alertou Lebreton. “É preciso reduzir o desperdício, criar opções biodegradáveis alternativas e, principalmente, mudar a forma como usamos e descartamos os produtos feitos com esse material.”

Depósito de detritos

Descoberta na segunda metade da década de 1980, a Grande Mancha de Lixo do Pacífico está na área do Giro Pacífico Norte, um dos cinco maiores giros oceânicos do mundo, entre a costa ocidental dos Estados Unidos e o Havaí. A mancha acumula resíduos trazidos pelas correntes oceânicas.


Os detritos (plástico fragmentado, em sua maior parte) encontrados nessas águas calmas não são detectados em imagens de satélite por causa de sua baixa densidade: apenas quatro partículas por metro cúbico. Somente quem está em embarcações que se encontram na região consegue vê-los.
Esboço de ação

A comunidade internacional também está se mexendo para tentar resolver o problema do lixo nos oceanos. Em 2011, foi criado o Compromisso de Honolulu, para discutir a questão de resíduos nos mares em nível global. O documento é dirigido a governos, indústrias, organizações não governamentais (ONGs) e demais interessados. Seu objetivo principal é servir como instrumento de gestão para a redução da entrada de lixo nos oceanos e praias, bem como retirar o que já existe.

Um dos resultados concretos do Compromisso de Honolulu foi a assinatura da Declaração Global Conjunta da Indústria dos Plásticos, da qual a Plastivida é signatária. Para implementar no Brasil esse compromisso mundial, a associação, como uma das entidades representantes da cadeia produtiva dos plásticos no país, e o IO-USP assinaram o convênio em 2012. A meta é se capacitar e desenvolver estudos científicos para embasar as discussões no Brasil sobre a questão do lixo nos oceanos.
Revista Planeta

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O futuro do emprego


O mercado de trabalho da forma como conhecemos está em plena mutação. Ao mesmo tempo que as novas tecnologias ameaçam muitas vagas, também criam outras; e os próprios profissionais já não querem mais o estilo de vida das gerações anteriores


No ritmo acelerado das tecnologias digitais e móveis, o futuro já começou a reorganizar as estruturas tradicionais de emprego e o mercado de trabalho. O que, por si só, já deixa qualquer um inquieto, somado a crises econômicas gera ainda mais preocupação com desemprego em massa e inadequação aos novos modelos. A isso ainda se acrescenta, no Brasil, a acalorada discussão sobre a proposta de reforma trabalhista do governo. Processos estão sendo automatizados, algoritmos e robôs estão substituindo pessoas e a inteligência artificial ameaça até mesmo atividades intelectuais.

Assim como o mercantilismo, no século 16, e a industrialização, no século 19, a atual revolução digital está alterando os modos de produção, as relações comerciais e de trabalho. O Banco da Inglaterra calcula que, nos próximos 10 a 20 anos, as máquinas poderão ocupar 50% das vagas de emprego do país e dos Estados Unidos, incluindo funções administrativas, de escritório e de produção.

A notícia pode parecer ruim, mas não necessariamente. Enquanto alguns ofícios e profissões tendem a se desmanchar, novas atividades e vagas estão surgindo. A conectividade está transformando onde e como fazemos as coisas e criando a economia colaborativa. Apesar de assustadora, a automação promete liberar as pessoas de trabalhos mecânicos e repetitivos para exercer sua criatividade, raciocínio e habilidades sociais em atividades mais interessantes.

“O pagamento por hora – ‘bunda-cadeira’, como eu chamo – tende a ir se extinguindo e os trabalhadores passarão a ser mais cobrados e remunerados pelos resultados que gerarem no seu dia a dia”, afirma Caroline Batista, especialista em auto­liderança, uma categoria de coaching que nasceu em função da nova era. “As pessoas precisam ­assumir a gestão das suas car­reiras. Essa é a melhor coisa que você pode fazer para não ser pego de surpresa.”
Seu próximo trabalho

Com tantas tendências redefinindo as relações de trabalho (leia infográfico nas páginas seguintes), surgem também conceitos de carreira. Identificada ainda nos anos 1970, a “carreira proteana” derruba as tradicionais barreiras para prestação de serviços, sem limite de lugar físico nem de exclusividade com o cliente. O profissional é remunerado pelo conhecimento transmitido e pelo resultado gerado.

Já a “carreira inteligente” valoriza a forma de atuar de cada indivíduo. Como o conhecimento técnico todo mundo tem, passam a contar mais a experiência de vida de cada um e as competências que desenvolveu em prol da sua carreira. O profissional se torna uma espécie de mentor e é remunerado por isso.

Na “carreira sem fronteiras”, por sua vez, os profissionais são completamente independentes e trabalham para diferentes países; os pagamentos são feitos por cartão­ de crédito. Se a concorrência é globalizada, as oportunidades laborais também são.



Caroline lembra, porém, que a legislação brasileira, ainda muito engessada, não está preparada para esses novos formatos. O que a atual reforma trabalhista propõe aponta nesse sentido, mas ainda deixa questões sem resposta e assusta a concepção mais tradicional de emprego. “Além disso, é preciso pensar em um plano de migração para as pessoas que estão sendo substituídas por robôs”, alerta a coach.

Na Suécia estão ocorrendo experiências de redução da jornada de trabalho para seis horas diárias, por enquanto com bons resultados. E na Suíça a população foi chamada, em junho, para um plebiscito que decidiu se se estabelecia, ou não, uma renda básica universal para os cidadãos de todas as idades – independentemente de estarem empregados. Quase 80% rejeitaram a proposta.


Ocupação x realização

A carreira tradicional – tão focada em salário, nível hierárquico e status – vai perdendo lugar para outros critérios de sucesso. Nessa nova cultura em formação, o contracheque perde importância frente à autorrealização e ao sentido no que se está fazendo. Os profissionais de hoje estão interessados em causar impacto positivo na sociedade com seu trabalho.

Toda essa transformação começou com a geração Y (nascidos entre 1980 e 1995), também conhecida como Millennials, que entrou no mercado de trabalho questionando os modelos anteriores. Diferentemente da geração X (nascidos nos anos 1960 e 1970), que queria ascender rapidamente e chegar aos 30 anos ganhando muito dinheiro, os Y já não queriam mais se matar de trabalhar, preferiam ter tempo para ser felizes. Agora, com a chegada ao mundo laboral da geração Z (nascidos na era digital), as mudanças são ainda mais demandadas e velozes.

“A geração Z quer ser feliz o tempo todo, quer gostar do que faz como trabalho. É uma geração que vai passar por muitas carreiras na vida”, analisa Caroline. Ela mesma, hoje com 32 anos, já viveu na pele a passagem para outra profissão. Depois de dez anos na empresa de marketing que criou com colegas, não sentia mais vontade de continuar nessa área. “Na época já atuava como coach interno lá dentro, me identificava muito com essa atividade e fui me desenvolver nisso no exterior.”


Para a jornalista Claudia Giudice, demitida depois de mais de 20 anos numa mesma empresa (leia reportagem “Reescrevendo a própria carreira” ao final da reportagem), como parte de um enorme corte de funcionários – algo muito frequente nos dias de hoje –, essas mudanças são um ruído e um susto para sua geração e as anteriores. Para ela, a perenidade no trabalho não faz mais sentido. “A gente conseguia controlar os movimentos, agora não consegue mais.”

O lado bom, a seu ver, é realizar diferentes aptidões e desejos numa mesma vida e não precisar mais se prender a velhos modelos. “Não sabemos para que lado vão as profissões. Temos vidas produtivas mais longas e os jovens de hoje não vão mais começar e terminar a vida profissional na mesma carreira.” Mas reconhece que, para quem gosta de estabilidade e segurança, a situação é desafiadora: “está mais para o filme Apertem os Cintos… O Piloto Sumiu!”

Por isso, ela defende que a melhor forma de lidar com as incertezas de hoje é se manter preparado para as mudanças. “Com o mercado como está, é bom ter à mão uma saída para a situação que se está vivendo.” Mas destaca que empreender não é a única saída. Sua sugestão é que as pessoas apostem no que gostam de fazer, em atividades que sintam prazer em fazer. 

A coach Caroline concorda. O fundamental é afastar as imposições familiares e conhecer a si mesmo para descobrir do que realmente se gosta. “Todos têm múltiplos talentos. Ninguém tem que ter nascido para atuar numa coisa só”, instiga. Hoje é possível fazer um hobby render dinheiro, sem necessariamente ter de empreender. Assim como não é mais necessário fazer uma faculdade. “As universidades, aliás,­ vão ter de evoluir para certificadoras de conhecimento dentro dessa realidade do conhecimento livre e sob demanda, como Harvard e Yale já começaram a fazer.” Para ela, no Brasil, títulos ainda costumam contar mais do que a experiência. “Lá fora é o inverso.”
Choque geracional

Mesmo o empreendedorismo ganha hoje novos contornos. Com 27 anos, Francisco Forbes (leia reportagem “Máquina de empreender” ao final da reportagem) pode falar disso com propriedade. Já pôs de pé três empresas de sucesso e ensina em três universidades. Ainda acha tempo para pilotar helicóptero e estudar saxofone – se declara apaixonado por jazz. “O jazz­ não é o que, é o como. É a forma como se faz. Posso tocar qualquer música jazz.”

O aplicativo Uber e o táxi: maneiras diferentes de fazer a mesma coisa

Para ele, a forma de fazer as coisas é o que marca o novo mercado: o sistema de aluguel de acomodações Airbnb e o de transporte de passageiros Uber, por exemplo, fazem basicamente o mesmo que a rede hoteleira e o taxista já faziam, mas de um jeito diferente.

No caso do empreendedorismo, as grandes diferenças com os negócios abertos pelas gerações anteriores é que as empresas iniciantes (startups) de hoje já não estão pensadas para dar lucro, mas sim para durar menos tempo e serem vendidas. “Além de dependerem de injeção de capital para ter um impulso de crescimento”, lembra.

O ambiente organizacional nas startups – até mais do que em outras empresas – enfrenta o choque geracional: os profissionais mais velhos se sentem incomodados de ser liderados por pessoas da idade dos filhos, e os mais novos vêm criando resistência em trabalhar com quem pensa de forma muito diferente da deles. “Mas precisamos nos entender, não vamos conseguir viver de uma geração só. Precisamos das habilidades que os mais velhos podem trazer.”

Esse atrito entre gerações acontece nas empresas e em casa. “Os pais estão claramente discordando de os filhos fazerem essa migração do conforto e estabilidade do emprego tradicional, para o risco do modelo de startup”, comenta Francisco Jardim, sócio-fundador do fundo de investimento SP Ventures. Isso porque as empresas iniciantes oferecem salários mais baixos e quase nada de benefícios, mas dão aos funcionários participação acionária. “É como trocar conforto e benefício de hoje pelo potencial futuro”, diz.

Se as gerações anteriores buscavam bônus semestral e anual, plano de saúde e de carreira, hoje, segundo Jardim, a garotada está pedindo outras coisas. Principalmente: propósito (uma missão no planeta), autonomia (ninguém está mais disposto a ser microgerenciado, querem liberdade para poder criar e pensar) e espaço para exercer o próprio potencial (oportunidade de crescimento pessoal e profissional conjunto). “Um exemplo disso tudo é o Google que, por exemplo, permite aos funcionários dedicarem 20% do seu tempo ao que quiserem.”

O futuro do emprego promete responder às mudanças do mercado e, em grande parte, ao desejo dos profissionais. A revolução que vivemos não é só digital, mas também comportamental.

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Reescrevendo a própria carreira

Claudia Giudice começou sua carreira de jornalista com 16 anos e ficou por mais de duas décadas na mesma empresa, escalando a hierarquia corporativa. De repórter estagiária chegou à diretora superintendente de marcas femininas da Editora Abril. E planejava se aposentar ali em 2020, para então assumir a Pousada A Capela, em Arembepe (BA), que abriu em sociedade com uma empresária local, Níl Pereira, em 2012. Mas, em 2014, foi demitida em um grande corte. Experiência que inspirou a criação do seu blog Vida sem Crachá, editado em livro no ano passado.

Apesar de Claudia já ter uma carta na manga, a demissão a deixou desorientada por certo tempo. A primeira atitude foi mudar sua forma de consumir. Cada dinheiro economizado era um tempo a mais para decidir o que ia fazer. Trocou o carro pela bicicleta, cancelou a TV por assinatura, mudou para uma casa menor. “Liberdade individual é proporcional à segurança financeira. A gente descobre que pode viver com muito menos e que é uma delícia.” Diferentemente do que se pode imaginar, Claudia não vê o momento como uma crise, mas como uma “transformação” devido à revolução digital. “Estamos dentro do processo histórico e é difícil avaliar o quanto isso significa. Quero viver mais uns 20 anos para poder falar disso como testemunha ocular da história.”
Menos pressão, mais exigência

Enquanto a sócia cuida da parte mais operacional na pousada, Claudia responde pela gestão das reservas, pelo financeiro e pelo marketing, atividades que pode executar a distância. (Durante a semana, ela geralmente está em São Paulo.) Claudia acredita que trabalha mais como empreendedora do que como funcionária. “Não tenho mais a pressão do chefe. Mas sou mais exigente agora do que era como executiva.” Nem por isso parou por aí. A dupla está abrindo uma loja para vender arte popular e móveis (que já atraíam o interesse dos hóspedes da pousada) e administrar reformas e manutenções, para atender as casas de veraneio da vizinhança. —–
Com música e dentes

O confisco da poupança, em 1990, época em que a inflação passava dos 100% ao mês, levou o então dentista Carlos Althier de Souza Lemos Escobar a perder tudo o que tinha, inclusive sua clínica. “O Brasil me fez fechar as portas e dispensar 17 funcionários”, lembra do episódio ocorrido quando tinha 53 anos de idade. Aquela crise só não tirou a música de Guinga, como é conhecido o violonista de renome internacional.

Seu caso com o violão era antigo, mas foi interrompido pelo consultório. Já com 16 anos, Guinga acompanhava artistas como Beth Carvalho, Clara Nunes e Cartola. Como músico mal pago que precisava se sustentar, decidiu viver como doutor quando entrou na faculdade de odontologia, aos 20 anos. “Não me arrependi de ter mudado. Tive muitos anos de estabilidade e pude formar minha família.” De forma alguma a vida foi fácil. Trabalhava de 6h30 às 22h, de segunda a sábado, sem nunca tirar férias. Mesmo assim, nunca deixou de tocar. “Quando a gente quer, sempre arranja tempo. Compunha muito no consultório. Mas minha ideia era voltar para a música só quando tivesse meu cavalo amarrado na sombra.”

Ele reconhece que a situação hoje não está boa. “No Brasil, o mercado sempre foi complicado.” Por isso aprendeu a diversificar. Só no primeiro semestre deste ano foi três vezes à Europa e uma aos Estados Unidos para fazer shows. “Hoje, com 66 anos, tenho nome firmado; não vendo muito, mas sou bem-sucedido e respeitado.” —–
Máquina de empreender

Ainda no ensino fundamental, Francisco Forbes começou a programar e desenvolver sites. O pagamento era feito na forma de permutas com as empresas que atendia. Apesar de ter se formado arquiteto no Brasil e estudado cinema nos Estados Unidos, nunca trabalhou com nada disso. Ligou-se cada vez mais ao mundo digital e se tornou um empreendedor em série.

Depois de trabalhar com marketing digital nos EUA, voltou ao Brasil, em 2007, decidido a abrir sua própria empresa na área. Driblou as dificuldades se tornando o braço digital de grandes agências de propaganda. “Em um ano já tinha 70 funcionários. Aprendi errando de todas as maneiras possíveis. Descobri o que era imposto, tomei processo trabalhista e levei golpe”, conta.

Quando fundos de investimento ao estilo norte-americano vieram para o Brasil, Forbes participou de uma série de startups, como Groupon, Dafiti, Submarino, assim como dos próprios fundos. Logo um desses fundos comprou sua agência e, com outros dois negócios, montou a Infracommerce, da qual Forbes foi vice-presidente por dois anos. Hoje, ela é o maior distribuidor de tecnologia e desenvolvimento para comércio eletrônico da America Latina, com clientes do porte de Danone, Unilever e Ray-Ban.

Forbes saiu de lá em 2014 para montar a Seed, empresa que leva ao varejo físico a mesma inteligência das métricas usadas no e-commerce. Um robozinho instalado na porta da loja e integrado ao caixa conta quantas pessoas entraram, se compraram, o que compraram, se voltaram outro dia, etc. “Com essas informações, varejistas como Ponto Frio, Centauro, Ri Happy, bancos e aeroportos podem tomar decisões sobre promoções, investimentos em marketing, reformas físicas e otimizações.”

Cultura da horizontalidade

Apesar do extenso currículo, Forbes ainda tem 27 anos. “A barreira do tempo acabou. Hoje tenho mais valor – do ponto de vista de geração de dinheiro e de receita – do que muito executivo com 20 anos de empresa”, diz. Ele destaca que sua geração está criando uma nova cultura marcada por horizontalidade, colaboração, transparência e ética. “As notícias correm muito rápido – para o bem e para o mal. Antes era preciso sair nos jornais, hoje basta o Facebook.” 

Recentemente, ele foi convidado a ser sócio de uma cervejaria. Mas alerta que o sucesso não vem fácil: é preciso trabalhar muito. “VIvo uma constante angústia de liquidez, não controlo minha agenda e já fui parar no hospital por estresse.”
Revista Planeta

Homem x Máquina


Enquanto a automatização reduz o número de empregos dependentes da força física, a inteligência artificial evolui a ponto de assumir ocupações tipicamente humanas. Isso pode ser mais preocupante do que reconfortante


Desde que as primeiras máquinas começaram a atuar em fábricas, as queixas sobre a perda de postos de trabalho são constantes. Mas a consultoria internacional Deloitte revelou, em um estudo divulgado em 2015, que a tecnologia, na verdade, criou mais empregos do que eliminou.

“A tendência de reduzir postos de trabalho na agricultura e na indústria é compensada pelo rápido crescimento nos setores de serviços, criatividade e tecnologia”, dizem os economistas Ian Stewart, Debapratim De e Alex Cole, que analisaram dados dos últimos 144 anos para avaliar como os avanços na tecnologia afetaram o emprego na Inglaterra e no País de Gales. Eles falam em uma “mudança profunda” nas relações de trabalho.

Os dados confirmaram a ideia de que os robôs livram o homem de trabalhos pesados ou degradantes. As inovações tecnológicas reduziram os postos de trabalho em atividades maçantes, perigosas e repetitivas. O setor agrícola foi o primeiro a se beneficiar disso. No entanto, experiências recentes apontam que até áreas consideradas “criativas” podem ser ameaçadas pela inteligência artificial. Carl Frey, pesquisador da Universidade de Oxford (Inglaterra) que analisa o crescimento do trabalho automatizado, listou cerca de 350 atividades que poderiam ser computadorizadas. Entre elas, algumas serão dominadas pelos chamados softwares bot, capazes de simular ações humanas.

No último Festival Internacional de Cinema de Tóquio, críticos chegaram a saudar a atuação da androide Geminoid F., estrela da ficção científica Sayonara (escrita e dirigida por Koji Fukada). Na primeira “interpretação” de um robô, Geminoid F. vive Leona, em um cenário pós-guerra nuclear no qual há somente duas sobreviventes, ela e Tânia – esta última interpretada pela atriz Bryerly Long. Os âncoras dos telejornais da BBC também tiveram de se adaptar aos novos colegas de trabalho quando robôs passaram a operar as câmeras. Essas máquinas já haviam invadido o jornalismo em 2015, quando o diário inglês Financial Times passou a usá-las como repórteres do mercado financeiro.

Cuidadores de idosos

Com a população mais velha do mundo e a menor taxa de natalidade, o Japão viu nos robôs a solução para tomar conta dos idosos. As máquinas ajudam os mais velhos a se mover, levantar-se, deitar e, num extremo de humanização, fazem companhia a eles.

Em Sayonara, Bryerly Long (dir.) e a robô Geminoid F.

Kate Darling, pesquisadora do Massachusetts Institute of Technology (MIT) especialista nas relações humanos – robôs, é menos alarmista em relação à perda de postos para as máquinas. “A automação pode até ter substituído os humanos em algumas áreas, mas a tecnologia atual ainda não é suficiente para o trabalho totalmente sem humanos. Isso significa que boa parte do desenvolvimento hoje vai na direção de termos robôs criados para trabalhar com os humanos, em vez de substituí-los”, afirmou a PLANETA.

Valdemar Setzer, professor do departamento de Ciência da Computação da USP, preocupa-se com uma troca de mão de obra. “Os robôs deveriam substituir o trabalho humano apenas em duas condições: na medida em que o trabalho degrada o ser humano e na medida em que se dê um trabalho mais digno para a pessoa substituída”, avalia. Para ele, há risco de as pessoas tratarem colegas como máquinas.



Pesam ainda contra os androides casos contrários à lógica de que máquinas não erram. Um robô de uma fábrica da Volkswagen na Alemanha matou acidentalmente um funcionário em 2015. Este ano, um acidente com um carro autônomo da montadora Tesla fez uma vítima fatal na Flórida. Kate lembra que já existem máquinas que simulam emoções, característica que deverá melhorar em breve. “Como lidar quando eles atingirem um grau de manipulação das emoções?”, pergunta-se.

Revista Planeta

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Glossário do Antropoceno


Para compreender os debates sobre o Antropoceno, não basta conhecer apenas a palavra criada em 1980 pelo biólogo americano Eugene F. Stoermer e popularizada no início dos anos 2000 pelo cientista holandês Paul Crutzen. Confira a seguir alguns termos técnicos importantes

A poluição do ar causada pelo ser humano é uma das marcas registradas do Antropoceno (Foto: iStock)


Biocapacidade
Conceito apresentado pela primeira vez no início dos anos 1990 por Mathis Wackernagel, defensor suíço da sustentabilidade, e pelo ecologista canadense William Rees. Sua pesquisa sobre a capacidade biológica do planeta exigida por uma determinada atividade humana levou-os a definir dois indicadores: a biocapacidade e a pegada ecológica. Desde 2003, esses indicadores foram calculados e aprimorados pela Global Footprint Network (organização não governamental dedicada à promoção de ferramentas voltadas para o desenvolvimento da sustentabilidade). Ela define a biocapacidade como “a capacidade dos ecossistemas de produzir materiais biológicos usados pelas pessoas e absorver os resíduos gerados por seres humanos, sob esquemas de gestão e tecnologias de extração correntes”.

Capitaloceno
Termo criado pelo historiador ambiental e geógrafo americano Jason W. Moore como alternativa a Antropoceno. Segundo ele, o capitalismo criou a crise ecológica global, levando-nos a uma mudança da era geológica. Variante do Capitaloceno, a noção de Ocidentaloceno, defendida pelo historiador francês Christophe Bonneuil, afirma que a responsabilidade pela mudança climática está nas nações ocidentais industrializadas e não nos paí­ses mais pobres.

Coevolução de genes e cultura
Segundo o sociobiólogo americano Edward O. Wilson, os genes possibilitaram o surgimento da mente e da cultura humanas (linguagem, parentesco, religião, etc.) e, inversamente, traços culturais poderiam favorecer a evolução genética em troca. Isso acontece por meio da estabilização de certos genes que conferem uma vantagem seletiva aos membros do grupo em que o comportamento cultural é observado. Vários antropólogos e biólogos criticaram essa ideia de “coevolução” entre genes e cultura, argumentando que a transmissão de traços culturais é um fenômeno volátil que não obedece às leis da evolução darwiniana. Eles também afirmam que, ao longo dos últimos 50 mil anos, a humanidade passou por significativas transformações culturais, enquanto o acervo genético humano permaneceu inalterado (com apenas algumas exceções).

Época geológica
A escala de tempo geológica é caracterizada por diferentes tipos de unidades de tempo – éons, eras, períodos, épocas e idades. Para ser reconhecida como tal, cada subdivisão deve ter condições paleoambientais (características climáticas), paleontológicas (tipos fósseis) e sedimentológicas (resultantes da erosão por seres vivos, solos, rochas, aluvião, etc.) semelhantes e homogêneas. A Comissão Internacional de Estratigrafia e a União Internacional de Ciências Geológicas (Iugs) definem os padrões globais para os cronogramas geológicos. Vivemos atualmente no Holoceno, época associada ao sedentarismo e à agricultura humana. Se todas as condições acima forem cumpridas, o Antropoceno poderá em breve ser definido como uma nova época geológica.

Mercado de rua na Índia: os países pobres não são responsáveis pelas mudanças no clima (Foto: iStock)

Esferas
Para o mineralogista e geólogo russo Vladimir Vernadsky, que criou o conceito de biosfera em 1926, a Terra é constituída pelo entrelaçamento de cinco esferas distintas – a litosfera, a rígida camada exterior da rocha; a biosfera, compreendendo todos os seres vivos; a atmosfera, o envelope de gases conhecido como ar; a tecnosfera, resultante da atividade humana; e a noosfera, a parte da biosfera ocupada pela humanidade pensante, incluindo todos os pensamentos e ideias. Outros autores acrescentaram a essa lista as noções de hidrosfera (todas as águas presentes no planeta) e criosfera (gelo).

Grande Aceleração
Os cientistas concordam que, desde a década de 1950, os ecossistemas foram modificados mais rápida e profundamente do que nunca – sob os efeitos combinados de aumento sem precedentes no consumo de massa (nos países pertencentes à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), crescimento populacional dramático, crescimento econômico e urbanização. O químico americano Will Steffen chamou esse fenômeno de “Grande Aceleração”.

Grande Divergência
Expressão criada pelo historiador americano Kenneth Pomeranz para designar o grande avanço industrial que separou a Europa da China desde o século 19. Segundo Pomeranz, a distribuição geográfica desigual dos recursos de carvão e a conquista do Novo Mundo deram o impulso decisivo à economia europeia.

Complexo viário nos EUA: paisagem característica da tecnosfera (Foto: iStock)

Pegada ecológica
Segundo a Global Footprint Network, este termo é “uma medida de quanta área de terra e água biologicamente produtivas um indivíduo, população ou atividade requer para produzir todos os recursos que consome e absorver os resíduos que gera, usando as práticas prevalecentes de tecnologia e gerenciamento de recursos”.

Planeta (como unidade de medida)
A pegada ecológica tem um “equivalente planetário”, ou o número de planetas necessários para suportar as necessidades humanas a qualquer momento. A fim de determinar a pegada ecológica de um país, mede-se o número de Terras necessário para a população mundial se consumisse tanto quanto a população daquele país. Segundo o World Wildlife Fund (WWF), “todos os anos, a humanidade consome o equivalente a 1,7 planeta para atender suas necessidades”.

Sexta Extinção
A Grande Extinção é o termo dado a um breve evento no tempo geológico (vários milhões de anos) durante o qual pelo menos 75% das espécies de plantas e animais desaparecem da superfície terrestre e dos oceanos. Das cinco Grandes Extinções registradas, a mais conhecida é a do Cretáceo-Terciário, há 66 milhões de anos, que incluiu o desaparecimento dos dinossauros. O biólogo americano Paul Ehrlich sugeriu que agora entramos na sexta Grande Extinção (embora, por enquanto, sua destruição em termos de número de espécies seja consideravelmente menor do que nas outras cinco) – 40% dos mamíferos do planeta viram sua faixa de habitat reduzida em 80% entre 1900 e 2015.

Tecnodiversidade
Palavra que se refere à diversidade de ecossistemas, espécies e genes e a interação entre esses três níveis em um dado ambiente. Por analogia, a tecnodiversidade refere-se à diversidade de objetos tecnológicos e aos materiais usados para produzi-los.

Tecnofósseis
Fósseis são os restos mineralizados de indivíduos que viveram no passado. Por analogia, os tecnofósseis são os restos de objetos tecnológicos.


Tecnosfera
A tecnosfera refere-se à parte física do ambiente que é modificada pela atividade humana. É um sistema globalmente interligado, compreendendo seres humanos, animais domesticados, terras agrícolas, máquinas, cidades, fábricas, estradas e redes, aeroportos, etc.
Revista Planeta

domingo, 20 de janeiro de 2019

Como disputas ideológicas no país chegaram ao parto


Mariana Alvim - @marianaalvim

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Para representantes de correntes conservadoras, debate sobre humanização do parto tem conexão com defesa do aborto

Parto normal ou cesariana? A pergunta, que até há algum tempo podia ser simplesmente um debate familiar sobre a chegada de um bebê, se tornou para alguns setores da sociedade e até para políticos uma expressão de diferenças ideológicas entre liberais e conservadores.

No período eleitoral de 2018, sites de cada um destes espectros associaram a discussão sobre as vias de parto a orientações políticas e até a candidatos.

Na véspera do 2º turno da eleição presidencial, um texto publicado no portal Jornalistas Livres dizia: "Bolsonaro coloca em risco parto humanizado no Brasil". O portal, que se define como uma "mídia alternativa em defesa da Democracia, da Cultura, dos Direitos Humanos e das Conquistas Sociais", inclui em seu conteúdo tags como "#LulaLivre" (em referência ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba após condenação em segunda instância) e matérias favoráveis a líderes de esquerda, como "Posse de Nicolás Maduro recebe apoio em todo o mundo".

Assinado por Maíra Libertad, enfermeira obstétrica do Coletivo de Parteiras, a postagem de 17 de outubro denunciava o risco de retrocesso, com a eleição de Bolsonaro, de políticas de governos petistas em prol da ampliação dos partos normais e redução no número de cesáreas.

Mas o texto de Libertad logo foi classificado uma semana depois como "fake news" por um outro portal, o Estudos Nacionais - este marcado por repetidos artigos contra o aborto e títulos como "É Jair, ou já era!" (fazendo referência ao presidente Jair Bolsonaro), "A verdadeira educação está fora das universidades brasileiras" e "Entidades de controle populacional mundial continuam investindo no Brasil".

A postagem do Estudos Nacionais criticou o fato do nome de Bolsonaro ter sido citado no texto de Libertad sem que o candidato tivesse alguma vez se manifestado sobre o debate relativo às vias de parto: "Tratou-se de uma afirmação baseada em meras suposições". Ainda segundo o portal, a publicação da enfermeira seria uma expressão de que "a defesa do parto humanizado é vista pela esquerda como parte de suas pautas".

Este é apenas um dos textos publicado no Estudos Nacionais em que a defesa do parto humanizado é associado à esquerda.

A chamada humanização da gestação indica a busca por procedimentos, do pré-natal ao parto, que não sejam desrespeitosos e excessivamente artificiais para grávida, bebê e família. Com estas premissas, tanto partos normais quanto cesarianas podem ser "humanizados".

Mas essa tendência frequentemente vai ao encontro do clamor por alternativas à cesariana - uma cirurgia. Alguns grupos de ativistas e pesquisadores também reivindicam que o nascimento possa ser feito em outros lugares que não os hospitais, como a própria casa das famílias, e com a participação de outros profissionais da saúde que não necessariamente sejam médicos.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cesarianas podem salvar vidas de mulheres e bebês - mas apenas quando tecnicamente necessárias, como no caso de trabalho de parto prolongado, sofrimento fetal ou quando o bebê está numa posição anormal.

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Segundo um texto no site Estudos Nacionais, 'a defesa do parto humanizado é vista pela esquerda como parte de suas pautas'
Representante de nova chapa do Cremerj diz que diretoria é 'conservadora'

Em entrevista à BBC News Brasil, Libertad disse ter escrito que "Bolsonaro coloca em risco parto humanizado no Brasil" como diagnóstico de um contexto.

"No programa de governo do Bolsonaro, havia pouco material sobre a saúde e nenhuma menção à questão do parto. Não tínhamos certeza de que haveria retrocesso, mas tudo indicava que sim", diz.

A enfermeira obstetra justifica essa percepção citando a aproximação da família Bolsonaro de nomes da área médica que têm defendido abertamente a limitação do aborto e criticado os movimentos pela humanização do parto.

É o caso do ginecologista Raphael Câmara, coordenador do Grupo de Trabalho Materno Infantil do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio). Ele esteve sob os holofotes em agosto, quando se colocou contrário à legalização do aborto em uma audiência pública no STF (Supremo Tribunal Federal), e já publicou diversos artigos questionando a defesa da redução de cesáreas.

Sua chapa no Cremerj também esteve representada em uma foto, publicada na coluna de Ancelmo Gois, do jornal O Globo, em que Flávio Bolsonaro (senador eleito pelo PSL e filho de Jair Bolsonaro) aparece ao lado de dois membros da nova diretoria fazendo o sinal de armas - marca da família Bolsonaro. A imagem, ambientada na cerimônia de posse da chapa, veio à tona em outubro.

Câmara disse não ter ido à cerimônia, mas afirmou à BBC News Brasil por telefone que a nova diretoria "foi eleita assumidamente com uma pauta mais conservadora".

"A maioria das pessoas é de direita. Então, ideologicamente, estamos mais para o lado do Bolsonaro", afirma o ginecologista, acrescentando ter votado e feito campanha por Bolsonaro.
Congresso internacional é alvo de nota de conselho

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Divergências no campo da política e da sociedade também recaem no debate sobre as vias de parto

Câmara, em nome da nova diretoria, assinou por sua vez uma nota de repúdio ao conteúdo de palestras do 22º Congresso Mundial da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). O congresso, o maior a nível internacional para esta especialidade, foi sediado no Rio em outubro.

Parte da programação, referente ao aborto e às vias de parto, foi acusada de parcialidade. "[O Cremerj repudia o congresso] por não dar um único espaço ao contraditório, defendendo a manutenção da legislação atual sobre o aborto (...) deixando claro que o congresso tomou posição ideológica num tema que deveria ser técnico", diz a nota do conselho.

O texto também defende o "parto humanizado em hospital com médico" e clama pelo "bem-estar materno-fetal sem demonizar o obstetra".

Em entrevista à BBC News Brasil, Câmara disse que a manifestação foi motivada por "centenas" de denúncias coletadas pela entidade.

"O que aconteceu foi que eles (a organização do congresso) escolhiam as maiores salas para falar do aborto", disse Câmara, coordenador do Grupo de Trabalho Materno Infantil do conselho. "Deve-se debater o aborto, mas os dois lados deveriam ter direito a voz".

Ele também aponta para a conexão entre as reivindicações pela humanização do parto e pelo aborto.

"Quem defende uma coisa, defende outra. Tanto que, no mundo do parto humanizado, aquelas pouquíssimas pessoas contrárias ao aborto são demonizadas", disse Câmara por telefone, citando o nome de uma colega que deixaria de receber potenciais pacientes por, sendo contrária ao aborto, ser boicotada em grupos de grávidas e mães nas redes sociais.

A programação do congresso da Figo incluía palestras classificadas no site do evento em temas como "obstetrícia clínica", "saúde sexual e direitos humanos", "oncologia ginecológica" e "saúde fetal pré-natal". O conteúdo foi definido por uma comissão científica formada por 13 especialistas de 12 países diferentes - um deles do Brasil, Marcos Felipe Silva de Sá, diretor científico na Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), entidade que mediou a nível local a produção do evento.

Parte da programação dedicou-se a abordar técnicas e debates sobre políticas referentes ao aborto. Havia palestras e oficinas com títulos como "Como o estigma do aborto impacta a todos nós" e "Aborto seguro: recomendações da OMS em abortos médicos".

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Humanização da gestação indica a busca por procedimentos, do pré-natal ao parto, que não sejam desrespeitosos e excessivamente artificiais para grávida, bebê e família; com estas premissas, tanto partos normais quando cesarianas podem ser 'humanizados'

Também membro da Febrasgo, onde é diretor de Defesa e Valorização Profissional, Juvenal Barreto diz que não percebeu anormalidades ou conflitos no decorrer do congresso internacional.

Titular da diretoria da entidade, Barreto explica que a presença de palestras relativas ao aborto atende a demandas dos participantes, oriundos de vários países e com interesses técnicos.

"Um congresso internacional trata de assuntos dos mais diversos. O aborto é proibido no Brasil, mas liberado em outros países do mundo. Fala-se em um contexto mundial. Os participantes não vieram para o Brasil para discutir zika na gravidez, por exemplo", afirmou por telefone à BBC News Brasil.

Segundo o representante da Febrasgo, a entidade, como representante local, não tem participação alguma na decisão de quem e quais assuntos serão apresentados. Ele também refuta a acusação de desequilíbrio na visibilidade dada ao tema do aborto.

"O tamanho das salas foi definido apenas por contingências operacionais. Não havia nenhuma intenção de 'doutrinar', como foi interpretado", diz.
Sites conservadores monitoraram programação do congresso

Os fatos de haver participantes do mundo todo e de o congresso não tratar exclusivamente de temas brasileiros, no entanto, não impediu que sites e entidades contrárias ao aborto tomassem o evento como uma afronta. Ainda antes do congresso, que ocorreu entre 14 e 19 de outubro no centro de convenções RioCentro, o congresso da FIGO foi acompanhado de perto por sites conservadores, como o Estudos Nacionais, que vincularam interesses pró-aborto à discussão sobre a humanização do parto.

Um texto de 19 de outubro sobre o congresso, publicado no Estudos Nacionais, afirma, sem dar detalhes, que uma "tendência e reivindicação do parto humanizado tem sido incluída dentro da narrativa de ONGs que tradicionalmente lutam pela legalização do aborto".

No mesmo portal, um outro texto daquele mês afirmou que um fator que une as duas pautas é o "conceito da autonomia e empoderamento feminino".

Um outro site que analisou e criticou a programação do congresso da Figo foi o Aleteia, portal internacional patrocinado por fundações católicas e disponível em oito idiomas. Apenas a página no Facebook do site em português tem mais de 700 mil curtidas. O site traz como mote a frase "Vida plena com valor - Estilo de vida, plenitude e valores que permanecem" e seções como "histórias inspiradoras", "espiritualidade" e "viagem e cultura".

Um texto no site detalha e classifica as atividades do congresso como sendo uma orientação para "matar bebês" e denuncia interesses de ONGs, fundações e clínicas de abortos no evento.
Janaina Paschoal: 'Obstinação pelo parto normal'

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No Twitter, a deputada estadual eleita por SP Janaina Paschoal endossou nota do Cremerj

A nota da Cremerj foi, por sua vez, catapultada nas redes sociais pela deputada estadual eleita em São Paulo Janaina Paschoal (PSL). O posicionamento, publicado em 18 de outubro, foi multiplicado por Paschoal, no Twitter e no Facebook. Ela citou o que seria um "viés ideológico no Congresso da Figo": "Ciência pressupõe diálogo, não monólogo!"

Escrevendo à BBC News Brasil por WhatsApp, a deputada estadual eleita por São Paulo afirmou que não é "contrária a nenhum tipo de parto" e que toda mulher deve escolher pela melhor opção, "sendo certo que o olhar médico não pode ser desprezado".

"O que me importa é preservar a vida e a saúde de mãe e bebê. Insistir num parto normal, quando o quadro indica ser inviável, não é inteligente. Em uma audiência, eu ouvi uma médica testemunhar que o parto normal tem preferência, pois os alunos precisam aprender. O que é isso? As parturientes são cobaias?", questionou.

"Estou pensando nas mulheres mais simples, que acabam reféns dos modismos das mais abastadas", escreveu.

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Paschoal fala em 'mantra da epidemia da cesárea'

Em agosto, Paschoal escreveu no Twitter que reivindicações pelo parto humanizado teriam enveredado para uma "obstinação pelo parto normal", motivada pelo "mantra da epidemia de cesárea".

Perguntada sobre casos ou dados de mulheres que teriam sido prejudicadas por tal "obstinação", Paschoal afirmou que teve como base relatos aos quais teve acesso como advogada e durante a campanha, e também em conversas com o doutor Raphael Câmara.

Segundo o médico, ele e Paschoal se aproximaram em uma audiência pública no STF sobre a interrupção da gravidez, em agosto.

"O nosso grupo, contra o aborto, era bem menor. Então, acabamos ficamos bem próximos. O Magno Malta (senador não reeleito pelo Partido da República, próximo a Bolsonaro) também estava lá", explicou.
Debate sobre taxa de cesarianas no Brasil

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Instituições como a OMS têm alertado para uma 'medicalização crescente dos processos de parto'

Câmara é autor de diversos artigos publicados na internet e em jornais onde questiona a validade científica, o financiamento e o "conflito de interesse ideológico" que permeia debates sobre abortos e cesáreas.

Ele põe sob suspeita, por exemplo, dados do número de abortos ilegais no Brasil. Os dados oficiais que existem são de abortos legais - segundo o Ministério da Saúde, em 2016 e 2017 eles foram da ordem anual de 1,6 mil.

Já sobre abortos clandestinos, por motivos óbvios - afinal, a interrupção da gravidez, com algumas exceções, é considerada crime -, não há dados consolidados. Câmara questiona a validade científica de dados levantados por estudos e ONGs que falam em centenas de milhares de abortos ilegais no país.

Ele também põe em dúvida os benefícios do parto normal e as metas internacionais para redução de cesarianas, apesar das orientações da Organização Mundial da Saúde.

Em 2015, a OMS publicou um posicionamento sobre tais metas, afirmando que, embora a comunidade acadêmica internacional tenha considerado nas últimas décadas a taxa ideal de cesáreas na faixa entre 10% e 15% dos partos, particularidades locais e questões metodológicas tornam difícil a definição de uma meta unificada.

Mas, naquele mesmo ano, a organização apontou no Brasil uma "verdadeira cultura da cesariana", sendo o país um dos expoentes no mundo da "epidemia de cesarianas". Dados do Ministério da Saúde mostram que, naquele ano, 55,5% dos partos feitos no país foram cesáreas e 44,5% partos normais.

Um estudo publicado no periódico The Lancet estimou que, em 2015, o percentual mundial de partos por cesárea foi bem menor que no Brasil: uma média de 21%.

A OMS coloca-se claramente pela necessidade de redução das cesáreas, afirmando que este procedimento "pode causar complicações significativas e às vezes permanentes, assim como sequelas ou morte" em mães e bebês.

Diz um documento de 2015 da instituição: "Os esforços devem se concentrar em garantir que cesáreas sejam feitas nos casos em que são necessárias, em vez de buscar atingir uma taxa específica de cesáreas".
'Não é sobre esquerda e direita, mas sobre direitos'

Presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras na Paraíba (Abenfo-PB), Waglânia Freitas diz que movimentos que lutam pela redução no número de cesáreas não anulam a importância deste tipo de parto e nem o desejo da parturiente.

Um congresso organizado pela Abenfo-PB foi citado no texto "Problemas e interesses do movimento pelo parto humanizado", publicado no Estudos Nacionais, como um exemplo de uma "excessiva autonomia da mulher" que seria prejudicial ao bebê - nas entrelinhas, no caso de um aborto.

Segundo o portal, o principal tema do encontro na Paraíba teria sido a interrupção da gestação, ao lado da pauta do parto humanizado.

Para Freitas, entretanto, apontar estes como temas prioritários é uma maneira "descontextualizada" de falar do evento organizado pela Abenfo-PB, que também versou sobre outros assuntos.

"O movimento pela humanização do parto reconhece a importância da cesárea. Agradecemos a existência dessa tecnologia, ela salva vidas - quando indicada. Mas quando não é bem utilizada, ela põe em risco mães e bebês, matando ou deixando sequelas", disse Freitas à BBC News Brasil por telefone. "Defendo que a mulher tenha direito ao seu corpo, à cesárea no horário que ela quiser. Mas ela precisa ter conhecimento sobre os riscos. Não entendo que seja algo ideológico, de esquerda ou de direita. É de direitos".

A professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) diz que não viu situações atípicas no decorrer do evento, mas que percebe um aumento de ataques nas redes sociais contra a pauta da humanização do parto.

"Não podemos sair do contexto em que estamos. Temos uma polarização na qual existe uma linha política que nega e alija direitos; e outra que defende direitos conquistados historicamente", diz Freitas, que diz defender pessoalmente as conquistas dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e a saída do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da prisão.

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Taxa de cesáreas no Brasil está vários pontos percentuais acima da média mundial; OMS fala em 'verdadeira cultura cesariana' no país
Disputa entre categorias

Para além de interpretações sobre dados e políticas públicas que versam sobre o tema, outro assunto divisivo é o papel de diferentes categorias profissionais na gravidez e no parto.

Um post do Estudos Nacionais classifica o congresso da Figo como tendo um viés "antimédico", parte de um contexto mais amplo que poderia desembocar em "uma definitiva luta de classes entre médico x paciente, médico x doula, médico x marido" durante a gravidez.

A nota do Cremerj menciona um contexto de "demonização" dos obstetras no evento.

À BBC News Brasil, Câmara disse que os obstetras são a "especialidade mais agredida" entre os médicos. Quando perguntado pela reportagem se há dados que comprovem isto, o ginecologista afirmou que isto ainda teria que ser levantado pelo conselho, mas que sua percepção se origina em casos que chegam à entidade.

"Não é violência obstétrica, mas violência contra o obstetra. Você acha que não tem obstetra safado? Claro que tem, como tem jornalista. Mas o termo 'violência obstétrica' nos impede de fazer qualquer coisa", disse o ginecologista e diretor no Cremerj. "As enfermeiras e doulas querem este filão."

O termo "violência obstétrica" tem sido usado por instituições como o Ministério da Saúde e a Fiocruz para designar práticas que desrespeitam a mulher durante a gravidez ou o parto. Ele se caracteriza, por exemplo, em situações como o uso desenfreado da ocitocina sintética para acelerar o parto vaginal, o que pode aumentar o risco de hemorragia; levar o bebê para longe da mãe após o nascimento; ou não deixar a parturiente comer ou beber, ou ainda ameaçá-la ou fazê-la alvo de chacotas.
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Discussão sobre a humanização do parto também recai sobre divisão de papéis entre categorias de profissionais da saúde

Embora não cite diretamente o termo "violência obstétrica", uma declaração da OMS de 2014 afirma que "no mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde", o que configura um "quadro perturbador".

Já neste ano, a organização publicou uma série de recomendações em relação ao parto. O documento afirma que a maioria dos nascimentos ocorre em situações em que não há fatores de risco para a mãe e o bebê, mas, no entanto, há uma "medicalização crescente dos processos de parto".

"Isto tende a enfraquecer a capacidade da mulher de dar à luz e afeta de maneira negativa a sua experiência de parto. Ademais, o maior uso de intervenções no trabalho de parto sem indicações claras continua a ampliar a lacuna de saúde na equidade entre ambientes ricos e pobres em recursos", diz o documento.

A organização tem por anos encorajado a participação de outros profissionais da saúde, como enfermeiras e parteiras, na gravidez - do pré-natal ao parto.

Para Waglânia Freitas, os temores corporativos da categoria médica não se sustentam diante de uma diminuição no volume de cesáreas. Para ela, o lugar dos médicos continua garantido neste cenário.

"Há um medo da categoria médica de perder espaço, mas eles têm um espaço garantido.... Qual é o espaço? É o da intervenção, da assistência àquele grupo de mulheres que estão na iminência de morrer ou adoecer", diz.
BBC Brasil

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