As terras do segundo maior bioma do Brasil viraram um enorme celeiro agrícola, à custa da perda de metade de sua cobertura vegetal nativa. O prejuízo pode se agravar ainda mais se o desmatamento da região não for contido
Vegetação típica do Cerrado: árvores baixas e resistentes, que vêm perdendo espaço para a agricultura (Foto: iStockphotos)
Com 207 milhões de hectares (cerca de 22% do território nacional), o Cerrado, o segundo maior bioma do Brasil – atrás apenas da Amazônia –, era visto até algumas décadas atrás como um ecossistema desinteressante, com uma vegetação raquítica e pouco diversa, de onde quase nada se poderia aproveitar. Graças a muitas pesquisas e ciências aplicadas, no entanto, essa imensa savana de solos pobres e sujeita a secas se transformou numa das mais importantes zonas agrícolas do Brasil e do mundo.
Mas essa pujança tem um preço. O agronegócio se estabeleceu abrindo a fronteira agrícola, desmatando e degradando vastas áreas. Só entre 2013 e 2015, por exemplo, foram destruídos 18.962 km2 da região. Isso significa que, a cada dois meses, a vegetação nativa de um território equivalente ao da cidade de São Paulo (1.521 km2) desaparece.
Para evitar que esse quadro se agrave, 40 organizações ambientalistas lançaram em 11 de setembro (Dia do Cerrado) o manifesto “Nas mãos do mercado, o futuro do Cerrado: é preciso interromper o desmatamento”. No documento, elas pedem uma medida imediata em defesa do bioma a ser tomada pelas empresas que compram soja e carne produzidas na região, assim como os investidores que atuam nesses setores, no sentido de adotar políticas e compromissos eficazes para eliminar o desmatamento e desvincular suas cadeias produtivas de áreas naturais recentemente convertidas em agricultáveis.
O processo que culminou na atual situação vem de longe. As vastidões do Cerrado começaram a ser ocupadas no século 18, com a mineração de ouro e pedras preciosas. Junto com essa atividade começaram a surgir os primeiros povoados. Esgotadas essas riquezas, os habitantes da região tiveram que descobrir outra forma de ganhar a vida. A alternativa que vingou foi a pecuária extensiva, principal atividade econômica daquelas paragens até praticamente o fim da década de 1950.
Proteção pequena
Com a construção de Brasília, na virada dos anos 1950 para 1960, vieram as estradas e ferrovias, pelas quais chegaram os migrantes. Vinham atraídos pelas políticas agrícolas desenvolvimentistas do governo, que queria integrar aquele território ao restante do país. Criaram-se assim as condições para a expansão da agricultura comercial. O resultado disso em termos ambientais pode ser medido em números. “O Cerrado já perdeu 50% de sua cobertura vegetal nativa”, diz a bióloga Mercedes Bustamante, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB). “Os remanescentes estão fragmentados e sob pressão de conversão nas novas frentes do desmatamento. As áreas de proteção integral cobrem um percentual muito baixo do bioma e não representam sua variabilidade espacial.”
A construção de Brasília (acima) estimulou a ocupação do bioma, hoje marcado pelo plantio de soja (abaixo) (Fotos: iStockphotos)
Cristiane Mazzetti, especialista do Greenpeace em Desmatamento Zero, lembra que a taxa anual de desmatamento do bioma superou a da Amazônia nos últimos dez anos. “Em 2014 e 2015 ela ficou próxima de 9.500 km2/ano, enquanto a do Norte para os mesmos anos foi de 5.012 e 6.207 km2 respectivamente”, informa.
“Para piorar, no Cerrado a área passível de desmatamento legal (com autorização do órgão ambiental competente) é de 65%-80% de cada propriedade rural, enquanto na Amazônia é de apenas 20%. Isso mostra que o simples cumprimento da legislação, embora seja fundamental, não é suficiente para barrar a rápida perda da vegetação nativa.”
A situação é mais grave no Matopiba, região na confluência dos estados de Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia. “Grandes áreas de lá estão sendo perdidas para abrir espaço para pastagens e plantações de soja”, diz Cristiane. “Ao manter esse ritmo de destruição, o Cerrado segue o mesmo caminho da Mata Atlântica, onde restaram apenas 10% da sua formação original, gerando assim a perda de serviços ambientais fundamentais para toda a sociedade.”
Conflito prejudicial
Para o geógrafo Eguimar Felício Chaveiro, da Universidade Federal de Goiás (UFG), o conflito entre a agricultura e a conservação ambiental tem trazido grandes prejuízos para o bioma. “Ele tem potencial para diversos tipos de usos, mas o modelo de desenvolvimento adotado tem destruído parte considerável dessa riqueza, transformando-a em pobreza”, critica.
“Há, inclusive, uma contradição: transformam o Cerrado em marca, mas o destroem; enaltecem seu valor, mas consagram um modelo de desenvolvimento econômico que extingue parte de sua diversidade genética e cultural. Há problemas de erosão genética, de degradação ambiental de matas ciliares, repercutindo nos seus componentes hídricos. Já se vê o secamento de vários canais e a extinção de algumas espécies de animais, como o tatupeba.”
Segundo Mercedes, a falta de atenção comparada à dispensada a outros biomas do país é outro problema que a região tem de enfrentar. “Enquanto há uma preocupação internacional e nacional com o desmatamento na Amazônia, há pouca divulgação sobre o acelerado processo de degradação do Cerrado, que constitui a savana mais diversa do mundo e a origem de três grandes bacias hidrográficas brasileiras (Tocantins, São Francisco e Platina)”, lamenta.
“Entender como ela – que apresenta zonas de contato com os principais biomas brasileiros (Pantanal, Amazônia e Caatinga) – funciona e divulgar esse conhecimento em nível nacional e internacional é urgente para reverter o processo atual de uso e ocupação e preservar os remanescentes de vegetação nativa.”
A situação se torna mais preocupante quando se sabe que, de acordo com os signatários do manifesto, é desnecessário que a agricultura e a pecuária continuem se expandindo sobre áreas naturais no Cerrado, pois há cerca de 40 milhões de hectares já desmatados no Brasil com aptidão para a expansão da soja – principal cultura agrícola associada ao desmatamento.
“Isso é suficiente para o atendimento das metas brasileiras de expansão produtiva de soja nos próximos 50 anos”, diz o documento. “O setor da soja já detém conhecimento suficiente para a expansão sobre zonas abertas, sendo esse o padrão nas demais regiões, como no bioma Amazônia e em outros locais do Cerrado fora do Matopiba.”
Estímulo para o aquecimentoPecuária no Cerrado: atividade que favorece a mudança climática (Foto: iStockphotos)
Afora levar ao desmatamento e à degradação ambiental de grandes áreas, a ocupação do Cerrado pela agropecuária contribui para o aquecimento global, constatou a bióloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB). Ela pesquisa há vários anos os impactos das mudanças na cobertura vegetal e do uso da terra no bioma. Mercedes quer entender como a agropecuária no Cerrado contribui para o efeito estufa e o aquecimento global.
Segundo ela, esse bioma tem muito dióxido de carbono (CO2) fixado no solo, sobretudo nas raízes de sua vegetação, muito profundas devido à escassez de água perto da superfície. “O Cerrado é como uma floresta de cabeça para baixo. Há mais biomassa vegetal enterrada no solo do que na parte aérea”, afirma. De acordo com Mercedes, ao mexer nisso, muito carbono e outros gases-estufa, como o metano, são lançados no ar. Só as queimadas liberam cerca de 17 toneladas de carbono por hectare por ano.
Revista Planeta
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