quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O que é o campo magnético da Terra? O que ele influencia?


Um dia, num futuro distante, as bússulas deixarão de apontar o norte
Janaína Harada


ILUSTRA Tila Barrionuevo
EDIÇÃO Felipe van Deursen
(Tila Barrionuevo/Mundo Estranho)

É uma gigantesca distorção magnética criada pelo núcleo terrestre, que funciona como um ímã. O núcleo é dividido em duas partes, a interna, formada por ferro, níquel e outros metais em estado sólido, e a externa, em que esses elementos estão na forma líquida.


Por causa da rotação terrestre, os metais líquidos estão em movimento constante, o que produz correntes elétricas. Essa é a chamada Teoria do Dínamo, que diz que as cargas elétricas no núcleo externo originam o campo magnético, que exerce influência em todo o planeta. A principal função dele é a manutenção da atmosfera e, consequentemente, da vida na Terra.

O campo magnético protege as camadas de ar ao minimizar ataques de ventos solares. Sem tal defesa, as partículas lançadas pelo Sol arrancariam a atmosfera do planeta.


Um ímãzão desses, bicho!

Campo magnético influencia de minhocas até auroras boreais
(Tila Barrionuevo/Mundo Estranho)

1.PAREM AS MÁQUINAS
Quando erupções solares massivas entram em contato com o campo magnético da Terra, ocorre a tempestade magnética. Essas partículas ejetadas pelo Sol criam correntes elétricas, que interferem no campo da Terra. Assim, as perturbações afetam equipamentos de aviação, satélites, sistemas de comunicação e navegação

2.CORRA E OLHE O CÉU
As auroras boreal e austral são o resultado de tentativas de partículas carregadas, ejetadas pelo Sol, em penetrar na atmosfera. Quando esses íons atingem o campo magnético terrestre, eles são desviados, principalmente para os polos. Lá, interagem com os átomos de oxigênio e nitrogênio, que liberam fótons (partículas de luz), criando, assim, as auroras

3.ANIMAIS
Um estudo da Universidade do Texas (EUA) identificou uma molécula no cérebro da minhoca que age como um sensor que orienta o animal em relação ao campo magnético. Outro estudo diz que o magnetismo funciona não só como bússola mas também como visor para aves migratórias: ele reforça brilhos e cores no campo de visão dos pássaros, guiando-os

DE PONTA-CABEÇA
Nem sempre os polos magnéticos ficam no mesmo lugar

A ciência ainda não sabe por quê, mas os polos magnéticos não são fixos. Hoje, o polo norte magnético, de onde saem as linhas de campo, fica próximo do Polo Sul. Já o sul magnético, para onde as linhas vão, fica perto do Polo Norte. Por isso, as bússolas apontam o norte. A última vez que os polos estavam em posição invertida foi há cerca de 780 mil anos

CONSULTORIA Jorge Deveikis Junior, físico e mestrando em ensino de física pela USP
FONTES Faculdade de Ciências da Unesp (São Paulo), Serviço Geológico do Brasil, Physics.org, Cosmo Magazine, MIT, Inpe e Nasa; estudo A New Type of Radical-Pair-Based Model for Magnetoreception, vários autores
Revista Superinteressante

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Afinal, o que aconteceu com a Venezuela?


Ela já foi uma das quatro nações mais ricas do mundo, tem mais petróleo que a Arábia Saudita, e está quebrada. Entenda como o chavismo arrebentou o país.
Felippe Hermes


(Stefano Montesi - Corbis / Colaborador/Getty Images)

Há sete meses no Brasil, trabalhando em um restaurante peruano de dono argentino na capital paulista, a venezuelana Eliza é mais uma entre as tantas figuras que dão vida ao sincretismo da cultura brasileira. Mas Eliza e seu irmão, a quem ajudou a emigrar para o País há três meses, também representam um fenômeno assustador: o êxodo venezuelano.

Desde 2015, 3 milhões de cidadãos abandonaram a Venezuela. Um em cada dez habitantes. Metade imigrou para Colômbia e Peru. O Brasil, que tem seu centro econômico longe da fronteira com a Venezuela e fala outro idioma, recebeu menos gente, mas mesmo assim um contingente considerável: 85 mil pessoas. Boa parte sem nada e disposta a morar na rua em Roraima. De acordo com um levantamento da FGV, 30% deles têm curso superior.

E a tendência é piorar. A ONU estima que o número de refugiados deve chegar a 5,3 milhões até o final deste ano. Quase 20% da população – um êxodo de proporções bíblicas. Tudo isso num país que detém as maiores reservas de petróleo do planeta (bem à frente da Arábia Saudita, a segunda colocada). Tudo isso numa nação que, até o início do século 21, tinha o maior PIB per capita da América do Sul, e que, na década de 1950, estava entre as quatro mais ricas do mundo. O que houve?

Imigrantes venezuelanos na fronteira com a Colômbia

Imigrantes venezuelanos na fronteira com a Colômbia (Picture alliance / Colaborador/Getty Images)

Claro que as ditaduras de Chaves (1999-2013) e de Maduro (desde 2013) estão no centro do problema. Mas a história é mais longa. Após a descoberta de petróleo na Venezuela, em 1922, o país viu uma sucessão de golpes e partidos políticos que buscavam abocanhar parte dos recursos gerados nos acordos com companhias estrangeiras. O que parecia resolvido com a democracia, implementada em 1958, e que se tornaria a mais longeva da América do Sul, durou pouco.


Em 1973, após o primeiro choque do petróleo, o país decidiu nacionalizar empresas petrolíferas, condensando tudo na gigante PDVSA. Com recursos do petróleo, o Estado adentrou na economia. Grandes empresários perceberam que, estando os recursos no governo, deveriam adaptar-se e produzir para o governo, não para os consumidores. E a população foi se tornando cada vez mais dependente do auxílio estatal.

Bom, petróleo e derivados respondem por 96% das exportações da Venezuela (no Brasil, por exemplo, são só 9%). O boom na cotação do barril, na década passada, sob o governo Chavez, fez ingressar na Venezuela mais de US$ 750 bilhões. Com controle total sobre a maior fonte de riqueza do país e achaques a empresários, Chavez aproveitou a bonança para expandir ainda mais a presença do Estado na economia.


Um em cada seis venezuelanos terá deixado seu país até o fim de 2019. Um êxodo de 5,3 milhões de pessoas.


Comprou da iniciativa privada o controle de siderúrgicas, bancos, indústrias de alimentos, fábricas de todo tipo. Entre 2008 e 2015, o setor privado recuou de 70% para 20% do total de bens de consumo providos no país. A torra de dinheiro colocou lá em cima o déficit público (ou seja, o tanto que o governo gasta a mais do que arrecada). O Brasil, que precisa de reformas para não quebrar, tem hoje um déficit de 7,5% do PIB. O da Venezuela chegou rapidamente a 16%.

Com os recursos públicos quase todos destinados a cobrir o déficit, começou a faltar dinheiro na joia da coroa, a PDVSA. A produção de petróleo implodiu, saindo de 3,2 milhões para 1,5 milhão de barris diários (menos que a Petrobras, que tira 2 milhões de barris/dia). Para piorar, a cotação do barril de petróleo saiu de US$ 103 em 2014 para US$ 35,7 em 2017. Com menos dólares entrando, o país empobreceu severamente: em 2012, eles importavam US$ 62 bilhões. Em 2018, foram só US$ 9,2 bilhões (o Brasil, para dar uma referência, importou US$ 180 bilhões no ano passado, com dólar em alta e tudo o mais).
Impressora de dinheiro

Para ter como pagar os salários dos funcionários públicos, o governo recorreu à mais imbecil das soluções: ligar as impressoras de dinheiro. Com mais moeda em circulação do que coisas para comprar, não deu outra: os preços inflaram. Em 2019, a inflação venezuelana deve passar dos 10 milhões por cento, segundo o FMI. Em meio a esse caos, a retração do PIB chegou a 13,7% em 2017; mais 15,4% em 2018. Hoje, nove em cada dez venezuelanos estão abaixo da linha da pobreza.

Nisso, o governo Maduro entrou em colapso. Sua última eleição foi declarada fraudulenta pelo Parlamento venezuelano. Juan Guaidó, o jovem líder da Assembleia, de 35 anos, declarou-se presidente interino da Venezuela em janeiro, e foi reconhecido como tal pelos EUA, pelos maiores países da Europa e por boa parte da América Latina (Brasil incluído, obviamente).

Mas falta combinar com os russos. A declaração de Guaidó não vale nada dentro da Venezuela, porque Maduro tem costas quentes. Com uma força militar e paramilitar bem armada, o ditador tem instrumentos para intimidar quem lhe faça oposição. Em 2008, Hugo Chávez distribuiu 100 mil fuzis para sua milícia. Em 2017, foi a vez de Maduro armar outros 500 mil. A milícia, uma espécie de SS implementada pelo chavismo, tem sido responsável por boa parte da repressão, e segue fiel ao líder chavista.

Os militares venezuelanos, que dão suporte a Maduro no poder, controlam 14 dos 32 ministérios, além de gerir a PDVSA, responsável por basicamente todas as receitas em dólar do país e, sem surpresa, de onde sai boa parte dos desvios de recursos públicos – de acordo com uma delação do banqueiro suíço Matthias Krull, só a família de Maduro desviou US$ 1,2 bilhão.

Além dos militares, Maduro possui ampla condescendência do Judiciário, o qual tratou de aparelhar ao longo de seu mandato. Ainda que enfrente oposição na Assembleia, como a do presidente da casa, há pouco ou nada que o Legislativo possa fazer tendo as mãos atadas pelos juízes.

Mantido o poder, Maduro enfrentaria novas eleições apenas em 2025, quando a Revolução Chavista completaria 27 anos. Se ainda estiver por lá, não restam dúvidas de que a Venezuela terá ensinado lições valiosas sobre como arruinar um país.
Revista Superinteressante

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Tragédia marinha


Segundo o mais recente e amplo relatório sobre a situação dos oceanos, o aumento de temperatura das águas está afetando profundamente esse ecossistema, com graves consequências para seus habitantes e os seres humanos


A absorção de gases-estufa torna os oceanos mais quentes e leva à perda de espécies, reduzindo, por exemplo, as áreas de pesca, como na costa do Vietnã (foto abaixo)


A cada nova pesquisa, cresce a preocupação sobre o estado dos oceanos da Terra, responsáveis pela maior parte da absorção dos gases de efeito estufa lançados na atmosfera pelas atividades humanas. O mais novo e abrangente deles – um calhamaço de 456 páginas preparado por 80 cientistas de 12 países, publicado em setembro pela respeitada União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) – reforça ainda mais esse quadro sombrio.

Para os autores, o crescimento da temperatura nos oceanos representa “o maior desafio oculto da nossa geração”, pela capacidade demonstrada de alterar a composição de espécies marinhas, reduzir áreas de pesca (em um período em que a necessidade de alimento está crescendo) e começar a espalhar doenças para os seres humanos. “Em um planeta oceânico, estamos arruinando o oceano”, sintetiza o ambientalista americano Bill McKibben com base no relatório.



Essas mudanças já podem ser sentidas pelas pessoas, segundo o trabalho. “Devido a um efeito dominó, setores humanos fundamentais estão em risco, especialmente pesca, aquicultura, gestão de riscos costeiros, saúde e turismo costeiro”, dizem os autores. De acordo com o relatório, os oceanos, que recobrem cerca de 70% da superfície terrestre, têm absorvido mais de 90% do calor extra produzido pelos seres humanos.

Se uma quantidade de calor semelhante à que está armazenada nos primeiros dois mil metros de profundidade tivesse ido para a atmosfera, a temperatura na superfície do planeta estaria nada menos que 36 graus centígrados mais alta ao longo do século 20. Como os oceanos a capturaram, essa elevação foi de apenas 1° C – cerca de 0,13° C desde o início do século passado. Até 2100, estima-se que esse aumento possa chegar a 4° C, com máximas maiores no hemisfério sul.

Cardume de sardinhas, peixe que, no Atlântico Norte, já está migrando rumo ao polo em média 30 km por década

As diferenças de temperaturas deverão ser ainda maiores nos polos – elas têm crescido duas vezes mais ali do que a média global. O desarranjo afeta inúmeros aspectos do ecossistema marinho, e o relatório aponta os principais entre eles. Um é o impacto destrutivo causado no início da cadeia alimentar dos mares, em seres como o fitoplâncton, o zooplâncton e o krill (pequeno crustáceo). A redução na disponibilidade desses alimentos afeta a reprodução.

Com tudo isso somado, muitos seres ligados ao ambiente oceânico (como peixes, aves marinhas, tartarugas marinhas e águas-vivas) podem ser deslocados de seus habitats, enquanto outros ficam sujeitos a espécies invasoras. No Atlântico Norte, já foram detectados deslocamentos de 30 quilômetros por década, rumo ao polo, de sardinhas, anchovas, arenques e cavalas. Como mais de 550 tipos de peixes e invertebrados marinhos já são considerados ameaçados, o aquecimento dos oceanos deverá incrementar o declínio de algumas espécies.


Perda de cor

O texto se debruça sobre o caso dos recifes de coral, que dão suporte a cerca de 25% das espécies marinhas. Vários deles sofreram branqueamento porque a constância de temperaturas mais elevadas leva o coral a expelir as algas que lhe dão cor, clareando-se e, por fim, morrendo. Nos últimos 30 anos, os casos de branqueamento registrados nos corais triplicaram, com destaque para o ocorrido na Grande Barreira de Coral, no litoral australiano. Além disso, a acidificação dos oceanos (o aumento da acidez da água causado pela maior absorção de gás carbônico) está deixando cada vez mais difícil, para animais como caranguejos, camarões e mariscos, a tarefa de formar suas conchas de carbonato de cálcio.

Coral branqueado por causa do aquecimento do oceano

A pesca, que representa o sustento básico de cerca de 4,3 bilhões de pessoas, será duramente afetada pelas mudanças nos mares caso as emissões de gases-estufa não caiam radicalmente. No Sudeste da Ásia, por exemplo, o volume pescado poderá cair cerca de 33% até 2050. O assunto preocupa bastante, já que até 2050 se espera que a população mundial passe dos atuais 7 bilhões de pessoas para 9 bilhões. Outro perigo citado no texto é a propagação de doenças que o aquecimento oceânico vai facilitar. Os pesquisadores apontam uma relação entre a proliferação de espécies de algas nocivas, que podem causar intoxicação alimentar, e o vibrião do cólera.



As águas mais quentes poderiam ainda liberar bilhões de toneladas de metano (o mais danoso dos gases-estufa) congelado no fundo do mar, o que elevaria fortemente as temperaturas. O desastre poderá ocorrer mesmo se houver um corte drástico de emissões de gases-estufa, já que essa redução demoraria a produzir consequências perceptíveis.
O relatório recomenda a expansão das áreas protegidas dos oceanos e, sobretudo, a redução do volume de gases-estufa emitido pela atividade humana. “O aquecimento dos oceanos é um dos maiores desafios ocultos desta geração – e um para o qual estamos totalmente despreparados”, diz Inger Andersen, diretora-geral da IUCN. “A única forma de preservar a rica diversidade de vida marinha e salvaguardar a proteção e os recursos que o oceano nos oferece é cortar as emissões de gases de efeito estufa rápida e substancialmente.”

Revista Planeta

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Solidão galáctica?


Por que o enorme número de planetas na Via Láctea ainda não resultou em um contato com civilizações alienígenas? Uma análise de cientistas ingleses tenta responder à questão



É uma pergunta habitual: se há pelo menos 100 bilhões de planetas na nossa galáxia, a Via Láctea, por que nenhuma civilização alienígena se apresentou a nós? O astrônomo americano Seth Shostak, do projeto de busca por inteligência extraterrestre (Seti, na sigla em inglês), voltou ao tema em julho ao abordar um artigo recente de três pesquisadores da Universidade de Oxford (Inglaterra).

O artigo analisa o Paradoxo de Fermi, um quebra-cabeça baseado em um questionamento do físico italiano Enrico Fermi sobre “onde está todo mundo”. Fermi calculou quanto tempo uma sociedade com foco em erguer um império levaria para dominar a Via Láctea e chegou a algumas dezenas de milhões de anos – número quase mil vezes menor do que a idade da galáxia. Ou seja: há tempo mais do que suficiente, mas até agora ninguém deu o ar da graça.

Os pesquisadores pensam que a explicação para isso está nos números inflados com que especulamos quantas sociedades alienígenas existem na galáxia. Os cálculos se baseiam na Equação de Drake, criada pelo astrônomo americano Frank Drake (fundador do Seti) em 1961. Ela estima a frequência com que espécies inteligentes surgem multiplicando a probabilidade de que a vida apareça pela probabilidade de que ela se capacite a desenvolver ciência e tecnologia.

Segundo os ingleses, os valores da equação constituem basicamente suposições. Um exemplo é a probabilidade – entre 1% e 10%, diz a fórmula – de que micróbios saiam da sopa primordial de um planeta aquático. O índice seria bem menor, avaliam os pesquisadores.

Shostak reconhece que sabemos muito pouco sobre esses números. Se, por exemplo, micróbios forem descobertos em uma lua de Saturno, isso aumentaria muito a possibilidade de encontrar vida em outros cantos da galáxia, o que exigiria rever o conceito dos ingleses. Para Shostak, a única forma de melhorar as estimativas é seguir investigando o tema. Ele lembra que, antes da descoberta da Antártida, a possibilidade de haver um continente austral era de 10 para 1. “Isso demonstra que você não faz descobertas calculando probabilidades, apenas investigando – no caso da Antártida, isso significava enviar navios para o sul”, diz. E conclui: “Sempre vale a pena calcular as chances de sucesso em nossa busca por confrades cósmicos. Mas tais exercícios não devem nos impedir de uma busca real.”
Revista Planeta

sábado, 16 de fevereiro de 2019

A energia que vem do mar


Depois de gerar eletricidade a partir da luz solar e dos ventos, a humanidade investe numa nova e promissora fonte energética: as ondas dos mares. O Brasil começa a explorar essa alternativa, que deverá estar amadurecida em até 20 anos



A usina de Pecém (CE), instalada em 2012, foi o primeiro protótipo na América Latina a gerar eletricidade a partir das ondas (Crédito: Divulgação)


A crescente demanda da raça humana por eletricidade e o fim previsível dos combustíveis fósseis têm incentivado a busca constante por alternativas para sustentar a civilização moderna. Nos últimos anos, duas fontes de energia limpa e renovável, a eólica (dos ventos) e a solar, consolidaram-se e já são comercializadas em várias partes do mundo.

Agora, uma terceira opção, as ondas do mar, começa a chamar atenção e a receber investimentos para o desenvolvimento de formas e tecnologias dedicadas ao seu aproveitamento. Pelo menos dez países, inclusive o Brasil, têm projetos nesses sentido, e dois deles, Portugal e Reino Unido, já a utilizam comercialmente. Calcula-se que em 15 ou 20 anos essa opção energética já terá adquirido uma relevância considerável. No Brasil, a mais recente iniciativa está sendo instalada no Rio de Janeiro.


As tentativas para gerar energia elétrica com as ondas vêm de longe: em 1799, o francês Phillip Girard registrou o primeiro pedido de patente de um motor movido por ondas. Não se sabe, porém, se ele tirou seu invento do papel. Um dos primeiros equipamentos para extrair eletricidade do mar registrados foi um motor construído em 1891 por Henry P. Holland, instalado na costa de San Francisco, na Califórnia. Mas o projeto não funcionou como planejado e foi abandonado.
Iniciativa já em operação plena: a Wavestar, da empresa dinamarquesa homônima, em Hanstholm (Dinamarca) (Crédito: Divulgação)

Após anos de tentativas, a primeira usina a funcionar de fato foi instalada no porto de Huntington, também na Califórnia, em 1909. Depois disso, o interesse pelas vagas marinhas como fonte de energia caiu e só foi retomado a partir da década de 1970, na esteira da primeira crise do petróleo. Hoje, estima-se que o mar tem potencial para gerar eletricidade capaz de atender todo o consumo do planeta.

No Brasil, com aproximadamente 8 mil quilômetros de litoral, calcula-se que a capacidade seja de 114 gigawatts (GW), equivalente a oito usinas de Itaipu ou a 77% da potência instalada no país, que é de 148 GW. “Desse total, 27 GW são de marés (Maranhão para cima) e 87 GW de ondas (abaixo do Maranhão)”, informa Segen Estefen, coor­denador do Laboratório de Tecnologia Submarina (LTS) do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe),­ da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Potencial maior

Estefen idealizou e coordenou o primeiro protótipo latino-americano de usina geradora de eletricidade a partir das ondas, instalado em 2012 no porto cearense de Pecém, a 60 quilômetros de Fortaleza (veja quadro à pág. 33). Segundo ele, esse potencial de 114 GW é apenas ao longo da costa. “Em toda a Zona Econômica Exclusiva (ZEE) do Brasil [que se estende por 200 milhas – ou 370 quilômetros – mar adentro], os valores são muito superiores, mas ainda não há uma estimativa confiável”, diz. “Se desenvolvermos técnicas para aproveitar as ondas nessa área, a energia gerada poderá ser utilizada nas instalações de exploração de petró­leo, por exemplo, com ganhos imensos.”

O passo inicial para isso será dado com o novo projeto, também coordenado por Estefen, a ser instalado no oceano a cerca de 14 quilômetros da praia de Copacabana, perto da Ilha Rasa, no Rio. Ele será desenvolvido por uma parceria entre a Coppe, a startup brasileira Seahorse Wave Energy e a Furnas Centrais Elétricas, que investirá R$ 9 milhões na iniciativa. “É um protótipo mais ousado que o de Pecém, porque não ficará em cima do quebra-mar, mas totalmente dentro d’água”, diz Estefen. “Com esse projeto, nosso desafio é não apenas gerar energia elétrica, mas fazer isso com custos baixos. Apesar de a onda ser de graça, se não tivermos aparelhos mais simples e menos custosos, com preços mais acessíveis, não teremos competitividade.”

Iniciativa já em operação plena: a WaveRoller, da finlandesa AW-Energy, em Peniche (Portugal) (Crédito: Divulgação)

Com capacidade instalada de 100 quilowatts (que daria para abastecer 200 residências de consumo médio), a usina será construída em um local com profundidade de 20 metros. No projeto, ela tem quatro colunas de aço, fixadas numa base de concreto no leito marinho, que se erguem verti­calmente até acima da superfície do mar. Cada uma delas está ­fixada em um dos quatro vértices de um quadrado virtual, em cujo interior há um flutuador cilíndrico, semelhante a um lápis “gordo” com a ponta para baixo, com 11 metros de altu­ra e 4,5 metros de diâmetro.

No topo das colunas de aço haverá uma plataforma, lembrando a gávea de um veleiro, onde será instalado o gerador de eletricidade. Da parte de cima do flutuador sai uma haste, que transpassa o fundo da plataforma e é ligado ao gerador. Com a passagem das ondas, o flutuador sobe e desce, assim como a haste ligada a ele. Por meio de um sistema mecânico, esse movimento vertical torna-se rotativo, fazendo girar uma turbina no gerador e criando a eletricidade. Ela será transmitida por um cabo, que descerá ao fundo do mar pelas colunas e dali seguirá pelo leito marinho até a ilha, para conexão à rede elétrica.


Viabilidade comercial

Segundo Estefen, a usina de Ilha Rasa deverá entrar em operação em meados de 2018. Hoje, a equipe da Coppe trabalha com a Seahorse Wave Energy para desenvolver e construir um protótipo em escala reduzida. Esse projeto e o de Pecém integram uma estratégia para tornar a geração de energia elétrica por meio das ondas economicamente viável e comercial, diz Estefen. “Estamos pondo o Brasil entre os países que buscam o domínio das tecnologias de aproveitamento dessa fonte de energia para gerar eletricidade em grande escala”, explica. “É fundamental que consigamos nos manter competitivos para que no futuro não tenhamos de importar tais tecnologias.”

Hoje o Brasil faz parte de um pequeno grupo de países, que inclui Reino Unido, Estados Unidos, Dinamarca, Portugal, China, Noruega, Canadá e Austrália, onde as pesquisas tecnológicas na área estão mais avançadas. O problema brasileiro é o reduzido número de projetos (apenas dois) e a falta de investimento. Há, no entanto, quem diga que isso não é exatamente um problema, pois o Brasil pode não precisar dessa fonte. “Talvez para nós ela não seja tão necessária, porque somos afortunados por ter muitas formas de energia à nossa disposição”, observa o engenheiro Alexandre Beluco, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Mas ela certamente será útil para países que já se encontram em situação de escassez de novos recursos, como os europeus.”



Instalação pioneira

A primeira usina de geração de energia elétrica a partir das ondas do mar da América Latina foi instalada no quebra-mar do porto de Pecém (CE) e inaugurada em novembro de 2012. Ela funcionou experimentalmente até 2014. Era um protótipo, desenvolvido pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que teve aporte de R$ 15 milhões da multinacional Tractebel Energia e apoio do governo do estado.

A usina era composta de dois módulos (cada um com flutuador circular, com 10 metros de diâmetro), instalados na ponta de dois braços mecânicos fixados no quebra-mar. Cada módulo funcionava isoladamente e vários deles poderiam ser postos lado a lado, formando uma “fazenda” de produção de energia. Seu funcionamento era simples. Com o movimento das ondas, os flutuadores subiam e desciam, mexendo o braço mecânico, que por sua vez acionava uma bomba para pressurizar água doce e armazená-la num acumulador conectado a uma câmara hiperbárica.

O líquido pressurizado era liberado na forma de um jato, com força similar à de uma queda d’água de 400 metros de altura. “Ele fazia girar uma turbina, que acionava um gerador de energia, produzindo eletricidade”, explica Segen Estefen, coordenador do projeto, da Coppe. Juntos, os módulos geravam 100 kW, o suficiente para acender cerca de 1.700 lâmpadas comuns de 60 watts. Devido ao fim do contrato com a Tractebel e às obras de ampliação do porto, o protótipo foi desativado. “Mas alcançamos nosso objetivo, que era conseguir conhecimento e experiência para usar em outros projetos do gênero”, diz Estefen.
Revista Planeta

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

A natureza dá a solução


O novo Relatório Mundial da ONU sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos defende a adoção de métodos naturais para melhorar o gerenciamento do uso da água. Algumas dessas soluções já mostram economia de recursos e aumento de produtividade


Zonas úmidas cobrem apenas cerca de 2,6% da superfície do planeta, mas têm impacto direto na qualidade da água (Foto: Konradlew)


As soluções baseadas na natureza podem ter um papel importante na melhora do abastecimento e da qualidade da água e na redução do impacto dos desastres naturais, segundo a edição de 2018 do Relatório Mundial da ONU sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, “Soluções baseadas na natureza para a gestão da água”. O estudo, apresentado em março por Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, e Gilbert Houngbo, diretor do UN Water (ONU Água, em tradução livre), no 8º Fórum Mundial da Água, em Brasília, propõe que reservatórios, canais de irrigação e estações de tratamento de água não sejam os únicos instrumentos de gestão hídrica à disposição.

Em 1986, o estado do Rajastão (Índia) viveu uma de suas piores secas. Nos anos seguintes, uma ONG uniu-se às comunidades locais para definir estruturas de coleta de água e regenerar solos e florestas na região. Com a iniciativa, houve aumento de 30% na cobertura florestal, de alguns metros nos níveis das águas subterrâneas e de produtividade das terras aráveis.

Tais medidas são exemplos de soluções baseadas na natureza (SbN) defendidas na mais recente edição do relatório da ONU. O novo relatório reconhece a água não apenas como um elemento isolado, mas como parte de um processo natural complexo que envolve evaporação, precipitação e absorção da água pelo solo. A presença e a extensão da cobertura vegetal – como pastagens, zonas úmidas e florestas – influenciam o ciclo da água e podem representar o foco de ações para a melhoria da quantida­de e da qualidade da água disponível.

A chamada infraestrutura “verde”, em oposição à tradicional infraestrutura “cinza”, concentra-se em preservar as funções dos ecossistemas, sejam naturais ou artificiais, e na engenharia ambiental, em vez da engenharia civil, para melhorar a gestão dos recursos hídricos. A infraestrutura verde apresenta vários usos na agricultura, de longe o maior consumidor de água. Contribuindo para o desenvolvimento de sistemas de irrigação mais efetivos e econômicos, por exemplo, a infraestrutura verde pode reduzir as pressões sobre o uso da terra, limitando a poluição, a erosão do solo e as necessidades hídricas.
Vantagens múltiplas

Desse modo, o Sistema de Intensificação do Arroz, inicialmente desenvolvido em Madagascar, ajuda a restaurar o funcionamento hidrológico e ecológico dos solos, em vez de usar novas variedades de plantio ou produtos químicos. Esse sistema propicia uma economia de 25% a 50% na necessidade hídrica e de 80% a 90% em sementes, enquanto aumenta a produção de 25% a 50%, dependendo da região na qual está implantado.

A produção agrícola mundial poderia crescer cerca de 20% se fossem usadas práticas mais verdes de gestão da água. Um estudo citado pelo relatório avaliou projetos de desenvolvimento agrícola em 57 países de baixa renda e descobriu que o uso mais eficiente da água, aliado à redução do uso de pesticidas e a melhorias na cobertura do solo, elevou o rendimento das colheitas em 79%.
No árido Rajastão, ações para regenerar solos e florestas elevaram o nível das águas subterrâneas (Foto: Tonyja44)

Soluções verdes também mostram grande potencial em áreas urbanas. Além de “paredes verdes” e jardins nos terraços, as opções incluem medidas para reciclar e coletar água, reservatórios para recarga de águas subterrâ­neas e proteção de bacias hidrográficas que abastecem áreas urbanas. A cidade de Nova York tem protegido suas três maiores bacias desde o fim dos anos 1990. Dispondo do maior abastecimento de água não filtrada dos Estados Unidos, a metrópole agora poupa mais de US$ 300 milhões por ano em tratamento de água e custos de manutenção.

Confrontados pela necessidade cada vez maior de água, países e cidades têm demonstrado interesse crescente por soluções verdes. A China iniciou recentemente o projeto Cidade Esponja, para melhorar a disponibilidade de água em núcleos urbanos. Até 2020, serão construídas 16 cidades-esponja pilotos no país. A meta é reciclar 70% da água da chuva por meio de uma permeação maior do solo, por retenção e armazenamento, e pela purificação da água e restauração de zonas úmidas adjacentes.
Impacto direto

As zonas úmidas cobrem apenas cerca de 2,6% da superfície da Terra, mas têm um impacto direto na qualidade da água, filtrando substâncias tóxicas, de pesticidas a descargas industriais e da mineração. Existem evidências de que essas áreas, sozinhas, podem remover­ de 20% a 60% dos metais presentes na água e reter de 80% a 90% dos sedimentos de escoamento. Alguns países chegaram a criar zonas úmidas para tratar águas residuais industriais. Nos últimos anos, a Ucrânia tem utilizado zonas úmidas artificiais para filtrar produtos farmacêuticos de águas residuais.

Mas os ecossistemas, sozinhos, não conseguem executar 100% das funções de tratamento da água. Eles não filtram todos os tipos de substâncias tóxicas despejadas na água, e suas capacidades têm limites. Existem pontos críticos além dos quais os impactos negativos da carga de poluentes em um ecossistema se tornam irreversíveis. Vem daí a necessidade de se reconhecer os limites existentes e gerenciar os ecossistemas de maneira adequada. As zonas úmidas também agem como barreiras naturais que absorvem e captam água da chuva, reduzindo a erosão do solo e os impactos de inundações e outros desastres naturais. Com a mudança climática, prevê-se um aumento da frequência e da intensidade dos desastres naturais.

Alguns países já começaram a se precaver. O Chile anunciou medidas destinadas a proteger suas zonas úmidas litorâneas após o tsunami de 2010. O estado de Louisiana, no sul dos EUA, criou a Autoridade de Proteção e Restauração Costeira depois da passagem do furacão Katrina (2005), cuja devastação foi ampliada pela degradação das zonas úmidas no delta do rio Mississípi.

Entretanto, o emprego de soluções baseadas na natureza ainda é secundário, e quase todos os investimentos são canalizados para projetos de infraestrutura cinza. A fim de satisfazer a crescente demanda por água, no entanto, infraestruturas verdes parecem ser uma solução promissora, complementando abordagens tradicionais. Os autores do relatório da Unesco sugerem um maior equilíbrio entre as duas, sobretudo considerando que as soluções baseadas na natureza estão mais alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável adotados pela ONU em 2015.


Revista Planeta 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Antártida verde


Musgos estão ocupando áreas cada vez maiores na Península Antártica, mais uma indicação do aquecimento acelerado que está ocorrendo no sul da Terra


Camada de musgo fotografada por Amesbury na Green Island, a oeste da Península Antártica: tendência de expansão (Foto: Matt Amesbury / Universidade de Exeter)


Quando se pensa na Antártida, o que vem à mente de quase todo mundo é uma vastidão gelada e branca, um continente distante e deserto – a não ser pelos pinguins e outros raros animais que lá vivem. Mas essa paisagem conhecida está mudando, tingindo-se de verde em alguns pontos. Um estudo realizado pela Universidade de Exeter, na Inglaterra, e publicado em maio no periódico científico americano Current Biology, mostra que, por causa do aquecimento global, os musgos estão se expandindo de maneira preocupante nas regiões antárticas mais ao norte. Isso vem ocorrendo, principalmente no verão, nas ilhas Elefante, Ardley e Green, a oeste da Península Antártica, onde está localizada a Estação Comandante Ferraz, do Brasil.

O continente mais ao sul do planeta nem sempre foi a imensidão branca que se vê atualmente. Nos períodos geológicos do Cretáceo (de 145 a 66 milhões de anos atrás) e do Eoceno (de 55 milhões a 36 milhões de anos atrás), por exemplo, a Antártida chegou a abrigar florestas em algumas regiões do seu território. Com 14 milhões de quilômetros quadrados de terra (uma vez e meia a área do Brasil) quase totalmente cobertos com uma camada de gelo de 2,1 quilômetros de espessura em média (mas que em alguns pontos pode chegar a quase 5 quilômetros), e mais 20 milhões de quilômetros quadrados de mar congelado no inverno (1,6 milhão de km2 no verão), atualmente ela tem vegetação, principalmente musgos, em apenas 0,3% de sua área.

Uma das camadas de musgo flagradas por Amesbury na Península Antártica, vista em plano mais aberto (à esq.) e em detalhe (à dir.) (Fotos: Matt Amesbury/Universidade de Exeter)

O que o trabalho dos pesquisadores britânicos indica é que essa situação pode mudar num futuro não muito distante. Eles começaram a realizar pesquisas na região há quatro anos. Na época, constataram um aumento do crescimento dos musgos no sul da Península Antártica (onde se localiza a camada mais grossa e antiga dessas plantas). Depois, eles estenderam os estudos para as três ilhas mais ao norte, analisando amostras de solo coberto por cinco espécies de musgos, recolhidas numa extensão de aproximadamente 640 quilômetros. Os cientistas verificaram que duas delas estão crescendo num ritmo entre quatro e cinco vezes mais rápido do que nas décadas passadas. “Concluímos que o fenômeno está ocorrendo em toda a península”, disse, durante a apresentação do levantamento, seu autor principal, o paleoclimatologista britânico Matt Amesbury.
Agravamento

O crescimento anormal dos musgos ocorre sobretudo no verão, e apenas nas três ilhas, quando o solo descongela, diminuindo ou cessando no inverno, quando a região volta a se congelar. O problema vem se agravando, no entanto, por causa do aquecimento global, que torna a camada de gelo do inverno cada vez mais fina e diminui sua duração. A Antártida tem se aquecido mais rapidamente que o restante do planeta. Desde 1950, a temperatura média do continente tem aumentado 0,5°C a cada década. Nas ilhas estudadas o aquecimento é ainda maior. “Nelas, o aumento de temperatura foi de 3°C nas últimas décadas”, afirma o pesquisador Jefferson Cardia Simões, do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e vice-presidente do Comitê Científico Internacional sobre Pesquisas Antárticas.

A população da ave skua, predadora de pinguins, poderá crescer com o aumento da vegetação (Foto: iStockphoto)

De acordo com ele, como a escala do fenômeno ainda é relativamente pequena, por enquanto não haverá consequências para o continente nem para o clima da região. Em relação aos seres vivos que vivem na Antártida, não existem estudos conclusivos sobre os impactos que eles poderão vir a sofrer. “A tendência é que esse processo [de crescimento das plantas] se intensifique nas próximas décadas, considerando mudanças no clima e na circulação oceânica”, observa Simões. “Se persistirem os cenários de aquecimento global apresentados pela comunidade científica, não há muito o que fazer. O sistema ambiental se adaptará a essa nova situação. Biólogos estudam no momento as consequências para a biota [o conjunto de seres vivos que habitam um determinado ambiente ecológico] na região da Península Antártica.”

A bióloga, mestre e doutora em botânica Juçara Bordin, da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), ressalta outro aspecto do fenômeno. “Se as áreas livres de gelo aumentam, cresce a área de solo exposto, assim como a proliferação de microrganismos que produzem dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera, contribuindo para o aquecimento global”, explica. “O aumento da vegetação também propicia o crescimento maior de populações de aves como as skuas, que se alimentam de pinguins – ou seja, as populações deles poderão diminuir. De acordo com os estudos feitos por Amesbury, essas mudanças, combinadas com o aumento das áreas terrestres livres do gelo por causa da retração dos glaciares, produzirão alterações em larga escala no continente, tanto em termos do seu funcionamento biológico, quanto da sua aparência.”
Campos antárticos

Para o biólogo e mestre em botânica Paulo Eduardo Aguiar Saraiva Câmara, do Departamento de Botânica da Universidade de Brasília (UnB), se essa tendência de aquecimento do continente gelado continuar, a Península Antártica deverá ficar cada vez mais verde e cheia de plantas. “Assim sendo, poderá evoluir no futuro para algo como um campo, parecido com o que encontramos em regiões subantárticas ou ilhas como as Falklands/Malvinas”, observa. “Esse é um processo natural que chamamos de sucessão ecológica, mas que pode ocorrer de forma mais acelerada se o cenário climático se mantiver.”

Concepção artística da nova estação científica brasileira na Antártida: inauguração em 2018 (Foto: Divulgação)

Segundo ele, o clima na região deve ficar mais quente a cada ano e fenômenos climatológicos, como nevascas, tempestades e rajadas de vento, tendem a ocorrer de forma mais extrema e intensa. “Vale lembrar que estamos falando apenas da vegetação”, ressalva. “Diversos outros seres vivos apresentam conexão com essa vegetação antártica e seriam diretamente impactados (de forma positiva ou negativa, dependendo do grupo que considerarmos) com as possíveis mudanças.”

Além disso, existe o enorme risco de que espécies exóticas e invasoras possam também se estabelecer na Antártida. “Estudos demonstram que diversos tipos de propágulos (como sementes, por exemplo) de outras plantas chegam até lá, mas não conseguem se propagar devido às condições extremas”, diz. “Todavia, já existe uma espécie de gramínea invasora, a Poa annua L., que viceja na região da Baía do Almirantado, onde fica a Ilha Rei George, provavelmente trazida pelo homem. Com o aumento da média das temperaturas e o crescente degelo expondo uma área maior de solo, a possibilidade de essas plantas invasoras colonizarem com sucesso o continente tende a aumentar.”


Fogo e reconstrução

Às 2h de 25 de fevereiro de 2012 teve início um incêndio que destruiu 70% da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), do Brasil, e matou dois marinheiros. A estação abrigava laboratórios e servia de moradia temporária para cientistas brasileiros que realizavam estudos na Antártida. A tragédia abalou as pesquisas do país no continente, mas não as paralisou. “Apenas 20% dos projetos foram afetados”, diz o pesquisador Jefferson Cardia Simões, do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vice-presidente do Comitê Científico Internacional sobre Pesquisas Antárticas.

Para manter as pesquisas até uma nova estação ser construída, foram instalados vários Módulos Antárticos Emergenciais (MAEs) perto das antigas instalações. Os pesquisadores brasileiros contam ainda com vários refúgios no continente e com o módulo científico Criosfera I, situado 2.500 quilômetros ao sul da EACF, além dos navios oceanográficos Almirante Maximiano e Ary Rongel. O Brasil está erguendo uma nova estação. O projeto arquitetônico, da empresa Estúdio 41, foi aprovado em 2014, mas, por problemas de licitação, as obras só começaram em 2016. Orçadas em US$ 99,6 milhões, elas estão a cargo da construtora China Electronics Import and Export Corporation (Ceiec). A estação deverá ser inaugurada em março de 2018.
Revista Planeta

domingo, 10 de fevereiro de 2019

A era do excesso


Já parou para pensar na quantidade de informações que jornais, revistas, televisão e bilhões de sites na internet despejam diariamente sobre nossas frágeis estruturas cerebrais? Tudo que é demais intoxica






Vivemos em plena era do excesso. Vamos pelo mundo como ilhas ambulantes, a flutuar num oceano coalhado de produtos industrializados de todos os tipos, de medicamentos farmacêuticos, de poluição ambiental, de guarda-roupas cheios de peças inúteis, de constantes propagandas que nos conduzem à produtividade e ao consumismo insustentáveis. Sem falar no excesso de informação feita sob medida para poluir e intoxicar nossas mentes e nossos corações. Já parou para pensar na quantidade de coisas veiculadas pelos jornais, revistas, pela televisão e pelos milhões de sites na internet que, sem dó nem piedade, bombardeiam todos os dias nossas frágeis estruturas cerebrais?

Tudo que é demais faz mal. Intoxica. E intoxicação, como verbete de dicionário, corresponde a uma “série de efeitos sintomáticos produzidos quando uma substância tóxica é ingerida ou entra em contato com a pele, olhos ou membranas mucosas”. Da mesma forma, tudo aquilo que entra pelas portas dos sentidos – visão, olfato, paladar, tato, audição – pode ser de natureza deletéria e nos intoxicar. O modelo de civilização que inventamos é tóxico e chegou agora a um estado de paroxismo no qual a regra geral é a perda da consciência da medida das coisas.

Como costumo lembrar, para os antigos gregos o descomedimento – entendido exatamente como perda do senso de medida – era a maior de todas as falhas. Eles chamavam essa perda da consciência de limites de húbris, e consideravam que ela não tinha remissão. Quem cometia essa falha estava condenado ao inferno por toda a eternidade. Os deuses viam a húbris como a pior das formas de arrogância e puniam com severidade máxima todos que se deixavam seduzir pelo descomedimento.

Mas hoje perdemos essa noção fundamental da sabedoria grega, e manifestamos nossa perda da consciência de limites o tempo todo. Estaríamos todos, assim, condenados à danação eterna pelos deuses gregos. Não acredita? É fácil perceber, por exemplo, até que ponto fomos tomados pela compulsão de fazer tudo melhor, em maior quantidade e no menor tempo possível. Da manhã à noite ouvimos injunções vindas de fora – mas também de dentro – repetindo que é preciso fazer isso, ou aquilo, agir assim ou assado. Pouco a pouco, essas injunções tornam-se vozes interiores, autoritárias, que logo deixam de ser vozes e se transformam em gritos de ordem: produzir, comprar, consumir!
Cruzar os braços?

O filósofo francês Fabrice Midal é o líder do movimento “Soltar as rédeas”, que a cada dia reúne mais adeptos no seu país. Midal, que ensina meditação há mais de 20 anos, é um especialista no assunto – o próprio título que deu a seu movimento sugere isso. Ele afirma: “Quando ordeno a mim mesmo que tenho de responder a todos os meus e-mails hoje, sem falta, mesmo àqueles que não são urgentes, eu me coloco sob pressão e começo a me sentir culpado se deixar passar apenas um minuto sem fazer alguma coisa. O tempo todo é preciso fazer melhor, mais rápido, incrementar o desempenho. Mas o único resultado disso é nos trazer mais frustração. É preciso, portanto, que mandemos todas essas injunções para o inferno, obrigando-as a nos deixar em paz”.

A maior chance de êxito está na postura “o que tiver de ser será” (Foto: iStock)

Mas seria então o caso de cruzar os braços, de realmente mandar tudo para o inferno, de não fazer mais nada? Parece que não. Soltar as rédeas significa eliminar a pressão, mas não significa que temos de deixar de agir. Como fazer isso? Simplesmente mudando o ângulo de visão, a perspectiva. Por exemplo: você tem um projeto e deverá apresentá-lo a um potencial patrocinador. Você estudou, pesquisou, caprichou na elaboração do projeto. Mesmo assim, chega ao escritório do patrocinador como quem se aproxima do patíbulo.

Na sua cabeça, as preocupações dão pinotes como cavalos bravios. E se eu não conseguir me explicar? E se a ideia não agradar? E se tudo der errado? Você chega lá estressado, e sua angústia tem origem num único ponto: a impossibilidade de poder controlar tudo. Na melhor das hipóteses, você manda todas as preocupações para o inferno, decide enfrentar com coragem o desafio e exclama: “O que tiver de ser será”. É nessa postura que reside sua maior chance de ter sucesso na empreitada: quando deixamos correr solta a lógica da vida, descobrimos que ela oferece naturalmente as forças que conduzem ao progresso e à cura.

Midal e outros estudiosos estão convencidos de que tal postura, aparentemente paradoxal, é suficiente. Ele diz que “essa postura basta para suspender o desejo de perfeição, de sucesso, que nos estrangula”. Perguntado se a compreensão profunda do significado de “o que tiver de ser será” é decorrência da prática bem feita da meditação, Midal comenta: “Claro, muitos hoje vêm às práticas de meditação com a ideia de que têm um desafio a enfrentar, uma tarefa a ser executada, a obrigação de alcançar o objetivo: a serenidade. São esses pressupostos que, quase sempre, levam à frustração: a sensação, principalmente no começo das práticas, de não conseguir chegar aos resultados preconcebidos em nossa mente a respeito do que deve ser a meditação. A pessoa chega com a ideia de que terá de encarnar uma sabedoria”.
Presença plena

O mecanismo explicado por Midal é exatamente o mesmo que aplicamos a qualquer outra circunstância da vida: temos um desejo, que transformamos em um plano, e logo o projetamos a partir de uma perspectiva utópica, idealizada. Como raramente o resultado dos nossos esforços corresponde aos resultados idealizados, acabamos muitas vezes frustrados e sequer conseguimos desfrutar dos aspectos positivos de nossas realizações.

O sentido do termo “meditação” ainda é mal compreendido (Foto: iStock)

Dessa forma, voltando ao caso da meditação, como a sabedoria utópica parece não chegar, o que sobrevém é um sentimento de culpa por não se ter alcançado o sucesso esperado. Isso deriva em boa parte do fato de que, em geral, o sentido do termo “meditação” é mal compreendido. Na mindfulness meditation (meditação da consciência plena), por exemplo, esse termo induziu uma intelectualização da prática meditativa dentro de um espírito cartesiano. Na verdade, o sentido real da expressão não diz respeito a uma “consciência plena”, e sim a uma “presença plena” a tudo que acontece em nós, e notadamente em nosso corpo.

Para desfrutarmos da realidade como ela é – e esta é a única realidade que existe –, devemos suspender os desejos de perfeição e de sucesso, pois eles nos estrangulam e oprimem. Para alguns, convém aceitar tranquilamente o fato de não sermos perfeitos. Para outros, aceitar o fato de não sermos amados, de não conseguirmos nos manter calmos, de ainda não dominarmos nossas emoções, etc. Tais colocações, na verdade, constituem a plataforma básica de todas as psicoterapias, da psicanálise à hipnose ou à de linha junguiana.

Todas elas não nos pedem um trabalho voluntário para que aprendamos a controlar o que se passa em nós – postura que, a rigor, nos transformaria em escravos submissos a nós mesmos. Muito mais que isso, as técnicas psicoterápicas – bem como as religiões verdadeiras – nos convidam a retomar o gosto pela vida, a deixar que a vida siga seu curso a partir da sua própria lógica – e não a partir dos condicionamentos e injunções da atual cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis. Esse é o grande segredo que, uma vez desvendado, nos permite escapar das intoxicações provo­cadas pela nossa “civilização das 500 mil coisas”. Para a verdadeira realização da pessoa humana, é muito mais importante “ser” do que “fazer”.

Profusão de informações

Quanta informação é produzida hoje? A cada dia, centenas de milhões de pessoas escrevem textos, tiram fotos e fazem vídeos que enviam a seguir. Governos reúnem dados, de boletins de ocorrência a censos demográficos, e empresas globais coletam informações sobre compras, preferências de consumidores e tendências. Há pouco menos de um ano, a Universidade Northwestern (EUA) divulgou um cálculo sobre isso. Confira os números (que, ressalve-se, têm crescido exponencialmente a cada ano).

Revista Planeta

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Deserto produtivo


Em uma das mais secas áreas da Terra, no Egito, floresce há décadas um projeto agrícola

A foto tirada pelo satélite Landsat 8 em fevereiro mostra a paisagem do deserto transformada pelo homem em East Oweinat, no Egito. A forma circular das terras cultivadas (bem nítida no destaque à esquerda) denuncia o método de irrigação utilizado. Uma empresa já teria produzido 40 mil toneladas de trigo em um ano no empreendimento (Foto: Nasa)


No superárido Deserto Ocidental do Egito – parte do Saara situada entre a margem oeste do rio Nilo e a Líbia –, a precipitação de chuva é de apenas alguns centímetros por ano. Nada mais improvável do que praticar a agricultura ali. Mas a necessidade é a mãe da invenção, e desde os anos 1980 estão se desenvolvendo ali alguns projetos de recuperação de terras.

As fotos aqui reproduzidas, feitas pelo satélite Landsat 8 em 26 de fevereiro deste ano, flagram uma dessas iniciativas, East Oweinat. Os círculos no solo indicam o método de irrigação: pulverizadores (sprinklers) que giram em torno de um pivô central borrifam a água retirada do subsolo. A água é extraída do aquífero Arenito Núbia, que se estende por cerca de 2 milhões de km2 sob terras de Egito, Líbia, Chade e Sudão.

O aquífero tem 150.000 km2 de capacidade, mas, sem reposição, sua água deve se esgotar com o tempo. Enquanto isso não acontece, as safras vão se sucedendo. Segundo pesquisas publicadas em 2010, a operação agrícola em East Oweinat se estendeu por quase 5 mil km2. Diz-se que uma empresa de arrendamento de terras teria produzido ali 40 mil toneladas de trigo (alimento tradicional no Egito) em um ano. Um aeroporto situado no lado leste do projeto serve para escoar a produção.
Revista Planeta

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

As vítimas do clima


O aquecimento global e as mudanças causadas por ele ampliam as chances de que as mulheres sejam alvo de mais episódios de violência, sobretudo aquelas que vivem em sociedades agrárias



A violência contra mulheres e meninas é uma questão global. Continua a ser uma das violações mais persistentes dos direitos humanos e uma ameaça para milhões de moças e mulheres. A violência contra mulheres e meninas não conhece fronteiras sociais, econômicas ou nacionais. Afeta as mulheres de todas as idades e surge em vários tipos de ambientes – assumindo muitas formas, incluindo violência física, sexual ou psicológica, bem como abuso e exploração econômica.

Pelo menos uma em cada três mulheres em todo o mundo foi espancada, coagida ao sexo ou abusada emocionalmente em sua vida, na maioria das vezes por um parceiro. A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, lida na Assembleia Geral da ONU em 1993, define assim o tema: “O termo ‘violência contra as mulheres’ significa qualquer ato de violência com base no gênero que resulte ou possa resultar em danos físicos, sexuais ou psicológicos ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou na vida privada”.

A vulnerabilidade das mulheres e das moças e sua exposição à violência aumentam, tal como as temperaturas do planeta. Por ocasião do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres de 2016, celebrado em 25 de novembro, a Unesco chamou a atenção para os efeitos das mudanças climáticas e recursos escassos na intensificação da violência contra mulheres e meninas.

Uma edição oportuna quando o Acordo de Paris havia entrado em vigor e os líderes se encontravam na COP22, a conferência do clima realizada em novembro em Marrakech, no Marrocos. A mudança climática é um multiplicador de ameaças. Pode contribuir para a quebra de safras e o declínio da produção de alimentos, o deslocamento de populações e espécies, bem como o aumento da pressão econômica em casa devido à perda de meios de subsistência após desastres naturais induzidos pelo clima.

Vulnerabilidade

Embora populações inteiras sejam afetadas pelas mudanças climáticas, são as mulheres e as meninas que pagam o preço mais alto. Na maioria das vezes, devido às funções tradicionais que assumem, as mulheres dependem fortemente dos recursos naturais e são responsáveis por obter alimentos, água e combustível para cozinhar. Em tempos de seca, a busca por água potável pode levar até oito horas por dia, deixando-as vulneráveis a agressões, estupros ou sequestros. Elas enfrentam obstáculos sociais, econômicos e políticos que limitam sua capacidade de lidar com a mudança e ameaçam sua segurança.

Quando um país ou uma região enfrenta um desastre natural, o combate à violência contra as mulheres torna-se menos prioritário e os mecanismos para protegê-las se enfraquecem. As mulheres e as moças perdem frequentemente seu sistema de apoio depois de terem sido deslocadas e ficam mais vulneráveis ao tráfico. Elas também estão em desvantagem no acesso a uma educação de qualidade, o que as torna mais propensas a ser ví­timas inconscientes de seu ­ambiente.

Em 2005, no Mississippi (sul dos Estados Unidos), observou-se um aumento de 45% no número de casos de agressão sexual durante o período de sete meses após o furacão Katrina. Houve também um aumento de 300% na violência doméstica depois que dois ciclones tropicais atingiram a província de Tafea, em Vanuatu (Oceania), em 2011. Na Nova Zelândia, durante o fim de semana do terremoto de Canterbury, em 2011, houve um aumento de 53% na chamada violência doméstica. Em muitas regiões afetadas por catástrofes naturais, os dados, no entanto, não estão disponíveis ou são muito limitados. Para abordar melhor essa questão, os dados sobre a violência contra as mulheres devem ser recolhidos sistematicamente depois de uma catástrofe natural.

As mulheres estão no coração das comunidades. Seu vasto conhecimento sobre a gestão e a utilização dos recursos naturais é fundamental para enfrentar os processos de mudança climática, em particular no que se refere à gestão da água e à preparação para o risco. As mulheres e as moças representam um enorme potencial que deve ser integrado nas soluções para as alterações climáticas. A participação plena de meninas e mulheres – e sua liderança – é fundamental para responder adequadamente aos efeitos negativos do aquecimento global.
Revista Planeta

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Reservas ocultas


Estão no Brasil dois dos maiores aquíferos do mundo, um sob a Amazônia e outro no subsolo do sudeste e do sul do país. Aprender a explorá-los sem esgotá-los é o desafio das autoridades e da sociedade

Encontro dos rios Negro e Solimões, perto de Manaus: por baixo de boa parte da região amazônica há um sistema aquífero com área de mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados (Foto: Aleksander Mirski)

Dono de 12% da água doce do mundo, o Brasil não deveria ter problemas para abastecer sua população. Mas a escassez ou a falta dela é uma realidade para milhões de brasileiros. E não só no sertão nordestino, como se viu na crise hídrica que atingiu São Paulo, sobretudo a região metropolitana da capital, entre 2013 e 2014. Nesse contexto, as atenções se voltam para os aquíferos, enormes depósitos subterrâneos de água, cada vez mais vistos como solução, ao menos parcial, para a falta do líquido nas grandes cidades.

De acordo com o Mapa das Áreas Aflorantes dos Aquíferos e Sistemas Aquíferos do Brasil, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), há 182 desses reservatórios distribuídos pelo território nacional, inclusive no árido Nordeste. Entre eles estão dois dos maiores do mundo, o Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga), com reservas estimadas de 162.520 quilômetros cúbicos (km3), e o Sistema Aquífero Guarani (SAG), localizado no sudeste e sul do país, que pode ter até 40.000 km3 de água. Somados, esses mananciais chegam a cerca de duas vezes o volume existente em todos os rios e lagos do planeta.

Aquíferos não são rios correntes ou lagos subterrâ­neos. São reservas de água que ocupam os interstícios das rochas, como poros, fissuras ou rachaduras. Ou seja, as pedras funcionam como espécies de esponjas gigantes. “Eles são uma unidade geológica (formação ou grupo) saturada pelo líquido, constituída de rocha ou sedimento, suficientemente permeável para permitir a extração dele de forma econômica e por meio de técnicas convencionais”, explica Rodrigo Lilla Manzione, professor e pesquisador da Faculdade de Ciências e Engenharia do campus de Tupã da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Os aquíferos se dividem em três tipos. No primeiro, chamado de sistema fraturado, a água subterrânea encontra-se basicamente nas fraturas, microfraturas, juntas e falhas das rochas. Já os porosos guardam o líquido entre os poros das pedras. Por fim, há os sistemas cársticos, em que o armazenamento e a circulação são condicionados principalmente pela dissolução aleatória e pelo fraturamento ou pelas descontinuidades das rochas carbonáticas (rochas sedimentares cuja composição primária são os carbonatos, como o calcário e o dolomito). O Saga e o Guarani se enquadram na segunda categoria. A diferença é que o segundo tem uma “capa” de basalto – um rocha dura – por cima, com até 1.000 metros de espessura, o que dificulta sua exploração em alguns pontos.
Entusiasmo revisto

Segundo o geólogo Ricardo Hirata, professor titular do Instituto de Geociências e vice-diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas), ambos da Universidade de São Paulo (USP), o aquífero Guarani tem espessura média de 250 metros, variando de 50 a 600 metros, e profundidades superiores a 1.000 metros. “O volume total armazenado é estimado entre 30 mil km3 e 40 mil km3”, diz. “Isso é o equivalente a 100 anos de fluxo cumulativo do rio Paraná.”

Na região de Ribeirão Preto (SP) (foto), o aquífero Guarani é usado normalmente para a extração de água (Foto: Alf Ribeiro)

Em 1996, quando o Guarani recebeu seu nome atual, pensava-se que ele era o maior do mundo e que poderia abastecer a população brasileira durante 2.500 anos. Depois de realizar novos estudos, porém, o geólogo gaúcho José Luiz Flores Machado concluiu que ele não é o “mar de água doce” que se imaginava. As pesquisas revelaram que, em distâncias de algumas centenas de quilômetros, sua potencialidade varia muito.

A parte do manancial que fica no estado de São Paulo, por exemplo, “apresenta excelente conformação estrutural, facilitando a recarga (reabastecimento do aquífero pela chuva), circulação e descarga das águas subterrâneas”, e seu potencial se aproxima do que foi divulgado no início. Já em Santa Catarina e no Paraná, “extensas áreas do aquífero têm alta salinidade”. Na Argentina a situação é ainda pior: lá, segundo Machado, o sistema é totalmente confinado em grandes profundidades.

Na província de Entre Rios, por exemplo, a salinidade aumenta muito logo a partir do rio Uruguai, quando poços termais que tinham águas com cerca de 1.000 miligrama por litro (mg/l) de sais passam a apresentar mais de 100.000 mg/l, quase três vezes o valor encontrado no mar. Já o Saga apresenta um potencial maior do que se pensava de início. O que se conhecia até recentemente era o aquífero Alter do Chão, mesmo nome de uma bela praia fluvial em Santarém (PA), com reservas estimadas em 86.000 km3.

Há cerca de 15 anos pesquisadores das universidades federais do Pará (UFPA) e Ceará (UFC) começaram a estudar com mais detalhes esse manancial e perceberam que ele é apenas parte de um sistema que se estende por mais de 1.800 km desde o Peru e a Colômbia, entrando no Brasil pelo Acre e indo até a ilha de Marajó, com uma largura que varia de 250 km a 500 km e uma espessura que vai de 1.200 a 7.000 metros.

“Nossos estudos revelaram que o Alter do Chão integra um sistema hidrogeológico maior, que abrange as bacias sedimentares do Acre, Solimões, Amazonas e Marajó”, explica o geólogo Francisco de Assis Matos de Abreu, da UFPA, um dos coordenadores da pesquisa. “No total, essas bacias possuem, aproximadamente, uma superfície de 1,3 milhão de km2, dos quais 67% ficam no Brasil, com o dobro das reservas conhecidas anteriormente.” Por isso, acharam melhor rebatizá-lo com a denominação atual.
Uso sustentável

O que começa a ser discutido é a melhor forma de explorar de modo sustentável esses depósitos subterrâneos, sem esgotá-los. A preocupação se justifica, porque eles já estão sendo comprometidos, seja por superexploração ou contaminação por poluentes. “A crise hídrica que assolou o estado de São Paulo, principalmente a região metropolitana da capital, em 2013/2014, traz reflexos até hoje”, diz Manzione. “Houve uma procura por soluções alternativas para o abastecimento, como perfuração clandestina de poços artesianos. Apesar de proibida pela legislação, essa prática é difícil de ser controlada.”
Alter do Chão, no Pará, parte da imensa reserva do Sistema Aquífero Grande Amazônia (Foto: Cristiano Martins/ Ag. Pará)

Embora não se estenda até a cidade de São Paulo, a superexploração afeta o aquífero Guarani. “Ela vem ocorrendo em diversos locais, onde a demanda não acompanha a recarga dos re­servatórios subterrâneos, causando rebaixamentos sistemáticos”, explica Manzione. “Além disso, existe a poluição do solo e da água provocada principalmente por atividades como agricultura e pastoreio conduzidas em áreas vulneráveis.”


A superexploração ainda não é problema para o Saga. “O que se retira dele é praticamente nada em relação ao seu potencial”, diz Abreu. “O problema principal hoje é a vulnerabilidade nas áreas­ de extração mais importantes, ou seja, nas cidades. Isso ocorre por causa da falta de saneamento e da deposição de resíduos sólidos sem controle (lixões). Por isso, suas águas, nas porções mais rasas, começam a ficar poluídas, dificultando seu uso para o suprimento humano.”

No caso do Guarani, para reduzir problemas como esses e geri-lo melhor, os países por onde ele se estende assinaram um acordo em San Juan, Argentina, em 2010. Até 2012, porém, apenas o Uruguai e a Argentina o haviam ratificado; o Senado brasileiro fez isso em 2 de maio de 2017. Agora, só falta o Paraguai aprová-lo.

Segundo Hirata, o tratado atrairá mais investimentos e financiamentos a esses países, permitindo o retorno de projetos que trarão mais conhecimento técnico e científico sobre o manancial, por meio de programas ambientais e de cooperação internacional. “Além disso, levará seus países à vanguarda da cooperação sobre águas internacionais, considerando-se o número ainda baixo de acordos vigentes entre países sobre aquíferos transfronteiriços”, diz.

ta Revista Planeta

“A Terra não resiste a 7 bilhões de humanos agindo como agimos”


Um dos mais premiados documentaristas brasileiros estreia nos longa-metragens com Todas as Manhãs do Mundo, um festival de imagens impressionantes que mostram o amanhecer na natureza em diferentes locais do planeta




Mergulhador, cinegrafista, documentarista, produtor e diretor, o paulistano Lawrence Wahba usa todas essas capacitações a favor da natureza. Venceu vários prêmios internacionais, como o Emmy 2013 de Outstanding Cinematography por América Selvagem (Foto: Divulgação)

Para marcar seus 25 anos de carreira, o mergulhador e documentarista Lawrence Wahba decidiu sair da tela pequena, onde é presença constante em canais como o Nat­Geo, e estrear nos cinemas. Seu primeiro longa-metragem, Todas as Manhãs do Mundo, que estreou em abril em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, parte da ideia de uma série que fez com a produtora francesa Bonne Pioche para o NatGeo, exibida em 2015, no qual se retrata o amanhecer em diferentes biomas do planeta. No filme, o conceito é retrabalhado a partir de uma “conversa” entre dois personagens-narradores, o Sol e a Água (interpretados respectivamente pelos atores Ailton Graça e Letícia Sabatella), elementos fundamentais para a existência da vida na Terra.

No estilo docudrama, que mistura fantasia e realidade, e mirando em um público de todas as idades, Todas as Manhãs do Mundo acompanha o alvorecer e a manhã em ecossistemas diversos – o Ártico norueguês, as florestas temperadas do oeste do Canadá, o deserto da Baja Califórnia, a savana africana, os mares quentes da Indonésia e o Pantanal brasileiro. Foram 44 semanas de gravações para reunir as 400 horas de material que serviram de base para a obra – imagens de grande beleza que mostram a jornada pela vida em todas essas regiões e o impacto representado pela ação humana. Wahba fala sobre esse filme e sua premiada carreira na entrevista a seguir.



PLANETA – O filme Todas as Manhãs do Mundo, lançado agora, tem o mesmo nome de uma série do canal NatGeo exibida em 2015, na qual você teve participação fundamental, como cinegrafista, narrador e diretor. Em que o filme se diferencia da série?
WAHBA – O projeto nasceu a partir de um convite da produtora francesa Bonne Pioche, de A Marcha dos Pinguins, filme vencedor do Oscar de melhor documentário em 2006. O projeto francês previa apenas a série de TV, mas tive a ideia do longa e, desde a origem da versão brasileira, decidimos que o projeto seria composto por uma série de TV de cinco episódios e de um longa-metragem de cinema. A série, exibida no NatGeo em 2015, é bem documental, retrata as minhas aventuras documentando o amanhecer em diversos biomas do planeta. O longa, apesar de homônimo, é totalmente diferente – é uma mistura de realidade com ficção. As imagens são reais, flagrantes da vida animal captados na natureza, mas a história é narrada pelo Sol e pela Água, “pai” e “mãe” da vida na Terra. É um filme para toda a família, principalmente crianças. Isso foi completamente planejado: é um filme que entretém educando ou educa entretendo.

Leões na África: imagens de rara beleza compõem a série e o filme (Foto: Divulgação)

PLANETA – O filme tem um forte conteúdo educativo. Como está sendo a receptividade nas escolas? E em relação ao público em geral?
WAHBA – O filme está indo surpreendentemente bem, principalmente se levarmos em consideração as dificuldades de se lançar um documentário nos cinemas brasileiros. Hoje [a entrevista foi concedida em 4 de maio] tivemos a confirmação de que ele ficará mais uma semana em exibição em São Paulo – está indo para a quinta semana de exibição, tempo acima do que esperávamos. Em breve teremos novidades para exibição em outras cidades e, quem sabe, outras plataformas, inclusive na TV… A produtora e o distribuidor estão trabalhando nisso. O feedback que recebi do público e principalmente nas escolas foi muito positivo. Para divulgar o filme, dei 15 palestras em escolas e universidades, com plateias que iam de crianças de 7 anos a universitários, e falar com crianças e jovens foi uma experiência incrível. Pude sentir o quanto as pessoas estão gostando – principalmente as crianças e os professores.

PLANETA – Você e sua equipe colheram imagens para o filme em vários santuários naturais no mundo. Foi possível observar neles efeitos da ação humana e do aquecimento global? Em quais desses lugares isso ficou mais evidente?
WAHBA – Para observar os efeitos da ação humana e do aquecimento global seria necessário muito mais tempo de gravação – teríamos de fazer uma comparação de “antes e depois”, então não observamos isso diretamente. Ouvi muitos relatos de guias e pesquisadores de como várias coisas pioraram e algumas melhoraram. Como nosso filme buscava retratar a beleza da vida animal, priorizamos as gravações em parques nacionais, áreas­ preservadas – enfim, documentamos “ilhas preservadas” cercadas por um mar de devastação. A caminho de todas as regiões que gravamos, sem exceção, testemunhamos as pressões que a atividade humana exerce no entorno. Seja na Noruega ou na Zâmbia, as áreas preservadas são cada vez mais pressionadas pelas ações do homem.


PLANETA – Filmar a natureza significa­ trabalhar com “atores” que constantemente não fazem o que se espera deles. Como lidar com tamanha incerteza?
WAHBA – Lidar com essa incerteza é a “magia” do meu trabalho. A gente consegue maximizar as chances de conseguir as imagens com muita pesquisa prévia e escolhendo os guias certos para cada local. Os pesquisadores costumam nos ajudar muito nesse processo. Nossa experiência e a dedicação nas filmagens também ajudam, mas o fator sorte sempre está presente. Costumo brincar que, depois de passar 17 semanas no Pantanal, tive a sorte de filmar uma onça matando um jacaré… ou seja, temos de ajudar a sorte nos ajudar. Na maioria das vezes dá certo; às vezes, não. Na verdade, é essa incerteza que nos faz valorizar mais as sequências que conseguimos captar.

PLANETA – A qualidade das imagens do filme é notável, com um destaque especial para as belíssimas cenas subaquáticas colhidas no Pantanal. Quais foram os cuidados necessários para se obter esse resultado?
WAHBA – Filmar embaixo da água é minha origem, fui cinegrafista submarino antes de filmar na superfície, faço isso profissionalmente desde 1991… Fazer belas imagens debaixo da água não é mais do que minha obrigação. O segredo aí foi a forma como descobrimos essa locação. Fiz duas expedições à Serra do Amolar, região próxima à fronteira com a Bolívia, com a Polícia Ambiental do Mato Grosso do Sul, buscando as águas mais claras do Pantanal. Já estávamos em águas claras até que eu e o cabo Maurelício chegamos ao Seo Ruivaldo, morador da região. Ele nos levou a esse pedaço do Pantanal que nunca tinha sido filmado. Nas outras sequências subaquáticas, como as de peixes predando na Indonésia, foram horas e horas no fundo do mar, por vezes sete horas de mergulho por dia, até ter a sorte de conseguir esses flagrantes.

Urso com salmão: planejamento e sorte para filmar (Foto: Divulgação)

PLANETA – Você já tem uma longa carreira como documentarista, com viagens a todos os continentes e a variados biomas. Qual desses lugares foi o mais desafiador para o seu trabalho? Ainda existe algum ponto da Terra que você queira explorar mais cuidadosamente?
WAHBA – Ainda tenho muito a explorar, muitos lugares que tenho sede de conhecer: Madagascar, Açores, Namíbia, Nepal, Filipinas… Esses são alguns dos locais que sonho conhecer e poderia citar o triplo da quantidade de lugares para onde gostaria de voltar. O mundo é muito grande, as opções, infinitas, e o tempo, limitado! Costumo dizer que sempre o local mais desafiador é o próximo. Mas, falando a sério, os lugares mais desafiadores costumam ser os com climas mais extremos. O frio do Ártico ou o calor do deserto oferecem muitos desafios à equipe; já a umidade da Amazônia dificulta o uso dos equipamentos. Por vezes as condições de mergulho impõem desafios nas filmagens subaquáticas. Enfim, gravo em locais inóspitos, de difícil acesso, e uma expedição de filmagem precisa ser autônoma em equipamentos, suprimentos, combustível… Há mais desafios do que parece a princípio, mas isso é o que mais me motiva.

PLANETA – Depois de tudo o que você já viu na sua carreira, dá para concluir que a natureza ainda é mais forte do que o ser humano? Ou nossa capacidade de destruir o ambiente está vencendo a batalha?
WAHBA – Tenho uma relação “bipolar” com a resposta dessa pergunta… Às vezes acho uma coisa, às vezes outra. Vou responder assim: é consenso que o planeta não resiste a 7 bilhões de humanos agindo como agimos, consumindo como consumimos, explorando como exploramos. Por outro lado, também é comprovada a capacidade que nossa espécie (ou alguns exemplares dela) tem de raciocinar, achar alternativas, consertar. Acredito que a natureza seja mais forte do que o homem e que, em dado momento, ou mudaremos nossas práticas, ou seremos­ eliminados do planeta. Ninguém pode prever quando será esse momento, mas ainda temos tempo de mudar nossas atitudes.
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