domingo, 9 de dezembro de 2018

Bandidos comuns, bandidos de farda, bandidos de gravata


As milícias do Rio se tornaram uma indústria milionária, com tentáculos no tráfico e na política.


(vladans/iStock)

Dois milhões de fluminenses vivem sob um regime peculiarmente feudal. São os moradores das áreas controladas por milícias. “Milícia” é um eufemismo para “máfia”. Uma máfia formada por ex-policiais, policiais na ativa, policiais expulsos, carcereiros e leões de chácara em geral que se mostrem leais ao sistema e não vomitem depois de cortar a cabeça de alguém a mando dos chefes.

O serviço que uma milícia presta é o de segurança. Num primeiro momento, segurança contra a ação de bandidos comuns. Num segundo, segurança contra a ação da própria milícia. As milícias mataram a juíza Patrícia Acioli, que abriu mão de sua segurança pessoal para condenar bandidos fardados com o mesmo rigor que se condenam bandidos não fardados. Terminou executada com 21 tiros, em 2011. Onze PMs foram condenados.

Mas a reação do poder público parou ali. Das 20 operações que as Forças Armadas fizeram no Rio nos seis meses antes da intervenção, nenhuma aconteceu em áreas controladas por milícias. Depois da intervenção, continuou tudo na mesma: não se falou no assunto.
Grupos de extermínio

A raiz das milícias está nos grupos de extermínio – gangues de policiais e ex-policiais que passaram a vender serviços de “proteção privada” a comerciantes na década de 1960. Eram assassinos de aluguel que agiam sob as bênçãos da ditadura militar. Os generais, afinal, usavam os serviços desses grupos para caçar “subversivos”, ou seja, qualquer um que representasse uma ameaça ao seu poder.


O fim da ditadura não acabou com os grupos de extermínio. Tanto que a Chacina da Candelária, em 1993, foi obra de um deles. Atiradores dispararam contra 60 crianças e adolescentes que dormiam do lado de fora da Igreja da Candelária, no centro do Rio, num atentado que terminou com oito mortos. Três PMs acabaram condenados, todos com penas superiores a 200 anos. Nota: nenhum passou muito tempo preso. O último deles saiu da cadeia faz tempo, em 2012.

No começo do século 21, esses grupos sofisticaram sua operação. Em vez de agir meramente como mercenários, tomaram o controle de regiões carentes da cidade. Tornaram-se um Estado paralelo, com exército próprio. E assim nasceram as primeiras milícias.

Elas começaram matando e repelindo traficantes. Para demonstrar seu poder, adotaram justamente a estratégia dos antigos grupos de extermínio: largar na rua os corpos daqueles que abatiam. Na prática, substituía-se um crime organizado por outro. Mas, ao prover uma paz aparente, em contraste com a insegurança ainda maior nos territórios do tráfico, as milícias conseguiram consolidar seus domínios, principalmente na Zona Oeste do Rio.

Em troca, passaram a cobrar taxas sobre vários setores da economia local: o de energia (botijões de gás), o de entretenimento (gatonet), o de transporte (vans de lotação), o de imóveis (tomando terrenos de moradores e alugando para lixões clandestinos). Tudo isso mais o velho serviço mafioso de proteção. Passaram a cobrar coisa de R$ 10 mil por mês de pequenas empresas para que não fossem assaltadas, não tivessem seus empregados atacados nem seus caminhões roubados.

No fim, as milícias acabaram formando uma corporação multimilionária à margem da lei. Para dar uma ideia: só com o que elas extorquem dos motoristas de lotação nos bairros de Campo Grande e Santa Cruz, na Zona Oeste, de acordo com o Ministério Público, as milícias tiram R$ 27 milhões por mês.

Acordos com o tráfico

Com o tempo, a linha que dividia milícia e tráfico ficou mais tênue. Várias milícias passaram a oferecer proteção para traficantes, contra a ação de grupos rivais, e a lucrar elas também com o comércio de cocaína. De acordo com especialistas, a facção com mais acordos com as milícias é o Terceiro Comando Puro, que controla o complexo de Acari, na Zona Norte – o mesmo onde a vereadora Marielle Franco denunciava abusos policiais.

O Comando Vermelho também estaria na lista de parceiros. Em 2015, o jornal O Dia relatou que uma milícia tinha vendido o Morro do Jordão, em Jacarepaguá, para o CV. A facção teria pago R$ 3 milhões para instalar suas bocas de tráfico ali. “Esses paramilitares podem criar uma nova forma de negócio. Tomar comunidades e vendê-las. Passar o ponto”, disse à época o ex-oficial do Bope Paulo Storani, hoje um sociólogo especializado em segurança pública.

O perfil das milícias também está mudando. 42 dos 143 milicianos presos em 2010 eram PMs da ativa. Em 2016, essa proporção caiu para dez PMs da ativa entre 155 milicianos presos.

Uma tradição miliciana, porém, segue firme: a infiltração na política. Além de lançar candidatos milicianos, eles influem em todo o processo eleitoral. Nas eleições municipais de 2016, o jornal O Globo investigou que milicianos cobravam uma licença para propaganda política e comícios em áreas dominadas. Também selavam acordos de distribuição de cargos para milicianos, no caso de vitória. Ao se vincular a políticos, em vez de apresentar candidatos próprios, as milícias teriam a vantagem dupla de se instalar no poder público, mas sem mostrar a sua cara.
O que nos resta

Milicianos, traficantes, políticos parasitas. Essa fauna forma um enclave de barbárie na segunda maior metrópole do País (e não só nela). Um enclave que não respeita os valores mais básicos da civilização, a começar pelo direito à vida, que foi usurpado de Marielle Franco na noite do dia 14 de março.

A vereadora lutava contra o banditismo fardado, tal como Patrícia Acioli. Só que sair desse episódio de terror vendo todo PM como um miliciano é tão obtuso quanto achar que todo morador de favela é ladrão, tão acéfalo quanto bradar que Marielle Franco “defendia bandido”. Os policiais honestos são tão vítimas dessas máfias quanto os cidadãos das comunidades infestadas pelo crime.

O fato é que existe um conflito sério em andamento. E ele só vai acabar se a sociedade for tão dura contra o crime quanto o crime é duro contra a sociedade. Tal dureza, porém, só faz sentido se for usada com tolerância zero a abusos e, sobretudo, com inteligência. Inteligência para chegar em quem realmente manda no crime – estejam esses mandantes nos morros, nos quartéis ou na política.
Revista Superinteressante

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