Texto: Maria Emília Coelho
330 quilômetros separam Rio Branco, no Acre, da fronteira onde começa a Interoceânica, no Peru
Quatro mil trezentos e quinze metros acima do nível do mar. Levantando as mãos, parece possível alcançar as nuvens. O ar sopra gelado e chega com dificuldade aos nossos despreparados pulmões. Estamos em Macusani, comunidade rodeada pelos picos de neve eterna e rochedos pedregosos dos Andes do sul do Peru. Durante anos, o lugar foi habitado apenas por pastores de alpaca, animal da família das lhamas. Atualmente, os moradores de rostos queimados pelo frio intenso das montanhas circulam entre máquinas e homens de capacete e uniforme laranja vindos de fora.
Macusani está situada no trajeto da Interoceânica Sul (ou Transoceânica), a megaestrada do Pacífico, que permitirá a ligação entre a Amazônia brasileira, desde Inãcari, na fronteira com o Acre (antes disso, de Brasiléia, a 220 quilômetros da capital acriana de Rio Branco pela BR-317), até os portos peruanos de Ilo, Matanari e San Juan de Marcona. Nossa vinda a essas terras de culturas milenares teve justamente o propósito de observar o efeito da obra nas vilas e cidades existentes nessa vastidão de florestas e montanhas até agora inexploradas do Peru. Para isso, eu e o fotógrafo Christian Quispe fizemos uma parte do trajeto da Interoceânica – dos Andes à floresta amazônica e entramos em seguida no Brasil.
De fato, a estrada começa no lado brasileiro e segue até Iñapari, já na Amazônia peruana, onde cruza o Estado de Madre de Dios e daí se bifurca – uma parte segue em direção a Puno, à beira do lago Titicaca; e a outra vai para Cuzco, que dá acesso às famosas ruínas de Machu Picchu. Em seguida, corre até o mar por diferentes ramais que vão desembocar nos três portos.
Em Macusani, a expectativa dos moradores é grande. Vitor Valenzuela, filho mais velho de uma família de pastores, sonha em abrir uma agência de viagens para promover o trekking pelo nevado sagrado de Allinpácac e as gigantes rochas vulcânicas do lugar, cujas cavernas abrigam pinturas rupestres de mais de 8 mil anos. “Com a chegada do asfalto, será possível explorar o turismo na nossa região”, afirma.
A ligação entre a cordilheira e a imensidão da floresta, por enquanto, é precária. Mas até recentemente era pior. Milhares de andinos se arriscavam na boleia de caminhões-tanque que levavam combustível das cidades serranas de Cuzco e Juliaca, em Puno, até Puerto Maldonado, capital de Madre de Dios. O aviso “Peligro! Combustible!” nunca desencorajou os passageiros a percorrer o caminho esburacado e coberto de lama e poeira durante 20 dias, atrás de trabalho nas zonas de extração de ouro e madeira. Hoje já é possível tomar um ônibus das empresas locais, que leva 18 horas para percorrer o caminho montanha abaixo até a Amazônia.
O desafio da obra gigantesca
Viajamos em companhia desses aventureiros que mascam folhas de coca e senhoras de longas tranças e inúmeras saias coloridas. À medida que avançamos, o cheiro da mata chega a nossos narizes e o calor à pele. Não parece afetar nossos companheiros que levam de tudo para a “planície”: bebês, roupas, batatas, cuys (espécie de porquinho-da-índia usado na culinária andina), víveres para serem vendidos ao longo do caminho – especialmente nos acampamentos dos operários do megaempreendimento. Uma das paradas é San Gabán, um vilarejo de casas mal cuidadas situado em um território de paisagens turísticas. Os comerciantes dessa comunidade, localizada a 820 metros de altitude, aproveitaram a oportunidade e construíram quartos atrás de seus armazéns para alojar as pessoas que vêm em busca de uma nova oportunidade de trabalho.
Por toda parte, a estrada gera postos de serviços temporários. Segundo a construtora Odebrecht, que lidera o Conirsa, um dos consórcios responsáveis pela obra, serão gerados 14 mil empregos diretos e indiretos durante os cinco anos de sua execução. O governo peruano exigiu que 75% dos trabalhadores sejam locais. Trata-se, na verdade, de um projeto que desafia a engenharia brasileira em sua missão de domar a gigantesca cordilheira dos Andes e seus imprevisíveis huaycos, as avalanches de lama que avançam montanha abaixo na época das chuvas, amedrontando até quem vive muito tempo na região.
Mas a paisagem aos poucos perde um pouco de suas características imemoriais. Os peões usam dinamite para explodir as rochas, derrubam árvores e mudam o curso dos rios. Tratam de domar uma geografia contrastante, que vai de altitudes superiores a 4.800 metros, com temperaturas que oscilam, no mesmo dia, de 15 graus negativos ao calor tropical da bacia amazônica. Em San Gabán, onde está instalada uma base do Intersur, outro consórcio executor da construção, o engenheiro-chefe brasileiro, Elmir Dias, resume a dificuldade da empreitada: “Trabalho há 33 anos construindo rodovias, mas esta é, sem dúvida, o maior desafio de minha vida”, afirma.
Crescimento urbano na selva
O desafio, porém, vai além da prancheta dos engenheiros. Como toda obra, a Transoceânica mexe com gente, natureza, clima e traz consequências que ultrapassam os empregos imediatos. Ao cruzar uma das áreas de maior biodiversidade do mundo, refúgio dos últimos povos isolados da América do Sul, a rodovia ameaça o equilíbrio do lugar. Isso ficou evidente quando atravessamos o quilômetro 100, a duas horas de Puerto Maldonado. Ali, aventureiros em busca do ouro garimpado nos rios de Madre de Dios construíram uma cidade de plástico ao lado da rodovia. Guacamayo, como foi batizada, possui casas, bares, cantinas, lan houses e prostíbulos forrados com o plástico azul típico dos acampamentos de mineiros.
Guacamayo é a mais nova, mas não a única cidade de plástico de Madre de Dios. Outras áreas mais antigas, como Hueypetue, Delta 1 e Boca Colorado ferem como pragas a floresta. Ao longo de décadas, o garimpo destruiu a mata e fez os rios acumularem lodo. O mercúrio contamina o solo e a água, tornando-se uma grave ameaça à saúde da população. Os ambientalistas peruanos estimam que a corrida pelo ouro já comprometeu 150 mil hectares da floresta e não tem prazo para terminar. Ao contrário, deve aumentar com a facilidade de acesso proporcionada pela pavimentação.
A expansão urbana já é um fato em Puerto Maldonado. Há dois anos, quando estivemos aqui pela primeira vez, a cidade tinha aspecto de vilarejo empoeirado. Hoje, ela cresce na mesma proporção que os quilômetros asfaltados da rodovia. A cada dia aparecem novos estabelecimentos comerciais e ruas de terra são pavimentadas. O som da floresta vai perdendo lugar para a cacofonia dos milhares de mototaxis – principal meio de transporte público do lugar. Segundo o censo peruano de 2007, esta é a região menos povoada do país, mas também aquela com maior taxa de crescimento anual (3,5%). O número real de habitantes (oficialmente 92 mil) é difícil de dizer, pois grande parte da população vai e vem à medida que encontra novas oportunidades de trabalho.
Essas oportunidades, aliás, não costumam existir apenas no limite da legalidade. É o que afirma o madeireiro Alfonso Mullesaca, natural de Puno, que há dez anos vive entre Puerto Maldonado e Juliaca transportando mogno, cedro e outras tantas variedades de madeira de Madre de Dios. “A rodovia levou ao aumento do volume de tábuas não certificadas e sem nota fiscal que circula pela região”, afirma. “Não temos como competir com os produtores que não pagam imposto.” Sua queixa é corroborada pelos funcionários do Inrena (Instituto Nacional de Recursos Naturais), órgão do governo que fiscaliza a atividade. Segundo afirmam, 40% da madeira que sai de Puerto Maldonado para o resto do país e para o exterior tem origem ilegal.
As centenas de assentamentos madeireiros que brotam em Madre de Dios fazem limite com territórios indígenas e avançam suas fronteiras. As consequências são inevitáveis – os índios ora enfrentam os invasores, ora se associam a eles atrás do dinheiro da madeira e do garimpo. Em Iñapari, encaramos a subida de duas horas e meia em um peque, como são chamados os barcos pelo rio Acre, para conversar com representantes da Bélgica que, apesar do nome, é uma das comunidades indígenas. O diálogo numa mistura de castelhano e português é o único possível. Esses índios, descendentes da etnia yine, já não falam seu idioma ancestral e a convivência com os brasileiros, que vivem do outro lado do rio, influencia o cotidiano da aldeia.
As 15 famílias que habitam 54 mil hectares de terra acabaram de assinar um contrato de um ano com uma empresa madeireira de Iñapari. “Não há outra jeito, precisamos educar nossos filhos e cuidar da saúde”, afirma Arturo Aspajo, o líder da comunidade. Seu pai, que comandou a luta pela titulação das terras há 15 anos, é hoje um cidadão brasileiro. “Do lado de lá, os índios recebem mais apoio do governo e seus territórios são mais protegidos”, compara Arturo. Ele explica que não existe no Peru um órgão do estado que atenda as necessidades dos povos nativos da Amazônia, o que favorece a migração para o Brasil. O problema aumenta quando se trata de indígenas isolados. Esta é a região onde está concentrada a maioria dessas populações, expostas pela primeira vez aos aventureiros de todo tipo que buscam abrigo nas florestas amazônicas.
Expectativa brasileira
A expectativa da rodovia do lado brasileiro, porém, é enorme. A Interoceânica é considerada essencial para o escoamento dos produtos desse lado da fronteira, conectando os portos peruanos do Pacífico com os mercados das regiões Norte e Centro-Oeste e os portos do Sudeste do Brasil. Governo e empresários apostam na economia que deve ocorrer com os 9 mil quilômetros a menos no trajeto para levar carne e soja do continente para o mercado asiático – principalmente a China. O Brasil tem tanto interesse na obra que já concluiu o trecho acriano e bancou a ponte sobre o rio Acre, na fronteira com o Peru, além de incentivar o investimento das construtoras nacionais do lado peruano.
Fotografias
Revista Horizonte Geográfico
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