FRANCISCO LUIZ NOEL
Veículo movido a óleo de soja e de fritura: teste avançado / Foto: Divulgação
É lei: a partir de janeiro de 2008, quando os ônibus, caminhões, utilitários e tratores pararem diante das bombas para abastecer, o diesel vertido nos tanques terá 2% de óleo vegetal. O percentual é modesto, se comparado aos 25% de álcool adicionados à gasolina, mas corresponde a nada menos de 840 milhões de litros de biodiesel anuais – um mercado que vai movimentar, por ano, mais de R$ 1,5 bilhão. Não é à toa que a contagem regressiva para a mistura obrigatória já aquece, em todo o Brasil, uma cadeia produtiva integrada por agricultores, cooperativas, instituições de pesquisa, fabricantes de equipamentos, empresas de agronegócio e distribuidoras de combustíveis.
Sinônimo de vantagens econômicas, sociais e ambientais, a produção do biodiesel em larga escala é o grande desafio energético do país nos próximos meses para que o fornecimento esteja garantido, de norte a sul, até 2008. A lei 11.097, de janeiro de 2005, prevê a adoção gradual do óleo vegetal na matriz brasileira de combustíveis, começando com a mistura de 2% (B2, como foi batizada), até chegar a 5% (B5) em 2013. Como o Brasil compra no exterior mais de 10% dos 42 bilhões de litros de diesel utilizados por ano – 56% do consumo da frota nacional –, a poupança de divisas com a redução de importações será de US$ 160 milhões, que passam a girar nesse novo mercado agroindustrial do país.
A mistura do óleo vegetal ao diesel de petróleo – rotina em países como a Alemanha, por conta dos benefícios ambientais – chega ao Brasil junto com a promessa de inclusão social. Em nome da geração de postos de trabalho no campo, o carro-chefe do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), lançado em 2003, é a fabricação do óleo com matérias-primas como a mamona, no nordeste, e a palma (dendê), no norte, produzidas em regime de agricultura familiar. Mas, como o mercado tem pressa, o aceno de redenção social com o cultivo do "ouro verde", como o biodiesel é chamado, só vai virar realidade no médio e no longo prazo. Grande parte do B2 necessário para tirar a lei do papel, em 2008, terá de ser feito à base de soja.
Seja qual for a matéria-prima, os efeitos ambientais da mistura serão mais do que positivos. Por evitar a queima de 840 milhões de litros de diesel mineral a cada ano, a adição do óleo vegetal à proporção de 2% vai livrar a atmosfera da emissão de 25 milhões de toneladas de carbono equivalente – medida que soma as descargas dos principais gases de efeito-estufa, como o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O). "Além de o biodiesel não conter enxofre nem nitrogenados, o CO2 de sua queima é compensado pelo que foi consumido no plantio", observa a pesquisadora Angela Maria Uller, diretora da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Perspectivas
O Brasil tem condições privilegiadas para impulsionar a fabricação doméstica e projetar-se como produtor mundial de biodiesel, reconhecem organizações como a norte-americana National Biodiesel Board (NBB). A favor do país, contam os mais de 100 milhões de hectares disponíveis para a agricultura, a diversidade de climas e o conhecimento do uso energético da biomassa, acumulado nas três décadas do Programa Nacional do Álcool (Proálcool). O cultivo não só de palma, mamona e soja, mas também de algodão, girassol e outras oleaginosas é grande no território nacional e não encontra obstáculos à expansão. Tudo depende da sintonia entre as políticas públicas e da confiança dos investidores, num mercado livre de amarras regulatórias como as dos primórdios do Proálcool.
A produção do B2 vai demandar, em 2008, aproximadamente 1,5 milhão de hectares de lavouras de oleaginosas, segundo estimativas do governo federal, que, no início do PNPB, chegou a prever a geração de 200 mil novos postos de trabalho. Mesmo que a projeção não se confirme na área social em curto prazo, o ouro verde abre ao país não só perspectivas de vir a exportar o produto, mas também de captar financiamentos externos para a cadeia do novo combustível, valendo-se do mercado de créditos de carbono previsto no Protocolo de Kyoto, que entrou em vigor em 2005.
Ao mesmo tempo em que acena com benefícios para a economia e o meio ambiente e a redução da desigualdade social em áreas como o semi-árido nordestino e a Amazônia, a promessa do biodiesel alimenta indagações recorrentes sobre sua incorporação sustentável à matriz energética brasileira. "Há duas grandes expectativas: se o Brasil vai ter oferta suficiente de biodiesel para a mistura e se haverá tecnologias alternativas para diversificar a produção de matérias-primas, de modo a evitar a dependência da soja", resume Catarina Pezzo, coordenadora de projetos do Pólo Nacional de Biocombustíveis na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), que aposta em resposta afirmativa para as duas questões.
Faltando pouco mais de um ano para 2008, o país tem oito usinas de biodiesel operando em escala comercial, com capacidade de produção anual de 85,3 milhões de litros, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Contando outras 31 unidades em construção, regularização ou projeto, a aposta do governo é chegar a 1,1 bilhão de litros por ano até o fim de 2007, embora a instalação de uma usina demore de 12 a 18 meses. Para tornar realidade a previsão, a ANP vem abrindo caminho para o biodiesel com leilões para compra antecipada. É com as aquisições nesses pregões que distribuidoras como a Petrobras (BR) e a Ale Combustíveis já oferecem em mais de 600 postos o B2, que tem uso autorizado desde a publicação da lei 11.097.
"O programa do biodiesel está em ritmo acelerado. Com a realização dos leilões públicos para estimular o desenvolvimento da capacidade produtiva ainda no regime autorizativo, diversos empreendimentos e investimentos estão ocorrendo em todo o país", afirma Ricardo Dornelles, diretor do Departamento de Combustíveis Renováveis do Ministério das Minas e Energia. Nos últimos dois leilões, que aconteceram em julho, 600 milhões de litros de biodiesel foram arrematados antecipadamente pelas distribuidoras, que deverão receber o produto entre janeiro e dezembro de 2007. O volume representa mais de três vezes a quantidade negociada nos dois primeiros leilões, o que demonstra interesse crescente pela produção.
Mas nem todo o ouro verde comprado no primeiro leilão, em novembro de 2005, chegou no prazo às distribuidoras. Dos quatro produtores que venderam à Petrobras, só a Companhia Refinadora da Amazônia (CRA), uma das empresas do Grupo Agropalma, foi pontual. O atraso, porém, serviu para demonstrar que ainda existem problemas de estocagem e de transporte de grandes quantidades de biodiesel até os tanques das distribuidoras, de onde, após a mistura, o B2 tem caminho livre até os postos graças à logística comum aos outros combustíveis.
O lado social
Outro instrumento de incentivo do PNPB é o Selo Combustível Social, criado em julho de 2005. Concedido aos produtores industriais que adquirem matérias-primas da agricultura familiar, dão assistência técnica às lavouras e remuneram dignamente seus fornecedores, o selo garante tratamento diferenciado, como financiamentos especiais e vantagens tributárias. Exemplo disso são as alíquotas do PIS/Pasep e do Cofins, que como regra geral têm redução de 67,63% para os produtores. O abatimento chega à isenção total das duas contribuições no caso de empresas que fabricam biodiesel com mamona e palma cultivadas em regime de agricultura familiar nas regiões norte e nordeste.
O Selo Combustível Social já credencia dez produtores em várias partes do país. Um deles é a Brasil Ecodiesel, que usa mamona como matéria-prima em sua unidade de Floriano, no Piauí. Com capacidade de fabricação de 40 milhões de litros de biodiesel por ano, a empresa mantém desde 2004 um núcleo comunitário com 700 famílias de agricultores no município de Canto do Buriti, região semi-árida do estado. No assentamento de 18 mil hectares, cada família tem 15 hectares para lavoura e cuida de 10 hectares de área preservada (reserva legal), conforme prevê a legislação do meio ambiente. Sementes, maquinário e assistência técnica ficam por conta da empresa, que mantém ainda uma escola para 1,2 mil crianças e o posto de saúde local.
"Saímos na frente com esse modelo de estímulo ao empreendedorismo e à contribuição dos trabalhadores rurais para uma matriz energética em que as fontes renováveis irão assumir um papel mais significativo", afirma o presidente da Brasil Ecodiesel, Nélson Silveira. As parcerias se estendem a agricultores familiares de outros estados do nordeste, Minas Gerais e Tocantins, como parte do projeto de expansão da empresa, que tem 50% do capital em poder de um fundo de investimento administrado pelo Deutsche Bank. Nos planos estão uma usina no Ceará e outra no Rio Grande do Sul. Com investimentos de R$ 100 milhões este ano, a Brasil Ecodiesel pretende produzir 350 milhões de litros do combustível em 2007.
A multiplicação de empreendimentos movidos a mamona não vem ocorrendo, porém, no ritmo que o governo esperava quando lançou o PNPB. Com alto teor de óleo, resistente ao clima do semi-árido e conhecida pelos lavradores, essa oleaginosa despontava como grande fonte de melhorias sociais no nordeste. Com cinco hectares que produzam entre 700 e 1,2 mil quilos por hectare, uma família pode obter renda líquida anual de R$ 2,5 mil a R$ 3,5 mil e cultivar em consórcio o feijão e o milho. Mas é preciso que as lavouras cresçam em escala e em produtividade para que o preço do biodiesel proveniente da mamona ganhe competitividade.
Esse é o desafio que a Brasil Ecodiesel, entre outras empresas, vem enfrentando: "Eventuais insucessos na produtividade fazem parte do caminho de aperfeiçoamento de técnicas, treinamento, melhoria dos insumos, como em todos os demais projetos desenvolvidos com a mamona no nordeste do Brasil", afirma Silveira. Já Marcelo Brito, diretor comercial da Agropalma, acredita que, no caso da mamona, há necessidade de mais pesquisa, "para não frustrarmos pequenos produtores pelo Brasil afora, como tantas vezes já vimos acontecer na história do país".
Há mais de duas décadas plantando palma no Pará, a Agropalma também possui o Selo Combustível Social, por integrar a agricultura familiar à cadeia do biodiesel. Na usina localizada no bairro de Tapanã, em Belém, o ano deve fechar com a fabricação de 8 milhões de litros de óleo para o B2 – parte usada nos veículos do próprio complexo agroindustrial, parte destinada a compradores nos leilões da ANP. No município de Moju, a empresa aposta num projeto que congrega 50 famílias em torno do plantio da palma, em lotes de 12 hectares. "Com esse cultivo, esperamos melhorar a renda no futuro", diz o lavrador Edmilson Ferreira Barros, presidente da associação dos produtores, que antes se limitavam às culturas de arroz e mandioca.
Com o biodiesel, feito com os ácidos graxos gerados como resíduo na fabricação do óleo de palma, usado nas indústrias de alimentos e cosméticos, a Agropalma fechou um ciclo de auto-sustentabilidade. O aproveitamento de 95% desse material, que antes era descartado, é resultado de parceria com a Escola de Química da UFRJ, responsável pela tecnologia de processamento. A agroindústria do combustível criou na empresa 400 postos de trabalho. Nas atividades que envolvem a fabricação do óleo de palma, margarina e biodiesel e o cultivo de 34 mil hectares de lavoura estão empregados 4 mil trabalhadores. Como a capacidade da usina de Tapanã é de 20 milhões de litros de biodiesel por ano, o caminho já está aberto para o aumento da produção.
De todas as matérias-primas ao alcance dos produtores para a fabricação do ouro verde, a soja é a que apresenta mais viabilidade no curto prazo. Plantada em larga escala no sudeste e no centro-oeste, essa oleaginosa tem alta produtividade no país e já dispõe de estrutura de distribuição e de esmagamento de grãos – tudo isso voltado, até agora, para o mercado internacional. De acordo com pesquisa do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq, o litro do biodiesel feito de soja varia de R$ 0,90 a R$ 1,42 – menos do que o de mamona e mais do que o de caroço de algodão e o de semente de girassol, que, no entanto, não têm disponibilidade tão farta.
A soja está na mira de diversos empreendimentos, como a usina da empresa BSBios, em Passo Fundo (RS), orçada em R$ 37,5 milhões, que vai fabricar 100 milhões de litros de biodiesel por ano. "A agricultura familiar no estado é bem estruturada. Vamos nos relacionar com as cooperativas e fazer parte dessa cadeia", diz o diretor comercial da BSBios, Erasmo Battistella. O agrônomo Augustinho Orsolin, da filial da Cooperativa Tritícola Mista Alto Jacuí, que congrega 4,5 mil dos 10 mil agricultores da microrregião de Passo Fundo, assinala que a expectativa da demanda do biodiesel é grande. "Estamos esperando que aconteça com a soja o que ocorreu com a cana-de-açúcar no Proálcool."
O custo associado à matéria-prima ainda faz o B2 sair mais caro do que o diesel de petróleo nos postos. "Os preços do biodiesel deverão se reduzir com o desenvolvimento da capacidade produtiva, o crescimento da oferta e o conseqüente aumento da concorrência", afirma Ricardo Dornelles, do Ministério das Minas e Energia. Observando que a matéria-prima representa entre 70% e 80% do custo do produto, ele completa: "Os preços do petróleo e de seus derivados apresentam tendência crescente, enquanto os do biodiesel deverão ser declinantes, em face da assim chamada curva de aprendizado".
Conhecimentos tecnológicos não vão faltar para fazer avançar o domínio sobre a produção do biodiesel, se depender de universidades e outras instituições acadêmicas em todos os estados. No Rio de Janeiro, a Coppe testa biodiesel feito com soja e com a reciclagem de óleo de fritura em quatro caminhões de lixo da prefeitura. Veículos movidos experimentalmente com o B100 (ver texto abaixo) rodam em várias outras cidades. Em Guamaré (RN), a Petrobras opera duas pequenas usinas que produzem biodiesel a partir da mamona e de óleos vegetais, numa espécie de prévia para a entrada da companhia na produção comercial, em dezembro de 2007, em unidades que estão sendo construídas em Candeias (BA), Quixadá (CE) e Montes Claros (MG).
Além das pesquisas sobre a fabricação em larga escala, são muitos os estudos no Brasil para a produção do ouro verde em pequenas unidades rurais. "Uma das vantagens do biodiesel é que ele pode ser fabricado para consumo próprio. Muitos produtores nos procuram interessados em fazer o seu combustível", conta Catarina Pezzo, do Pólo Nacional de Biocombustíveis. Sinal de que o interesse pelo biodiesel se espalha, cada vez mais, de norte a sul do país.
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Da lavoura ao tanque
Biodiesel é o nome genérico dos combustíveis biodegradáveis feitos com óleos ou gorduras de origem vegetal ou animal. Submetidas a reações químicas, essas substâncias são convertidas em um produto que, puro ou misturado ao diesel de petróleo, faz girar os motores de ciclo diesel sem necessidade de conversão. A mistura de 2% de biodiesel ao diesel mineral é chamada de B2 – e assim sucessivamente até o B100, com grau máximo de pureza.
Para a produção em larga escala, o biodiesel é obtido a partir de oleaginosas como amendoim, babaçu, dendê, girassol, mamona, pequi, pinhão-manso e soja, além da colza, muito usada na Europa. No processo mais comum de fabricação, os óleos vegetais reagem com o álcool comum (etanol) ou o metanol. Estimulada por um catalisador, essa reação é conhecida como transesterificação, porque, na linguagem dos químicos, o biodiesel é um éster – classe de substâncias que resultam da condensação de um ácido orgânico com um álcool. Como subproduto, o processo gera a glicerina, empregada na fabricação de diversos produtos, como sabonetes e cosméticos. Em média, a reação de 100 quilos de óleo vegetal ou animal com 10 quilos de álcool resulta em 100 quilos de biodiesel e 10 de glicerina.
As primeiras pesquisas com o biodiesel remontam ao século 19. Na década de 1890, o engenheiro mecânico alemão Rudolf Diesel utilizou óleo de amendoim produzido por transesterificação para fazer demonstrações com o motor que projetara. Como o petróleo era abundante e barato, o diesel mineral acabou se consolidando como fonte de energia para esses motores. O inventor, no entanto, anteviu que a produção de combustível vegetal seria um grande estímulo ao desenvolvimento da agricultura.
O Brasil chegou a deter, nos anos 1970, uma patente para a fabricação de biodiesel, registrada como resultado de pesquisas e testes da Universidade Federal do Ceará. O trabalho, coordenado pelo professor Expedito Parente, utilizava sementes de algodão. A patente expirou, já que a inovação não alcançou receptividade acadêmica nem empresarial, numa época em que o único sinônimo para combustível automotivo eram os derivados de petróleo. Foi necessário mais de três décadas para que o sonho do professor cearense virasse realidade.
Revista Problemas Brasileiros
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