domingo, 17 de janeiro de 2010

O SER DA AMAZÔNIA: IDENTIDADE E INVISIBILIDADE

Therezinha de Jesus Pinto Fraxe
Antônio Carlos Witkoski
Samia Feitosa Miguez

INTRODUÇÃO
Caboclos, ribeirinhos, caboclo-ribeirinhos, seringueiros. O homem amazônico é fruto da confluência de sujeitos sociais distintos — ameríndios da várzea e/ou terra firme, negros, nordestinos e europeus de diversas nacionalidades (portugueses, espanhóis, holandeses, franceses, etc) — que inauguram novas e singulares formas de organização social nos trópicos amazônicos. Diferenciada em suas matrizes geracionais, marcada por dinamismos e sincretismos singulares, a formação social amazônica foi fundamentada historicamente em tipos variados de escravismo e servidão. Assim, falar dos povos da Amazônia requer um (re)conhecimento da grande diversidade ambiental e social da região, noutras palavras, é preciso tomar como ponto de partida o desenvolvimento histórico da região. Trata-se de recorrer a uma antiga (porém atual) indagação: o que é ser da Amazônia ou, noutras palavras, quais são as consequências do processo de formação da (suposta) identidade dos seus habitantes no contexto amazônico?

A Amazônia é (re)conhecida internacionalmente por suas paisagens exuberantes e continentais, nas quais o homem configura como parte indissociável, quase imobilizado no âmago da natureza, como se fosse possível a existência no mundo contemporâneo de uma natureza intocada. Neste processo, a história do homem na Amazônia é marcada por silêncios e ausências que acentuam a sua relativa invisibilidade e velam os traços configurativos da sua identidade. Desse modo, adentrar o universo identitário dos povos amazônicos implica considerar um mundo de ambiguidades, trata-se de percorrer caminhos que se cruzam e se contrapõem, mascaram diferenciações sociais que têm entravado processos de emancipação social e política.

REFLEXOS INDESEJÁVEIS DA IDENTIDADE: O SER DA AMAZÔNIA
Em primeiro lugar, é preciso entender que os povos da Amazônia não vivem isolados no tempo e no espaço, pelo contrário, sempre estabeleceram — e continuam a estabelecer — relações de trocas materiais e simbólicas entre si, com as comunidades vizinhas e com os agentes mediadores da cultura, entre o mundo rural e o urbano e a vida em escala global. A Amazônia nasce e se desenvolve no âmago e nos dilemas da moldura da civilização euroantropocêntrica. A ideia de que esses povos sustentam um modo de vida estritamente tradicional não deve ser considerada, tal como se vivessem de modo estático e congelado. Suas manifestações culturais e sociais se expandem pelo mundo urbano e vice-versa, assimilando algumas práticas e rejeitando outras. Ainda que reproduzam manifestações ditas tradicionais em suas vidas cotidianas, não podemos afirmar que esses grupos sociais não estejam inseridos em um processo progressivo de diferenciação e transformação.

Para compreender esses grupos sociais é preciso desvendar seu cotidiano, é necessário considerar o contexto contraditório no qual estão inseridas suas manifestações e práticas culturais. Entender o modo de vida dos grupos sociais que habitam a Amazônia não significa apenas conhecer e descrever a riqueza dos seus recursos naturais, mas, sobretudo, compreender seus vastos territórios. É preciso perceber que, para além da paisagem natural, harmônica e romântica, há paisagens socialmente construídas repletas de contrastes e contradições.

Os numerosos grupos sociais que habitam a Amazônia desenvolvem um singular estilo de vida, transmitindo seus costumes e práticas culturais de geração em geração, sem, muitas vezes, haver um reconhecimento político de suas existências (1). Cada palavra, cada gesto, cada pedacinho dessa gente e de seus lugares, quase invisíveis, foram-se acumulando, revelando uma forma singular de vida que revela o irrevelável, que exprime o inexprimível.

Diante das transformações desse fluxo histórico marcado por continuidades/descontinuidades, foram-se definindo povoados, rotas, caminhos, habitus e identidades — enfim, territórios. Em face das misturas e presenças entremeadas nesse vasto território emergiram diferentes tipos sociais, trabalhadores que, diante das condições mais adversas, inventaram e reinventaram formas de sobrevivência, adaptaram-se passiva e ativamente às sutilezas complexas dos seus múltiplos ecossistemas. A alteração na composição étnica da região fez surgir não só novos tipos sociais, frutos da mistura social, cultural e racial, mas também um novo estilo de vida. Embora as tentativas de eliminar e/ou esconjurar qualquer traço da cultura e modo de vida indígena tenham sido inflexíveis e avassaladoras, o resultado não foi plenamente alcançado. O ser da Amazônia permanece imbuído da identidade dos nossos mais antigos ancestrais — os ameríndios da várzea e/ou terra firme.

A iniciativa de dar visibilidade aos povos amazônicos pressupõe considerá-los inseridos em um contexto de mudanças históricas, sujeitos às mesmas dinâmicas que permeiam o sistema socioeconômico e político-cultural da civilização contemporânea. Trata-se de criar mecanismos que facilitem e possibilitem a participação desses grupos sociais nos processos de decisão do poder, de modo crítico e consciente. Para isso, é preciso fazer da emancipação social um projeto de todos, construído por todos os cidadãos.

Se podemos compreender que o homem é produto das condições históricas, não devemos esquecer que ele é, ao mesmo tempo, produtor da história. Nesse sentido, o homem amazônico, como de resto todos os homens, deve ser compreendido como projeto no sentido satreano do termo. Nessa concepção, necessidade e liberdade são elementos distintos e complementares intrínsecos do projeto humano. Aqui, para superarmos as possibilidades de uma razão ainda portadora de resíduos coloniais, torna-se imperativo reconhecer e ativar a perspectiva de que o importante não é aquilo que se fez do homem, o importante é aquilo que o homem fará com o que fizeram dele (2).

INVISIBILIDADE E MODERNIDADE: O QUE É SER DA AMAZÔNIA?
Para Anthony Giddens (3), não podemos afirmar que estamos diante de um período pós-moderno plenamente instituído, mas perceber que essa época se configura um tempo em que as consequências da modernidade se tornaram mais radicais e universais. Embora existam ordens sociais pós-modernas, não podemos determinar ainda a existência de uma era pós-moderna, tendo em vista que o desenvolvimento social atual é marcado por um fluxo civilizatório assinalado por significativas descontinuidades históricas. Assim, devemos reconhecer que, no mundo social instituído, coexistem dimensões de um mundo social pré-moderno, moderno e traços configurativos emergentes da pós-modernidade.

É preciso entender as descontinuidades da modernidade como uma espécie de desenvolvimento desigual e nem sempre combinado da própria modernidade, ou melhor, como as consequências da própria modernidade. Contudo, é necessário ressaltar que descontinuidades estão presentes nas várias fases do desenvolvimento histórico, tecendo pontos de conexão entre os aspectos da vida moderna e os da vida tradicional. Os modos de vida produzidos e reproduzidos pela modernidade tendem a nos afastar dos tipos tradicionais de ordem social, em razão de que as mudanças engendradas nessas sociedades são mais profundas que em qualquer outro período precedente.

A reflexão teórica apresentada por Anthony Giddens (3) nos é muito útil para entender as consequências da modernidade na construção e reconstrução de uma suposta identidade regional na Amazônia. Partimos do pressuposto de que o homem amazônico não está cristalizado no tempo, apesar de buscar manter suas práticas tradicionais, recebe influências diversas da sociedade urbano-industrial. Portanto, é preciso perceber que a descontinuidade tal como proposta por Giddens também se faz presente na realidade cotidiana dos povos da Amazônia.

Para quem se permite mergulhar no universo amazônico, deve compreender que essa realidade não é homogênea e nem uniforme, pelo contrário, mascara relações sociais diferenciadas e rejeições. Aqui se torna necessário retomar o processo histórico de construção e desconstrução do sujeito social de múltiplas identidades. Tal como afirma Bauman (4), as identidades são flutuantes, se algumas delas lhes são lançadas desde quando você nasce, pelas pessoas a sua volta, outras são escolhidas e determinadas por você mesmo, em outras circunstâncias sociais. A identidade não é sólida, mas líquida, depende dos caminhos percorridos, das relações de pertencimento, sobretudo, para aqueles marginalizados da globalização, envolvidos nas consequências desastrosas de um projeto frustrado de colonização. Nesse oceano de acontecimentos, a identidade deve ser percebida como uma tentativa constante em refazer e reinventar sua própria história.

Desse modo, não podemos identificar um ou outro período ou contrastá-los, a ideia é desconstruir, perceber que a história, mesmo quando compreendida como totalidade, sempre se apresenta como algo inacabado e indeterminado – a história deve ser compreendida como unidade em sua organização e transformação. Assim, é preciso perceber que essas descontinuidades envolvem e estão envolvidas nos ritmos das mudanças – a modernidade é por natureza multidimensional no âmbito das instituições.



Se, em outros momentos, as instituições sociais eram fundamentais para a garantia de tradições e costumes, reconhecemos neste momento que as instituições também estão inseridas nesse processo de descontinuidade, de transformação das suas práticas e manifestações. Sem dúvida, a igreja e a família, por exemplo, assumiram um papel fundamental na formação das comunidades na Amazônia, garantindo a sustentação das relações de troca material e/ou simbólica do homem interiorano na Amazônia. Embora, essas instituições ainda cumpram o papel de cultivar relações comunais do homem amazônico, compreendemos que essas relações estão se transformando substancialmente, uma vez que estão sendo contagiados por novos habitus e interesses da sociedade envolvente.

Além disso, como afirma Giddens, o dinamismo da modernidade desloca o espaço através do tempo. Na modernidade o espaço é "arrancado" do tempo, as pessoas podem estar localmente distantes uma da outra, mas não deixam de receber influências entre si. O lugar adquire uma condição fantasmagórica, ele pode não estar visível, mas permanece moldando as vidas das pessoas. Esse caráter desencaixado da modernidade garante a expansão, cada vez maior, das possibilidades de mudanças, ligando o global ao local e o local ao global na vida cotidiana.

Na Amazônia, como de resto na Terra, as condições naturais são imperativas, mas não sem as mediações da cultura objetivada em práticas sociais e modos de vida que as superam. Aqui, não podemos deixar de mencionar que as possibilidades de mudanças estão em todas as partes, o acesso a informações e tecnologias garante uma era de transições, de separações e de fusões. Essas diferenciações ocorrem de modo gradual e interno, algumas são assimiladas e outras são rejeitadas. Ambas as possibilidades fazem parte das escolhas e dos interesses que, para quem se atreve em entender, logo abandona a ideia romântica do que é ser da Amazônia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em meio a inúmeras tentativas de progresso econômico à custa dos ricos potenciais existentes na região amazônica, paira a incerteza do ser da Amazônia. Entre tantos projetos implantados em diferentes localidades da região, sempre esteve a presença do homem amazônico, apoiando projetos políticos enganosos e fantasiosos, motivados pela eterna cobiça de acumular fortunas e riquezas inatingíveis. É de posse dos pequenos e indispensáveis fragmentos da política que o homem amazônico construiu e constrói suas concepções e perspectivas de vida; a cada novo momento, desse cenário complexo, renasce a esperança de melhores condições de habitação, escolaridade, saúde, renda etc.

É preciso garantir o devido respeito à natureza vulnerável e ao modo dos seres da Amazônia, das suas potencialidades idiossincráticas. As ações gerenciadoras dos governos devem ter convergência para o homem —, figura central desse processo — ajudando-o a desenvolver-se no campo de suas possibilidades. O homem da Amazônia não pode mais ficar abandonado à beira dos caminhos, à beira das estradas, às margens dos rios, à espera das novas rotas dos projetos de desenvolvimento que não os consideram como sujeitos portadores de história. A responsabilidade é de todos. Segundo Darcy Ribeiro (5), é preciso enfrentar lucidamente esses problemas, concatenar as energias e usá-las politicamente, uma vez que o povo brasileiro já pagou um alto preço em suas lutas históricas e sangrentas.

Por fim, esbarramos novamente no dilema: o que é ser da Amazônia, quais são as consequências e resultados do processo histórico de colonização e desenvolvimento na identidade da população local? A eterna tentativa de integrar a Amazônia ao restante do Brasil revela não só uma perspectiva geopoliticamente equivocada, mas, sobretudo, um afastamento da diversidade étnica e cultural que precisa ser entendida e admitida na sua singularidade. Uma intenção em não se identificar o homem amazônico com o inferior e/ou primitivo.

Apesar disso, podemos afirmar que, durante o processo de colonização das sociedades ameríndias e do surgimento dos novos grupos sociais, nem mesmo a natureza foi um fator que se manteve constante. Embora apresentem grandes diferenciações entre si, há um aspecto que se manteve comum entre os grupos sociais da Amazônia — a sua relativa invisibilidade social e política. Atualmente, essas sociedades representam os antagonismos resultantes de um projeto de colonização e formação de uma identidade nacional. Essa colonização se deu de modo diferenciado, em vários momentos da história, por vários grupos sociais.

No entanto, não basta garantir condições de visibilidade para essas sociedades, é preciso reconhecer que elas possuem uma diversidade de práticas e manifestações culturais que não podem ser homogeneizadoras. Tampouco utilizadas em discursos ambientalistas e ecológicos para retratar uma realidade mascarada em uma identidade regional que não leva em consideração as ambiguidades e antagonismos sociais. Pois, independente da denominação utilizada para retratar o sujeito social da Amazônia, devemos buscar, em primeiro lugar, o reconhecimento da importância de participação dessas sociedades no processo de formação política e identitária local.

Entendemos assim que ser da Amazônia não implica apenas uma localização no espaço, uma localização geográfica. Ser da Amazônia implica em um comprometimento político e social, que não se reduz à descrição e análise de modos e práticas culturais tradicionais e específicas da região. Esse comprometimento está para além do local de nascimento ou pertencimento, faz parte de um interesse comum em (re)inventar os percursos de uma história marcada pela desigualdade e inferiorização, imposta por um projeto civilizatório que tem como marca a domesticação das múltiplas alteridades amazônicas.

Therezinha de Jesus Pinto Fraxe é professora doutora do Departamento de Ciências Fundamentais e Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Trabalha nos programas de pós-graduação em ciências do ambiente e no de sociologia, além de atuar como coordenadora e pesquisadora do Núcleo de Socioeconomia da Ufam.
Antônio Carlos Witkoski é professor doutor do Departamento de Ciências Sociais da Ufam. Trabalha no programa de pós-graduação em sociologia e no de sociedade e cultura na Amazônia.
Samia Feitosa Miguez é graduada em ciências sociais e mestranda em sociologia pela Ufam. É pesquisadora do Núcleo de Socioeconomia da mesma universidade.


Revista Ciência e Cultura - SBPC

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