Um Islã tolerante confronta o extremismo no país de maior população muçulmana no mundo.
Foto de James Nachtwey
A tradição exige que as meninas andem cobertas em Pesantren Sunanul Husna, escola fundamentalista em Jacarta. A tendência a um islamismo mais rigoroso não se traduz em apoio a militantes.
Ele mesmo abre a porta. Sem guardas armados, sem sumiço. Abu Bakar Baasyir vive numa casa térrea simples no terreno do internato que ele ajudou a fundar em Ngruki, um pacato vilarejo no interior montanhoso de Java, a principal ilha da Indonésia. Magro como um caniço, de cavanhaque branco e atilados olhos escuros magnificados por óculos de aros dourados, Baasyir, de 71 anos, é o presumido líder espiri-tual do grupo ativista islâmico Jemaah Islamiyah. O grupo foi associado a no mínimo seis atentados a bomba na Indonésia na última década, entre eles as devastadoras explosões de discotecas em Bali em 2002 e, talvez, o ataque de homens-bomba a hotéis de luxo em Jacarta em julho passado.
Baasyir nega envolvimento na violência e evita ligações comprováveis com quaisquer ataques. Já esteve preso - duas breves temporadas de menos de quatro anos no total - por acusações menos graves, sem relação direta com as explosões. Mas o internato islâmico que fundou foi o eixo de uma rede jihadista decidida a criar um Estado islâmico no Sudeste Asiático, e vários diplomados de Ngruki foram condenados por participar de grandes atentados. Sem dúvida, os ensinamentos de Baasyir têm inspirado a centenas, talvez milhares, de mortes e a ataques contra grupos muçulmanos "dissidentes" que não seguem a corrente islâmica predominante. Ainda assim, ele vem em pessoa abrir a porta. "Entre", diz ele em bahasa indonesia, a língua oficial do país. "Tome um suco."
Baasyir usa barrete, uma camisa comprida e larga e um alentado relógio de pulso. Na sala de estar não há cadeiras nem ornamentos, só paredes brancas, um vaso de planta e uma mesa baixa com uma vasilha de plástico com biscoitos de gergelim. Senta-se no chão, descalço, sobre um tapete verde. Seu filho adulto, Abdul Rahim, serve suco de melão em copos transparentes.
"Não existe violência no Islã", diz Baasyr com voz grave e rouca e meneios de maestro na mão esquerda. "Mas, diante de obstáculos impostos pelos inimigos, temos o direito de responder com violência. É o que chamamos de jihad. Não há maior nobreza na vida do que morrer como mártir pela jihad." Ele enaltece o atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos e as explosões em Bali. Não foram atos terroristas, garante. Foram "reações ao que fizeram os inimigos do Islã".
A Indonésia ocupa um canto remoto do mapa-múndi com suas miríades de ilhas ao norte da Austrália, mas a violência ali perpetrada pode ter repercussões globais. É o mais populoso dos países islâmicos, com 207 milhões de muçulmanos - 36 milhões a mais que a segunda maior nação do Islã, o Paquistão, e dois terços a mais que todos os países do Oriente Médio juntos. É uma nação devotíssima. Também é uma florescente democracia, a terceira maior do mundo depois de Índia e Estados Unidos.
Mas é uma democracia jovem, pouco mais de uma década após a deposição do despótico Suharto. O fim do poder ditatorial deu aos indonésios nova liberdade de expressão, mas também afrouxou as rédeas de radicais, como Baasyr, que havia apurado suas ideias extremistas durante um longo exílio na Malásia, para onde fugira depois de ser preso por fazer oposição a Suharto. Um ano após as explosões de Bali em 2002, uma outra atingiu o hotel J.W. Marriott em Jacarta, seguida em 2004 por um ataque à embaixada australiana e por um triplo atentado suicida em 2005, em Bali. Há apenas alguns meses, após um longo hiato que levou muitos especialistas a supor que a ameaça do terrorismo se reduzira, foram bombardeados o hotel Ritz-Carlton e mais uma vez o J.W. Marriott. Apesar de serem eventos esparsos em um país vasto, vale um provérbio local que se traduz mais ou menos assim: "Basta uma gota de veneno para estragar todo o leite".
Por vezes, as 17,5 mil ilhas da Indonésia lembram uma porção de bolinhas de gude numa mesa bamba: à menor inclinação saem todas rolando na mesma direção. Em 2005, a Indonésia parecia pender para o radicalismo islâmico, fomentando no Ocidente o temor de que o país se transformasse em reduto de terroristas. Por várias décadas, a sociedade indonésia vinha se tornando mais declaradamente islâmica. Fiéis passaram a lotar as mesquitas, e o modo de vestir muçulmano entrou em voga. Nos anos 1990, um número crescente de governos distritais começou a impor regulamentações inspiradas na sharia, a lei islâmica, e o apoio a partidos políticos islâmicos cresceu. Cada vez mais, grupos ativistas islâmicos adeptos da luta violenta para remoldar a Indonésia como uma república islâmica pareciam abafar as vozes da maioria dos muçulmanos indonésios para quem sua fé pode coexistir com a modernidade e os valores democráticos.
Nestes últimos anos, porém, embora os indonésios continuem a abraçar a fé islâmica, evidenciou-se que a maioria não quer nenhuma religião imposta pela esfera política. "Muita gente identifica devoção muçulmana com radicalismo", explica Sidney Jones, especialista em Indonésia da ONG International Crisis Group. "A Indonésia está cheia de exemplos que refutam essa ideia." Diante de medidas de políticos islâmicos para regulamentar o vestuário feminino e proibir práticas como a ioga, vozes moderadas começaram a se manifestar. Nas eleições parlamentares em abril passado, os candidatos apoiados por organizações muçulmanas receberam menos de 23% dos votos, em comparação com 38% em 2004.
Apesar dos reveses dos ataques a bomba recentes, a Indonésia vem sendo vista como uma história de sucesso na repressão do extremismo violento. Autoridades prenderam no mínimo 200 membros da Jemaah Islamiyah nos últimos anos, embora alguns fugitivos permaneçam à solta. Muitos radicais deixaram de apoiar atentados terroristas para defender a aplicação da lei islâmica. Até Abu Bakar Baasyir, desde que saiu da prisão em 2006, distanciou-se das facções mais militantes da Jemaah Islamiyah e começou a preconizar a luta pela sharia como o caminho para os islamitas atingirem seu objetivo de transformar o país democrático numa república islâmica.
Ele acredita que qualquer corpo legislativo criado pelo homem - uma assembleia legislativa, uma corte de Justiça - é uma afronta à soberania de Deus. "Alá enviou um manual para o modo de tratar os seres humanos", diz ele. "O manual é o Corão." Não há, segundo ele, necessidade de nenhum outro código legal. "Islamismo e democracia não podem coexistir", conclui. Agora que Suharto perdeu o poder e o governo centralizado está enfraquecido, cada distrito pode decidir sobre a adoção de regulamentações baseadas na sharia. Onde ela foi imposta, diz Baasyr, tudo melhorou e muito. "Vá ver e comprove", sugere.
A província de Aceh, na proa ocidental do arquipélago indonésio, hoje talvez seja mais conhecida por ter sido atingida em cheio pelo tsunami de dezembro de 2004, que matou mais de 160 mil indonésios. Mas por séculos a região de Aceh foi célebre como uma das áreas muçulmanas mais devotas de toda Ásia. Diz-se de Aceh que é a "varanda de Meca", e muitos de seus habitantes parecem viver sentados de costas para o resto da Indonésia, seguindo um islamismo mais próximo àquele do outro lado do oceano, na península Arábica. Em Aceh, mais que em qualquer outra parte das ilhas indonésias, observa-se um rigoroso código de conduta islâmico. Em 1999, o governo nacional preparou o caminho para que Aceh se tornasse a primeira província do país a instituir a sharia como lei criminal.
Devi Faradila, de 35 anos, é uma elegante mãe de dois filhos e parlamentar da província de Aceh. Lidera a unidade feminina da Patrulha da Sharia em Banda Aceh, uma força municipal incumbida de fiscalizar a obediência às regras locais na capital da província. Numa sexta-feira típica - dia em que, pela lei de Aceh, todos os homens muçulmanos devem ir à mesquita -, Devi prepara sua unidade para o cumprimento do dever mandando parar um jogo de pingue-pongue no posto da patrulha e chamando a atenção de duas funcionárias que estão mandando mensagens de texto pelo celular.
Devi e 13 patrulheiras completam com um boné preto sua farda - sapato preto, calça preta, blusa preta e lenço verde-limão na cabeça - e se espremem numa picape equipada com alto-falantes. Devi, no banco do motorista, calça luvas de couro, retoca o batom e põe óculos de sol espelhados. O veículo percorre a cidade lentamente, com Devi transmitindo uma constante torrente de avisos pelos alto-falantes: "Homens, apressem-se! As orações de sexta-feira começarão logo". "Parem todas as atividades. É hora da prece." Os homens nas ruas ou lojas viram a cabeça e fitam o carro. Alguns olham o relógio. "É sexta-feira. Orar é obrigatório para os homens."
Aceh é a única província indonésia com uma unidade da Patrulha da Sharia. Oitocentos patrulheiros, a maioria homem, policiam a região dia e noite. Mas ao meio-dia de sexta-feira, o sabá muçulmano, a imposição da sharia é deixada para as mulheres, que podem orar em casa. Devi circunda a grande mesquita de cinco domos no centro da cidade e segue para a beira-mar - um cenário deslumbrante, de montanhas verdejantes erguendo-se do oceano, mas ao mesmo tempo pungente, com vastos trechos transformados em pântano pelo tsunami. Uma patrulheira na boleia avista uma adolescente na calçada com a cabeça descoberta - uma temeridade nessa cidade em que quase toda mulher muçulmana anda coberta. A picape freia de pronto. "Véu! Véu! Véu!", gritam as patrulheiras, severas. A garota parece apavorada. Indica com gestos que se cobrirá, e a picape prossegue seu caminho.
Aproxima-se o momento da oração, e as recomendações de Devi agora são menos polidas. "Feche a loja!" "Procure a mesquita mais próxima!" O veículo estaciona na frente de uma construção de dois andares que abriga um mercado de peixe e um ateliê de artista. O grupo salta da picape - um misto de As Panteras e milícia talibã. Dois homens são interpelados. São peixeiros, alegam, e estão fedendo demais para entrar numa mesquita lotada. As mulheres dão-lhes uma intimação mesmo assim.
Um livreto amplamente distribuído, o Resumo da Sharia Islâmica em Aceh, cuja capa mostra um homem sendo açoitado, delineia as regras. Ser pego jogando: de seis a 12 chibatadas. Misturar-se impropriamente ao sexo oposto: de três a nove chibatadas. Ingerir álcool: 40 chibatadas. Faltar às orações por três sextas-feiras seguidas: três chibatadas. O chicote, segundo o livreto, deve ser feito de ratã e ter cerca de 6 a 8 milímetros de espessura. No posto da Patrulha da Sharia em Banda Aceh, dois chicotes do comprimento de uma bengala e flexíveis como um mata-moscas estão à mostra. Um álbum de fotos exibe inúmeras imagens de açoitamentos: mais de 100 desde 2005. O homem que os aplica usa túnica marrom-avermelhada, luvas brancas e um capuz que lhe esconde a cabeça. As multidões são enormes. Pesquisas de opinião indicam que, embora a maioria dos indonésios afirme querer a sharia como alicerce da vida pública, eles se incomodam com a imposição desses castigos físicos. Fora de Aceh, a adoção de regulamentações de bases religiosas tem sido esparsa. Alguns distritos proíbem o jogo ou a bebida ou exigem o uso de véu pelas mulheres. Mas, em geral, tais regras são impostas por políticos laicos, que as veem como um modo de agradar a eleitores devotos ou desviar a atenção da corrupção. No futuro, dizem especialistas, apelar para o Islã poderá não ter a mesma força populista dos anos anteriores.
Exceto, talvez, em Aceh, que parece acelerar sua islamização e até delibera sobre a amputação cirúrgica de mãos como pena corânica por roubo. Devi acha uma boa ideia. A lei sharia, garante ela, tornou Banda Aceh mais reverente e bem mais segura. Ela torce por uma expansão dessas leis. "Decepar mãos nas circunstâncias certas serviria de lição a outros", diz ela. "A criminalidade diminuiria muito." O apedrejamento por adultério também seria bem-vindo. "Quem aceita o Islã tem de aceitar todas as leis", arremata ela.
O islã fundamentalista é uma importação mais ou menos recente na Indonésia, onde por muito tempo predominou uma forma de religião menos rígida mas não menos fervorosa. "Islã Sorridente", é como muitos a chamam. O islamismo chegou à Indonésia pelo mar. O solo vulcânico é ideal ao cultivo de especiarias; e, no século 12, a maioria dos mercadores que levavam a pimenta, a noz-moscada e o cravo-da-índia indonésios ao Ocidente era muçulmana do Oriente Médio. Para os produtores indonésios, era vantajoso converter-se ao islamismo: os parceiros de negócios davam preferência aos correligionários.
A difusão do islamismo foi gradual e pacífica. O que levou um frenético século com muito derramamento de sangue no Oriente Médio demorou tranquilos 500 anos na Indonésia. Espalhadas por quase 5 mil quilômetros de oceano, as ilhas abrigavam centenas de grupos étnicos e práticas religiosas. O islamismo ajudou a integrar povos antes separados em uma única cultura regional. Na época em que a Companhia Holandesa das Índias Orientais assumiu o controle do comércio de especiarias no século 17, a religião disseminara-se por quase todas as sociedades costeiras. "Aqui, o Islã penetrou com tanto êxito porque se conciliou com a cultura e as religiões existentes", diz Syafii Anwar, diretor executivo do Centro Internacional para o Islã e o Pluralismo em Jacarta.
Mas, quando o realinhamento global ao fim da Segunda Guerra Mundial abriu caminho para que a Indonésia se libertasse da Holanda, o primeiro presidente do país, Sukarno, preferiu não instituir nenhuma religião oficial. Achava que criar uma república islâmica desagradaria à minoria não muçulmana. Ele próprio era filho de pai muçulmano e tinha antepassados hinduístas balineses do lado materno. O segundo presidente, Suharto, assumiu o poder, em 1966, após uma explosiva violência anticomunista que matou 500 mil pessoas. Por algum tempo, ele foi capaz de reprimir as hostilidades e promover o crescimento econômico. Mas seu regime era repressivo e militarizado. Sua renúncia, em 1998, foi desencadeada por um movimento de alguns milhões de ativistas pró-democracia liderado por estudantes, a maioria muçulmana - evento que historiadores consideram fundamental no Islã contemporâneo.
Mas o fim do regime de Suharto também aprofundou na comunidade muçulmana uma cisão entre, de um lado, os que apoiavam a tradicional fusão indonésia do islamismo com crenças locais e, de outro, os que desejavam "purificar o islamismo" despojando-o de influências regionais. O embate prossegue até hoje, insuflado em parte por ideias e práticas derivadas do rígido wahabismo da Arábia Saudita, que fundou universidades e internatos islâmicos por toda Indonésia.
Mas, na maior parte do país, o islamismo continua fundido a numerosas crenças e tradições. Em muitos locais, o chamado à oração muçulmano é precedido de batidas de tambor, antes associadas a cerimônias nativas. Um grupo islâmico da ilha de Lombok toma um tradicional vinho feito de uma palmeira em suas celebrações, embora o Corão condene a ingestão de álcool.
A expressão mais representativa do Islã Sorridente talvez esteja em Jacarta, a caótica e agitada capital onde estão sendo construídos shoppings e cinemas faraônicos com nomes como Hypermart e Blitzmegaplex e onde arranha-céus de luxo convivem com favelas lotadas. Ali, numa ruazinha de cascalho, Ki Demit instalou seu empoeirado e atravancado escritório. Ki é um título honorífico dado a místicos indonésios. Ki Demit tem 28 anos e seu nome significa "Pequeno Fantasma". Ele é filho de outro ki - o Grande Fantasma - e neto e bisneto de místicos. "Venho da linhagem mais mágica da Indonésia", diz.
Na maior parte do Oriente Médio, uma afirmação dessas seria uma heresia: qualquer paranormalidade não atribuída a Alá é proibida no Islã. Mas, na sala de espera de Ki Demit, lê-se o menu de seus feitiços. Dentre as opções: santet (encantamento), pelet (conquistar pessoa amada), kekebalan (invulnerabilidade contra ferimentos) e kejantanan (ótimo desempenho sexual). Uma das paredes está coberta com fotos de celebridades - uma atriz de novela, um cantor, um comediante - que solicitaram os préstimos de Ki Demit ou de seu pai.
Os clientes de Ki Demit sentam-se diante dele no chão, de pernas cruzadas. Um ventilador geme no teto da sala abarrotada de velas, frascos de perfume, contas de oração e facas antigas. "Posso ler a mente das pessoas e ver o futuro", diz. "Mas não quero competir com Deus. Sou apenas o mediador Dele." Na conclusão de muitas de suas sessões ele dá ao cliente um punhado de flores desidratadas que diz estarem imbuídas de poderes sobrenaturais. Assim que a pessoa toma um banho de imersão com aquelas flores, ele instrui, a magia começa a fazer efeito. "Sou um bom muçulmano, ciente das leis", garante Ki Demit. "É claro que oro cinco vezes ao dia. É claro que observo o Ramadã. Mas muito antes de o Islã chegar à Indonésia meus ancestrais já praticavam esses rituais. Meu pai preparou-me para ser um ki, e quando eu tiver um filho o prepararei também. "Sigo o islamismo com seriedade, mas não abro mão dos meus poderes. Não se pode brincar com esse poder."
Do outro lado da cidade situa-se o estúdio de televisão onde a cantora e apresentadora Dorce Gamalama gravava seu programa diário. Ela é a Oprah Winfrey da Indonésia, e é mais conhecida por seu apelido, Bunda, que significa "mãe". Gravava o programa com uma plateia de estúdio composta sobretudo de mulheres de meia-idade de lenço na cabeça. As muçulmanas conservadoras parecem ser suas maiores fãs, pois, debaixo daquela esfuziante energia e dos sorrisos fulgentes, Dorce é também uma muçulmana fervorosa. Construiu sua própria mesquita perto de casa, em Jacarta.
E tem mais: Dorce nasceu homem. Ela é transexual. Viveu com seu "problema", como ela o chama, a vida toda, até que, na casa dos 20 anos de idade, finalmente se submeteu a uma cirurgia de mudança de sexo. Foi casada duas vezes, com homens. Possui 300 pares de sapato e mil perucas. Ela canta, dança e conta piadas um tanto apimentadas. E de vez em quando se permite cometer alguma gafe hilária.
Seu talk-show, com participação de artistas de cinema, músicos e atletas, ditava os assuntos do momento na Indonésia. De certa forma, sua condição peculiar lhe permitia expressar abertamente o que em geral talvez ficasse sem ser dito. Ela tagarelava sobre problemas conjugais, falava com franqueza sobre sexo. ("Mulheres, se vocês querem fazer amor, não esperem seu homem convidar. Tomem a iniciativa, peçam.")
No camarim depois do programa, ela tirava os sapatos e recebia uma avalanche de admiradores. Um rapaz de 19 anos lhe disse: "Gosto de seu programa porque você é uma gata". Uma senhora de 90 anos pediu: "Só quero lhe dar um beijo". Ela fala quase sem parar, relembra seus velhos tempos no mundo artístico, quando seu trabalho era entreter os passageiros em voos fretados para Meca. Só mesmo na Indonésia um trovador transexual poderia ser considerado uma diversão apropriada para peregrinos na hajj.
"Sou uma pessoa normal", diz ela. "Eu me comporto como mulher. E até pudica eu sou! Comigo, nada de sexo antes do casamento." Pergunto se sua fé vem antes da carreira, e ela fica indignada. "Minha vida é para Deus", responde.
É isso que todos dizem: o ativista, o místico, a patrulheira da sharia, a estrela de TV. Unidos em sua devoção a Deus, divididos na opinião de como se deve expressar tal devoção. A versão do islamismo que conquistar a mente da geração seguinte - o tolerante Islã Sorridente ou a vertente austera e por vezes violenta defendida pelos extremistas - poderá determinar o caminho trilhado pela Indonésia e, talvez, servir de modelo ao futuro do islamismo no mundo. Um bom lugar para avaliar os rumos são os internatos islâmicos do país, em especial o situado no fim de uma alameda bucólica em Ngruki, onde Abu Bakar Baasyir leciona.
O colégio é até bonito, com suas construções de tijolo pintadas de branco e telhas vermelhas e azuis na cobertura. Do lado de fora, no portão, um homem vende suco de gengibre num carrinho puxado por bicicleta. Na frente da mesquita da escola, bem no centro da propriedade, uma multicolorida profusão de sandálias de dedo aguarda em escaninhos de madeira. Gritos ecoam pela quadra de basquete. Cerca de 1,5 mil alunos, com ligeira predominância numérica de meninas, frequentam esse colégio que fornece educação equivalente ao segundo ciclo do ensino fundamental e ao ensino médio. Os alunos vivem em alojamentos, onde 20 ou 30 dormem em colchões no chão em cada quarto.
Noor Huda Ismail, de 36 anos, é especialista em assuntos de segurança no Sudeste Asiático e ex-aluno de Ngruki. Contratei-o para auxiliar na elaboração de entrevistas para esta reportagem. Depois da primeira explosão em Bali, o governo indonésio enviou uma equipe de investigadores para Ngruki. Os resultados foram inconclusivos. "Não havia nada de terrorismo no currículo", diz ele. "A face pública de Ngruki era como a de qualquer outra escola. Não havia nada clandestino - a menos que você fosse 'escolhido'."
Pois, quando estudava em Ngruki, Ismail foi escolhido. "Minha doutrinação ocorreu fora da sala de aula", conta ele. "Começou com pequenas reuniões, encontros de professores e alunos durante a prática de esportes e caminhadas fora da escola. Disseram-me que nossos inimigos são fortes." Ele era um candidato ideal, pensa, porque sabia falar inglês e árabe.
"Pouco antes de me formar, fui convidado a ir à casa de um dos professores", relata ele. "Sentei-me em um tapete no chão. Havia pouca luz. Éramos três estudantes presentes. A mensagem foi que o Islã é nossa única salvação possível, e que, se eu quisesse ir para o céu, precisava entrar para o esquadrão. Eu tinha 15 anos." Um dos colegas de quarto de Ismail era Hutumo Pamungkas, que hoje cumpre pena de prisão perpétua por ter participado nas explosões em Bali. "É espantoso que mais dos nossos não tenham aderido ao extremismo", diz Ismail.
Robert W. Hefner, antropólogo que estudou política muçulmana na Indonésia, acredita que o extremismo muçulmano perdeu boa parte do ímpeto, embora talvez seja impossível impedir todos os ataques. Crédito seja dado à polícia indonésia, que não só prendeu centenas de islamitas violentos mas também conseguiu "desradicalizar" alguns ativistas detidos em troca de permissão para visitas conjugais e bolsas de estudo para os filhos. Mas essa mudança também resulta de um esforço de décadas por parte de educadores islâmicos para implementar reformas em suas escolas. Desde 2004, os estudantes que ingressam no sistema de ensino islâmico do Estado são obrigados a ter aulas de educação cívica, direitos humanos e democracia. Até Ngruki aceita as diretrizes do governo.
No fundo, talvez o que aconteça é que a Indonésia é grande e diversificada demais para aderir a qualquer definição estreita do islamismo. Até algo tão mundano quanto uma imitação indonésia do programa American Idol pode ser uma plataforma para a variedade islâmica. Durante temporada recente, as duas mulheres finalistas eram muçulmanas. Uma usava o véu; a outra, não. Ninguém pareceu se importar. Afinal, o lema nacional da Indonésia é "Bhinneka tunggal ika" - Unidade na diversidade.
"O islamismo na Indonésia é uma imensa tenda sob a qual todas as vozes podem falar umas com as outras", diz Robin Bush, da ONG Asia Foundation. Grupos marginais podem receber atenção desproporcional da mídia e deixar as pessoas com medo de denunciá-los, ressalta ela. Podem até mandar homens-bomba atacar hotéis. Mas seu alcance não chegou às urnas eleitorais.
Isso pode mudar. Contínua corrupção no governo, outro líder como Suharto, um imã que consiga congregar os insatisfeitos, qualquer dessas situações pode fazer a balança pender para o outro lado na Indonésia. "Se nosso governo secular não mostrar competência, a Jemaah Islamiyah terá mais recrutas a escolher”, diz Ismail. Creio que oscilaremos sempre", acrescenta ele. "Quando as influências ocidentais forem fortes demais, os elementos islâmicos erguerão a voz. Quando o islamismo falar muito alto, vozes mais seculares se farão ouvir. Será sempre assim. Sobe e desce, sobe e desce. Bem-vindo à Indonésia."
National Geographic Brasil
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