quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A cidade no labirinto: descortinando metáforas da pós-modernidade


Dra. Valéria Cristina Pereira da Silva

Professora adjunta da Fundação Universidade Federal do Tocantins Porto Nacional/TO - Brasil, vpcsilva@hotmail.com


RESUMO

Tecida de significados fragmentados, Palmas, capital do Estado do Tocantins, constitui-se num território da utopia e abriga em seu tecido projeções de uma visão de mundo refratária à modernidade, possível de ser compreendida nos limiares, ao longo de suas quadras, no contorno de suas construções, nas mentes vivas que a habitam, no enfebrecimento das possibilidades intelectuais a penetrar profundamente na sua linguagem imaginativa. Venho discutir, neste trabalho, a respeito da importância do imaginário social, enquanto potência criadora, que permite pensar o futuro da cidade, de um lado, e de outro, o papel da temporalidade que reconstitu a cidade na sua integridade. Passado e Futuro colocam-se, deste modo, como elementos para que analisemos a cidade no presente.

Palavras-chave: Paisagem. Imaginário social. Cidade.


ABSTRACT

Abounding of fragmented meanings, the capital of Tocantins (state in Brazil), Palmas is located in the midst of a Utopian territory and gives shelter to projections of a bold way to view the world, capable of being understood through its borders, the length of its blocks, the way its buildings are outlined, in the vivid mind that there inhabit, and the fever like intellectual possibilities to deeply penetrate its creative language. I'm to discuss in the present work about the social imaginary context as a whole, as a generating power which allows us to think of the City´s future, on the other hand time´s role which through memory reassembles the City through its integrity so that both Past and Future are seen as elements to take into account so that we may analyze the city in the present.

Key-words: Landscape. Social Imaginary. Town.

1. Introdução

O estudo do imaginário da cidade no contexto urbano pós-moderno é o fio condutor para compreendermos a constituição de uma das últimas capitais projetadas do século XX. Palmas, capital do Estado do Tocantins, teve o assentamento da sua pedra fundamental em 20 de maio de 1989 e hoje com apenas 19 anos de fundação conta com, aproximadamente, 160 mil habitantes. A cidade manifesta uma significativa expressão material e uma constante busca por simbolização, embora seja marcada por uma "ausência de tempo" de história-memória. A procura de identidade e sentido se processa artificiosa na criação de uma imagem e de uma temporalidade de Palmas. Tal processo surge como advento cultural e assume importância no contexto do Estado e do próprio país, uma vez que as condições de sua existência estão ligadas a uma redefinição territorial recente, com a transformação do Norte Goiano em Estado do Tocantins. Em Palmas, a imagem da cidade cria e trabalha o tempo. O moderno funde-se ao pós-moderno e a batalha pelos símbolos na criação do sentido da capital é uma luta constante do poder que engendra e constitui a nova paisagem.

Devido à velocidade vertiginosa com que surgiu, suprimindo a diacronia, Palmas consiste numa criação urbana que estabelece novas conexões entre sociedade, imagem, poder e identidade. A compactação temporal da cidade projetada, aqui compreendida como ausência de tempo, assume caráter conceitual e metafórico resultando num trajeto para compreender a cidade e a temporalidade que a constitui em movimento "avesso" - a ausência - e ainda, como esse espaço organizado no tempo ausente apresenta traços e encaixes na realidade do pós-modernismo, estes, são os problemas que nos propomos apresentar neste trabalho.

A cidade multiplica-se na fala dos construtores, dos habitantes e outros agentes, coexistem, portanto, em seu tecido múltiplas referências, pois, são múltiplos os olhares sobre ela lançados, mas de todas as formas de conceber, que se tornam a própria cidade, podemos examinar a pluralidade da urbe a partir da seguinte síntese: a cidade real, a cidade virtual, a cidade imaginária, todas formando um único, denso e complexo quadro, visível, textual, simbólico e, portanto, metafórico e enigmático. Um quadro a espera de uma semiótica afetiva e esclarecedora, principalmente, diante das interrogações colocadas pela conjuntura pós-moderna. Essa conjuntura aproxima a imagem da cidade de uma visão plural, as tramas piramidais do imaginário amalgamam-se as teias da política e da ideologia e multiplicam as paredes do labirinto.

E as questões que colocamos: como adentrar esse labirinto? Como trazer a tona um novo universo teórico capaz de ler a cidade a partir de novas sensibilidades? Como demolir práticas equivocadas da ação política e como tornar a cidade mais justa e humanizada? E, enfim, como resgatar utopias vislumbrando a construção do futuro?Algumas dessas questões são diretrizes no caminho interpretativo que será percorrido, outras, entretanto, permanecerão em aberto como desafio intelectual para todos que se proponham pensar a cidade a luz de novas práticas e novos paradigmas.



2. A cidade entre os laços do tempo

As cidades do tempo ausente surgem num contexto de supressão da diacronia, diferem das demais cidades, às quais denominaremos por efeito explicativo, "do tempo presente". Chamamos de cidade do tempo presente àquelas que não são projetadas/planejadas/implantadas, aquelas em que a espessura temporal construiu-se paulatinamente, adensando ao longo dos anos os sentidos das paisagens, pois, como sabemos as cidades cuja espessura temporal atinge a longa duração recebem o nome de cidade histórica para assinalar seu tempo longo e neste caso o espaço figura como marca e testemunho do tempo. Assim, diferente das cidades do tempo presente, nas cidades do tempo ausente tudo é simultaneidade e o sentido do espaço, ao contrário da cidade histórica, é marca e testemunho da ausência do tempo. O tempo ausente, entretanto, não é um tempo abolido, mas sim um tempo que espera para "acontecer", que espera pra transcorrer.

O tempo ausente coloca para a cidade uma condição de espera, de indefinição, onde tudo é eleito provisoriamente e as "escolhas" esperam o tempo para serem feitas. Paradoxalmente, a ausência combinase com a velocidade, mas não se confunde com ela. A velocidade define-se nas decisões prematuras, na composição da cidade e o estado de construção, destruição e mudança que é mais eficaz do que o estado de permanência. A ausência é um lapso, uma "suspensão" do movimento temporal. As decisões podem seguir ou retroceder para o passado ou para o futuro. A ausência torna-se um labirinto, no qual, outros tempos não vividos ocupam a imagem da cidade e, assim, só podemos entender o tempo ausente inscrito em uma ideia de tempo múltiplo. Entre os laços do tempo, a cidade projetada, inscrita na ausência de duração, forja o passado antes que ele exista e a imaginação trabalha futuros possíveis, em tal movimento, as soluções antecedem os problemas e as imagens apontam a atmosfera de admiráveis futuros como observamos nessa projeção da cidade de Palmas para 2020 (Fig. 1):


O amanhã e o ontem suprimem o hoje. Na Praça do Girassóis, marco central e simbólico da cidade, encontramos símbolos que retomam o passado, como por exemplo, o monumento aos 18' do Forte de Copacabana (Fig. 2):

Figura 2 - clique para ampliar

Tudo que somos, fomos ou seremos se dá em algum lugar, em algum tempo. Espaço e tempo, portanto, tangem nossa existência, constituem-se em dimensões da vida, existencial e permanente da qual não podemos nos desvencilhar. Discutir a essência e a relação das categorias espaço e tempo neste trabalho tem o sentido de fornecer subsídios para uma análise que se faz primordialmente a partir da relação espaço-tempo, portanto, da relação entre Geografia e História, já discutida classicamente por Braudel (1982). Sublinhando o caráter interdisciplinar como a tônica dessa discussão, a temporalidade é tomada como fenômeno imprescindível para pensar o espaço.

Todavia a intangibilidade do tempo e a composição abstrata da temporalidade tornam tais conceitos complexos o suficiente para que seja cuidadosa aplicação, principalmente, quando tomamos a lógica da multiplicidade de Deleuze e Guattari (1995,1997) como escopo teórico para pensar o tempo e a temporalidade a partir de uma faceta negativa: a ausência.

A modernidade teve claramente definida as suas características temporais no espaço, ao contrário, na pós-modernidade não há uma temporalidade característica que a defina, o que se observa é um palimpsesto de tempos múltiplos e não-lineares que se multiplicam em referências no espaço, assim só podemos compreender a ideia de ausência na sua relação com a multiplicidade e a partir da noção de presença. Assim, o próprio conceito de tempo transFIGURA-se e, como a o conceito de espaço, torna-se uma ideia e também uma substância, pois, compreendemos espaço e tempo como formas de sensibilidade ligadas ao sujeito cognoscente e falamos de espaço-tempo, sobretudo, a partir da representação. Os sentidos e a razão de forma não-hierarquizada são ferramentas e chaves para o conhecimento.

Ao longo do desenvolvimento científico o espaço foi tratado como recipiente de materialidades e o tempo como forma de metrificação, como afirma Pelbart (1998). Hoje mais do que essas noções aos conceitos de espaço e tempo somam-se o conteúdo das mentalidades: as identidades, as representações o imaginário social, entre outros conteúdos simbólicos e ideativos e mais do que isso, as próprias noções de espaço e tempo são flexíveis, por exemplo, para Zukin (2000) a inversão das identidades espaciais é um fenômeno recorrente, para o autor, assim como no século XIX o comércio e manufatura criaram uma anulação do espaço pelo tempo, do mesmo modo o tempo foi aniquilado pelo espaço no enobrecimento, na retomada do vernacular abstraído da história etc.

A ausência do tempo é possível apenas numa apreensão não-linear e não cartesiana do tempo é também uma metáfora, pois, a concepção de tempo na pós-modernidade traz com força esta ideia de ausência. Haesbaert (2006) demonstra nos seus estudos que a diferença na espacialização de presença e ausência é um dos componentes paradigmáticos que justificam estabelecer uma distinção entre modernidade e pós-modernidade

Shields coloca a questão da síntese aparentemente paradoxal entre distância e presença, lembrando que, apesar de comumente associarmos presença e proximidade, ausência e distância, o estrangeiro é sempre o distante-presente. Num sentido temporal, há uma relação entre presença e agora (nowness), o presente. Mas se o passado é visto como "uma série de 'agoras' em contínua passagem", ele é "um agora que passou", tornando-se assim, uma ausência "concebida como um tipo de presença" (p.187). Com mais razão ainda, o espacialmente distante pode-se fazer "presente", numa dissociação entre presença aqui (espacial) e presença agora (temporal). Ausência, assim, torna-se simplesmente uma não presença, definida que é, sempre, em sua relação com a presença. (HAESBAERT, 2006, p. 169, grifos nossos)
A cidade projetada, vista como um conjunto semântico é este invólucro de presença e ausência, compõe-se a cada fragmento de pequenas narrativas que juntas formam uma tessitura e nos permitem chegar às ações e ideias que as construíram. A busca pelo imaginário social é uma tentativa de revisitação dos elementos simbólicos na cidade, de reconstrução de laços sociais e reencontro com a identidade.

Para que a cidade não seja um simulacro é necessário singularidade, a paisagem urbana deve figurar como elemento formador, ou seja, é preciso ter personalidade. Jodelet (2002) nos esclarece que a memória coletiva se apoia em imagens espaciais e que não existe memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. A cidade, deste modo, emerge como lócus de representação simbólica para o qual os problemas de identidade tornam-se centrais.

A singularidade da paisagem vai sendo cada vez mais valorizada à medida que a cidade insere-se no contexto da pós-modernidade ou supra modernidade na qual se constata uma aceleração do ritmo da vida, uma intensificação das estimulações nervosas e sensoriais, assim como, o desfibrar de imagens múltiplas, fugazes que privilegiam o desenraizamento, o intelecutalismo o personalismo manifesto no espaço das ações cotidianas. Entretanto, na cidade projetada onde a memória coletiva não está definida, a formação de uma paisagem singular esvaece no imaginário do poder e não raramente emerge o simulacro. Os signos que identificamos na paisagem fazem referências a fatos heróicos da história nacional e os materializam nas praças. Assim, em Palmas, o artefato e simulacro criam e trabalham o tempo, como no exemplo do monumento aos 18' do forte (Ver Fig. 2) entre outros elementos anexados na paisagem. O moderno funde-se ao pós e a batalha pelos símbolos na criação de uma imagem da capital é uma luta constante do poder que a engendra. Os girassóis escolhidos como símbolo da cidade, petrificam-se nos portões do Palácio junto à coleção de monumentos que contam uma história fora do lugar na praça gigantesca (Praça dos Girassóis) Além desses aspectos comparecem no imaginário social e na própria paisagem urbana elementos que se referem ou simulam paisagens relativas à capital federal, Brasília.

A formação/transformação do imaginário social, a partir da criação de uma realidade urbana e de uma imagem da cidade ocorreu em Palmas com a significativa manifestação da dominação política sobre o território. A expressão do poder comparece diretamente visível no espaço, que figura como lócus urbano no qual o papel dos atores políticos e suas relações de poder são engendradas. Portanto, a formação do imaginário social não está dissociada da intervenção ideológica dos seguimentos dominantes e não raramente as representações, o imaginário social são também nutridos pelo ideário do poder.

A composição do que é hoje a capital do Estado do Tocantins ligou-se à ideologia do progresso, do desenvolvimento econômico, que ao longo da história do Estado brasileiro fez-se presente no discurso político e foi amplamente aceito pela sociedade, de modo geral, como elemento positivo da trama política. Junto a esse ideário para criação de Palmas veio acompanhado de uma preocupação geopolítica repetindo anacronicamente o mesmo discurso que compareceu na criação de Brasília, como ilustra os esquemas abaixo (Fig. 3 e 4):

A tentativa de retomada de um discurso histórico "geopolítico e desenvolvimentista" como legitimador do processo de criação da capital do novo Estado não repete a história, mas apenas a simula, inclusive quando elabora o slogan "20 anos em 2", lembrando Juscelino Kubitschek com os "50 anos em 5". Na década de 1990 também já estavam consolidadas as críticas feitas a Brasília do ponto de vista da sua configuração no Urbanismo e na Arquitetura, tais críticas tecidas, sobretudo, nas últimas três décadas transformaram as intervenções no urbano cujas experiências também foram sentidas em Palmas a partir do trabalho dos arquitetos que confeccionaram o seu projeto. Também na década de 1990 o próprio conteúdo político do país já havia modificado-se o suficiente para uma retomada do nacional desenvolvimentismo, o que tornava tal discurso midiático e anacrônico.

É posto em marcha nesse processo um intenso jogo de temporalidade, de fusão e dialética temporal que se manifesta nos artefatos e ações sobre a cidade a partir do que deve permanecer e o que deve ser modificado.

Observamos na figura abaixo a perspectiva da área central de Palmas, o conjunto de secretarias de Estado - nesse aspecto, o desenho estabelece uma alusão ao Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília e gera a percepção de similitude entre as duas cidades. Como observamos in loco, o desenho no interior das quadras não reproduz, hoje, exatamente o desenho da perspectiva. Algumas mudanças já foram executadas nesse marco central.

Figura 5 - clique para ampliar

3. Palmas, a última capital projetada do século XX: uma cidade da condição pós-moderna.


Palmas caracteriza-se como uma cidade, mais propriamente projetada do que planejada, que vertiginosamente "apareceu" no interior sertanejo do cerrado tocantinense. De acordo com este trabalho é uma cidade marcada pela ausência de temporalidade. Um estrangeiro, que contemplasse Palmas sem conhecer seu processo de implantação, dificilmente acreditaria que se trata de uma cidade com apenas 19 anos de existência devido à imediatez com que as cidades surgem e crescem no Brasil, este aspecto é algo quase inimaginável, quando as comparamos, em relação ao tempo de formação, às cidades européias. Para explorar essa condição labiríntica e enigmática cidade , buscamos o conteúdo social e representativo da sua paisagem:

Com toda certeza Palmas é a esquina do mundo para quem está acostumado com as pequenas cidades de ruas estreitas e sem pavimento do interior do estado. Para muitos ainda corresponde à referência de cidade grande, congestionada e violenta. Para outro é solo fértil e de oportunidades, longe dos grandes centros que atrai tipos humanos do norte ao sul do Brasil. A cidade abriga a todos e se constrói entre a ausência de identidade e a diversidade de culturas... (MALHEIROS, 2002, p.141)
De acordo com os atores sociais responsáveis pela projeção e criação de Palmas, a perspectiva era elaborar, de certo modo, uma cidade que remunerasse a sua própria construção. Partindo do princípio de escolha da área - uma área rural desvalorizada - e com os investimentos públicos necessários a iniciativa para edificar uma cidade que as pessoas comprassem os lotes, ou seja, ela seria diferente de Brasília financiada, sobretudo, pelo capital privado. Para tal empreendimento, escolheu-se uma capital provisória (Miracema - TO e em seguida executaram a seleção de uma área central no espaço geográfico do Estado para abrigar a capital definitiva, tal escolha teria obedecido a estudos e princípios técnicos e ambientais. De acordo com os arquitetos entrevistados, o primeiro princípio era implantar a capital sobre um território que não impactasse a natureza existente, priorizando o encaixe entre a serra e o lago, visto como um convite do olhar para o desenho da cidade.

Tecida de significados fragmentados, Palmas constitui-se num território bricolagem, pois, a cidade foi considerada um laboratório, onde, cada qual, planejador, arquiteto, construtor realizaria sua experiência. O resultado é uma "colcha de retalhos" expressão cunhada por um escritor regional, habitante da cidade, para adjetivar e interpretá-la. Como apresenta Mafesoli (1996), a colcha de retalhos é também uma metáfora da pós-modernidade. Para Zukin (2000) a pós-modernidade caracteriza-se através da mudança na qual espaço e tempo tornaram-se objetos de consumo visual.

Em Palmas a aplicação do que chamamos pós-modernidade resultou numa estrutura urbana suis generis, onde cada quadra tem um desenho diferente, as quadras são macro-quadras que contém outras quadras e que, por vezes, são confundidas com as conceituais superquadras de Brasília. Também no plano das identidades espaciais tradicionais observou-se uma transformação profunda com a criação da capital, pois a camada da população que conseguiu adquirir um lote de preço elevado participa agora de uma nova paisagem cultural.

Palmas surge com o rótulo de capital ecológica, dentre vários slogans que a acompanham, podemos observar uma associação entre natureza e artefato, uso público e valor privado que fazem da área denominada plano diretor um lugar enobrecido intercalando o global e o lugar específico.

Entretanto, projetar o espaço de uma cidade, pensar os detalhes nos quais a vida transcorrer-se-á, numa pretensa totalidade, é deter-se numa imagem do inacabado. Os riscos do inacabamento aumentam à medida que se aumenta o teor de rigidez programada para aquele espaço. A experiência da modernidade introjetada no urbano revela que as cidades de nanquim não resistem às intervenções sócio-culturais. A capacidade subversiva dos jogos do sistema, das ações cotidianas, do desvelar da vida, desengessam os projetos, deslocando suas racionalidades, desmontando restrições conjunturais, reagindo sobre o espaço material e simbólico, injetando novos sentidos, imprimindo novos usos, re-texturizando os traços e, sobre o espaço anódino, tece a cultura também ligada ao consumo.

As leituras do processo de construção de Palmas, com exceção dos consensos de que José Wilson de Siqueira Campos teria criado a cidade e de que ela seria igual Brasília, caminham para a multiplicidade de sentidos num movimento que não cessa de erigir e entranhar-se, sem parar de alongar, de romper-se e de retornar - num rizoma - que não começa nem se conclui, mas encontra-se no meio, entre as coisas, como observam Deleuze e Guattari (1995). Assim, leituras completamente opostas não se anulam, convivem em paralelo e ajudam a compreender a cidade no tempo ausente, esse entretempo marcado, sobretudo, pelo devir.

Estabelecido o conjunto de critérios para o projeto de Palmas, as ações que se seguiram a essa iniciativa foram de desconstrução, procurando fazer de uma certa ordem, a desordem, e, nesse movimento, ideias opostas coexistem, colidem e se interpenetram. As narrativas que desfibram/interpretam a cidade constituem-se em visões distintas do mesmo processo, esquadrinham o plano e a ocupação da cidade e apontam leituras que absorvem ilusões, críticas, utopias, projeções imaginárias. Suas conexões não são sucessivas e recorrentes, rompem e deslocam-se. Observa-se territorializações de ideias num recorte, que se desterritorializam em outro, por vezes, ainda se reterritorializam num terceiro ou apenas se mantém irrompido, inconcluso, movediço, formando oposições paralelas que mesclam os fatos as suas subjetivações.

Cruzam-se nesse labirinto as manobras políticas, os desejos personalistas, a lógica do capital aliadas à técnica e os limites de ambos - no interior dos discursos, as suas fendas - esses elementos configuram um espaço fragmentado, marcado pela busca de um lugar histórico que opera uma orquestração entre as práticas culturais e a formação social.

O labirinto não está apenas nas diferencialidades do tecido urbano, quebrando a perspectiva moderna do plano de massa, mas, sobretudo, as ideias que forjam a cidade estão marcadas por simulacro, ecletismo e tradição. Esses elementos que lhe são constitutivos rompem com as insígnias da modernidade assinaladas, principalmente, pelo rompimento com o passado, pela homogeneidade e simplificação das formas.



4. Imagens e metáforas: traços da pós-modernidade

Hoje nos deparamos com um contexto de crise, de mudanças paradigmáticas que coloca diante do pesquisador o desafio de construir novos conceitos, de lançar-se a novas abordagens teóricas para entender um presente tão fugaz quanto complexo, sobretudo, para o espaço urbano que se torna cada vez mais dinâmico. Nos limiares da travessia para o futuro da cidade, a reflexão sobre a mesma se impõe, a princípio porque o momento denominado pós-modernidade trasbordou em muito as possibilidades intelectuais de um pensamento consolidado sobre os desdobramentos do urbano e da cidade. Se não o fora sempre, a cidade volta a ser um enigma: no momento em que tudo se torna urbano, pergunta-se: o que é a cidade? E para onde ela vai?

De acordo com Zukin (2000), as mudanças espaciais, culturais e sociais ocorridas na cidade estão reunidas de modo bastante impreciso no termo "paisagem de urbana pós-moderna" e embora não haja, ainda, critérios nítidos que separem as cidades modernas das pós-modernas, existem mudanças comportamentais e visuais que têm na construção metafórica um nexo ilustrativo e explicativo da experiência cultural de um dado espaço.

Com as mudanças profundas nas práticas culturais manifestas em todas as dimensões da vida, inclusive, nas novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espaço, sobretudo, a partir da simultaneidade e da compressão como nos diz Harvey (1992), a cidade, além de constituir-se como enigma, encontra-se no labirinto, que ludibria a percepção e põe em xeque a marcha do tempo quando o presente é perplexo, o passado ora esquecido ora idealizado e o futuro inapreensível. A cidade no labirinto é labiríntica, porque, policentrica, fragmentária e assim, duplicada e vazia, como também esvaziada, sobretudo de sentido, de identidade. Os espaços urbanos, cada vez mais similares entre si, condição de um mesmo processo de produção e consumo, projeta-se no e sobre o espaço uma descaracterização generalizada. Tudo se tornando urbano e fundamentalmente igual, a cidade artificializada ao extremo gera a vertigem. Entretanto, ao mesmo tempo, que tais processos homogeneizantes ocorrem na cidade, a busca pela identidade urbana no local ocorre, por vezes, a partir de uma intensa bricolagem de paisagens, espaços e tempos. Nesse contexto enigma, labirinto, vertigem e bricolagem são imagens-metáforas interpretativas e analíticas às quais nos deparamos nas cidades da condição pós-moderna.

A perspectiva posta em movimento coloca diante de nós, um longo trajeto em busca da sensibilidade estética da imagem urbana, no qual a relação sujeito/objeto é também, revisitada. A cidade é entendida como experiência espacial e temporal. Suas imagens e imagens-metáforas assumem aqui um duplo papel, além de se apresentar como um elemento pertencente à meta-linguagem da cidade - elemento esse que deve ser compreendido, decifrado - ela também é instrumento que nos permite decifrar, elucidar, compor a cidade. Numa espécie de jogo antitético, é o que está para ser interpretado e o que ajuda a interpretar. Imagens urbanas chegam aos nossos olhos, por vezes silentes, diáfanas e imediatamente comunicam-se numa narrativa própria, desfiam-se num monólogo que buscamos interpretar a partir das nossas vivências, desejos, utopias e da capacidade que possuímos de compreender suas linguagens, seus tempos desviantes que se amalgamam em encontros e cisões formando uma estranha arquitetura rizomática. Ressequidas, rosáceas, plúmbeas de fuligem, alheias, aconchegantes e transcendentes vão dos desfiladeiros de edificações à luminosidade dos monumentos. Com o decorrer do tempo passamos não apenas a interpretar sua linguagem, mas, a estabelecer um diálogo com a urbe. Cores, formas, volumes juntam-se numa tessitura simbólica compondo uma paisagem plural e heterogenia, vivificadora de lugares onde o enlace entre o sujeito e a cidade é efetivado.

Diante do exposto podemos avaliar que há ainda muito para compreender, mais detidamente, o que se refere à análise da cidade pós-moderna e seus enigmas que vão do simulacro à imagem labiríntica num profundo jogo metafórico. E essa análise não pode ser algo apressado e taxativo, pois ela revela parte do conteúdo dos processos em marcha para pensar uma cidade cada vez mais plural. Concordando com essa ideia, concluímos que é preciso ampliar os horizontes para tecer uma leitura mais definidora sobre o conteúdo dessas cidades. O que podemos afirmar é que a dimensão imaginária traz a subversão do mito, do sonho e da fantasia e, portanto, a ampliação do prisma sobre os quais olhamos o horizonte.

5. Conclusão

Palmas fora marcada por um intenso fluxo migratório, que apresentou-se como um ímã para investidores, incorporadores, hoteleiros, agentes imobiliários, além da população de baixa renda que se agrupou nas suas margens na parte sul da cidade quebrando as intenções profícuas do projeto que preconizava a inclusão de várias camadas sociais convivessem em proximidade para que o seu tecido se expandisse apenas de Leste-Oeste com o objetivo de minimizar os custos de infra-estrutura. A perspectiva de receber um milhão e meio de habitantes na primeira década de ocupação foi outro fator que não se concretizou. Os vazios urbanos, gerados a partir das quadras não ocupadas, fragmenta o tecido e já traz esse fenômeno típico dos grandes centros urbanos. Mas a tônica da cidade desde o seu projeto tem sido, sobretudo, estética: a ocupação no sentido Leste-Oeste também mantém na cidade o visual formado pelo encaixe entre a serra e o lago, tal ambiência contribui para a paisagem cultural geradora de metáforas. Ela recebeu contornos naturais que a definem como uma cidade emoldurada e no interior dos seus espaços os artefatos evidenciam a busca de um lugar histórico.

Desse modo, entendemos que o futuro dela está sendo imaginado, reinventado e nesse processo estão presentes conteúdos culturais. Estes últimos fazem parte do processo de humanização daquilo que se quer alcançar. A cidade imaginária é híbrida, pois ela funde o real, o ideal e o imaginário. Como afirma Pesavento (1999) é necessário olhares intercruzados para entender a crise dos paradigmas e os problemas contemporâneos que se impõe aos leitores da cidade. A busca pela cidade imaginária é a busca pelo lugar do encontro, da identificação ou da identidade, uma cidade que para além das suas funções habituais, consiga significar e apresentar sua identidade pessoal e complexa, base de um diálogo fecundo com ela mesma e com outras cidades.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-45132009000100010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Revista Sociedade e Natureza

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