segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A purificação das águas*


A purificação das águas*
Yuri Vasconcelos
Cobrança pelo uso da água dos rios deve impulsionar a adoção de novas tecnologias para tratamento e reuso de efluentes sanitários e industriais

A água agora vai ter seu preço. A partir de junho, moradores de 180 municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais abastecidos pela bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul terão que pagar pelo uso da água. Hoje, a taxa paga na chamada "conta de água" refere-se ao tratamento, à purificação e ao transporte executado pelas empresas de saneamento básico. Não há cobrança, portanto, pela água captada dos rios. Para os especialistas, o novo tipo de cobrança terá alguns desdobramentos. O primeiro deles é que as companhias de saneamento irão investir no tratamento de esgoto e de efluentes e na adoção de novas tecnologias para ampliar o reuso de água.

Hoje, apenas 10% dos efluentes domésticos gerados no país são submetidos a algum tipo de tratamento. O resto, o impressionante volume de 10 bilhões de litros, é jogado diariamente nos rios. A nova conta foi aprovada em março pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), órgão interministerial do governo federal, e afetará a vida de 5,2 milhões de pessoas e atingirá 8 mil indústrias da região. "As empresas irão aprimorar seus métodos e processos de tratamento para que os efluentes sejam devolvidos com qualidade superior à da água bruta captada no manancial", acredita Ednaldo Mesquita Carvalho, consultor da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente. "Além disso, as empresas estarão cada vez mais utilizando o reuso da água a fim de reduzir os volumes captados", diz.

Inicialmente apenas as indústrias que captam diretamente do rio Paraíba do Sul e das empresas de saneamento vão pagar a conta. Em três anos, a cobrança deverá ser estendida a todos os consumidores. Segundo Jerson Kelman, diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), esse é o primeiro passo para a implementação da cobrança pelo uso da água em todo o país. No início, a receita anual com a nova tarifa está estimada em R$ 14 milhões, quantia que será usada na recuperação ambiental da bacia e na ampliação do tratamento do esgoto.

A cobrança tem os seguintes critérios: quem despejar água de volta no rio em condição pior da que foi captada pagará R$ 0,02 para cada metro cúbico (mil litros) coletado, enquanto quem devolver a água tratada terá um custo quase três vezes menor: R$ 0,008 por metro cúbico. Cálculos da ANA indicam que haverá um acréscimo de R$ 1,00 nas contas se as companhias repassarem integralmente o custo para os usuários.

Para fugir desse custo adicional no balanço financeiro, as empresas deverão procurar alternativas para eliminar todos os tipos de resíduos, orgânicos ou não, da água dos seus efluentes. Atualmente, utilizam-se sistemas de filtragem, controle biológico em lagos e digestores e tratamento químico. São sistemas confiáveis, mas nesse setor ainda há espaço para tecnologias mais avançadas e eficientes.

Oxidando os poluentes

Uma dessas novas tecnologias é o sistema eletroquímico fotoassistido, também conhecido por fotoeletroquímico, objeto de estudo nos últimos dez anos do professor Rodnei Bertazzoli, coordenador do Laboratório de Engenharia Eletroquímica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O tratamento fotoeletroquímico é feito por um reator modular composto por dois eletrodos - placas metálicas de titânio revestidas de óxidos condutores de metais nobres -, sendo que um deles permanece sob incidência da radiação ultravioleta (UV). "O princípio do sistema é muito simples", explica Bertazzoli, coordenador do projeto Tratamento de Efluentes Derivados da Indústria de Papel e Celulose Através de Fotocatálise Assistida por Eletrólise.

"Ele remove compostos orgânicos e inorgânicos por meio de processos onde o único reagente é o elétron." Ao circular no reator, qualquer poluente orgânico passa na superfície dos eletrodos e sofre oxidação, transformando-se, ao final do processo, em dióxido de carbono e água. Os organismos patogênicos, então presentes nos efluentes, ficam inativados e os compostos inorgânicos, basicamente metais pesados, ficam depositados no eletrodo.

De acordo com Bertazzoli, depois de submetidas a esse tratamento, as águas residuárias estarão prontas para ser reutilizadas dentro da própria empresa ou jogadas de volta ao rio, obedecendo aos padrões estabelecidos pela resolução 20/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Essa resolução, utilizada pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) para controle da poluição dos mananciais em São Paulo, estabelece parâmetros físico-químicos e microbiológicos (oxigênio dissolvido, demanda bioquímica de oxigênio, pH, coliformes fecais, nitrogênio, etc.) para efluentes domésticos e industriais. O limite de concentração de cada um deles varia conforme a classificação do curso de água - quanto mais limpo for o rio, maior é a exigência quanto ao grau de pureza dos efluentes a serem lançados.

"A grande vantagem do sistema fotoeletroquímico é que ele não gera subprodutos - os tratamentos biológicos convencionais produzem uma grande quantidade de lodo, o que é um sério problema ambiental", diz o pesquisador. Além disso, o sistema é capaz de remover cor e odor do poluente, características que, na maioria das vezes, não são tratadas nos processos tradicionais. Até agora, o sistema já se mostrou viável no tratamento de efluentes de indústrias têxteis, de papel e celulose e de chorume de lixo (líquido negro e com forte odor contendo altas concentrações de compostos orgânicos e inorgânicos) de aterros sanitários. Também foram iniciados testes com resíduos hospitalares. Todas essas aplicações já resultaram na solicitação de 14 patentes.

Bertazzoli explica que o custo de implantação do processo é um pouco mais alto do que o dos sistemas biológicos, mas as despesas operacionais são baixas e envolvem apenas o pagamento da energia elétrica, porque o processo é automatizado. O preço médio de um reator eletroquímico é de US$ 600 por metro quadrado de área de eletrodo. "Uma empresa de porte médio, com vazão de 70 metros cúbicos por hora, teria que fazer um investimento de US$ 120 mil numa estação fotoeletroquímica com 200 metros quadrados de eletrodos", calcula Bertazzoli.

A tecnologia testada por meio de um protótipo ainda não está disponível comercialmente, o que só deve ocorrer em dois anos. O pesquisador é consultor da empresa Tech Filter, que possui um projeto no Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP. O objetivo é montar um protótipo de reator em grande escala nos próximos meses.

Desinfecção por UV

Outra linha de pesquisa relacionada ao tratamento de efluentes é a desinfecção de esgotos secundários (que já passaram por um tratamento prévio) com radiação ultravioleta. Estudos iniciados em 1977 pelo professor José Roberto Campos e atualmente coordenados pelo professor Luiz Antônio Daniel, ambos da Escola de Engenheira de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP), demonstraram que esse processo é altamente eficaz na inativação de microrganismos patogênicos (vírus e bactérias) e apresentou vantagens quando comparado a outras técnicas que usam desinfetantes químicos, como o cloro.

"Por atuar no meio físico, a radiação UV não adiciona produtos ao esgoto, enquanto o cloro gera subprodutos organoclorados indesejados (trihalometanos, haloaldeídos, halocetonas, etc.), que, segundo a literatura médica, podem provocar doenças como o câncer", explica o pesquisador da USP, que recebe recursos da FAPESP para desenvolver o projeto Inativação de Microorganismos Patogênicos por Fotólise: Aplicação de Radiação Ultravioleta em Efluentes Secundários de Esgoto Sanitário. Segundo o estudioso, a contaminação acontece em cadeia. Quando um esgoto desinfetado com cloro é jogado de volta ao rio, os subprodutos organoclorados podem contaminar o manancial e o cloro residual poderá ser prejudicial à cultura irrigada. Quem captar a água para beber também corre risco.

Uma estação de tratamento de esgotos da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) na cidade de Lins, aparelhada com o fotorreator importado da marca Aquionics, cedido pela empresa brasileira Germetec, já emprega essa nova técnica de forma experimental e com bons resultados. "Os efluentes tratados na estação são utilizados para irrigar uma plantação de milho no terreno ao lado, de propriedade da Sabesp", conta Luiz Daniel. Essa pesquisa está sendo desenvolvida com a participação da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), Escola de Saúde Pública e EESC, todas da USP, além da Sabesp, e constitui um dos temas da rede nacional de pesquisa no âmbito do Programa de Pesquisa em Saneamento Básico (Prosab).

Esse programa tem por objetivo desenvolver e aperfeiçoar tecnologias nas áreas de águas residuárias, águas de abastecimento e resíduos sólidos que sejam de fácil aplicabilidade, baixo custo de implantação, operação e manutenção. O histórico de resultados obtidos nos mais de 30 anos de pesquisas sobre desinfecção com radiação ultravioleta realizadas em São Carlos contribuiu para a aceitação e confiança no processo usado em Lins, que está sendo comparado com a unidade de laboratório montada em São Carlos com recursos da Fapesp.

Daniel explica que a inativação dos organismos patogênicos acontece no nível cromossômico. "A radiação modifica o DNA da bactéria, criando um fotoproduto que impede sua duplicação", explica. A grosso modo, o reator é como um tubo com lâmpadas de vapor de mercúrio, que emitem radiação UV. Durante o tratamento, as águas residuárias entram nesse tubo e são irradiadas por 5 a 30 segundos.A limitação dessa tecnologia é que a solução aquosa não pode conter muita matéria dissolvida ou em suspensão.

Esse fator impede que os raios ultravioleta atinjam os microrganismos. Por esse motivo, os efluentes precisam passar por um pré-tratamento. "Acredito que essa tecnologia tem potencialidade para ser usada em grande escala", diz o pesquisador da USP. "Ela já comprovou sua viabilidade técnica e mostrou ter custo competitivo. Há mercado interno e externo e seria interessante a participação de empresas nacionais no desenvolvimento de equipamentos para uso em esgoto sanitário porque os únicos que existem são importados."

Aposta nos anaeróbios

A Escola de Engenharia de São Carlos também abriga um grupo de pesquisadores que estuda os processos anaeróbios - utilizando microrganismos (bactérias e arqueas) que não necessitam de oxigênio para sobreviver - para tratamento de esgoto. A equipe tem contado com recursos do Prosab, gerido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), para desenvolver seus estudos. O aperfeiçoamento dos sistemas anaeróbios tem sido um dos objetivos do Prosab.Esse processo emprega microrganismos anaeróbios que transformam compostos orgânicos complexos em produtos mais simples, como metano, gás carbônico e gás sulfídrico.

Para o engenheiro químico Marcelo Zaiat, coordenador do projeto Estudo da Dinâmica de Adesão de Biomassa Anaeróbia em Suportes e Aplicação em Reatores para Tratamento de Águas Residuárias, financiado pela FAPESP, o tratamento anaeróbio apresenta uma série de vantagens sobre o sistema aeróbio, o mais usado atualmente. "Ele não precisa ser aerado ou agitado e por isso requer menos energia e usa menos equipamentos", explica Zaiat. Mas a grande vantagem é outra: como os microrganismos anaeróbios crescem muito menos do que os aeróbios - quando a bactéria precisa de oxigênio -, a geração de lodo ao final do tratamento equivale a apenas 10 a 20% da quantidade produzida nos processos aeróbios.

Apesar dessas, digamos, virtudes, os processos anaeróbios ainda não são suficientemente confiáveis e eficientes, o que os obriga a passar por um pós-tratamento. "Nossas pesquisas buscam exatamente aperfeiçoar os sistemas anaeróbios aumentando sua eficiência", afirma Zaiat. O tipo de material empregado é vital para a eficiência do reator, pois, quanto maior for a aderência e o tempo de permanência dos microrganismos dentro do equipamento, melhor será o resultado do tratamento.

O município de Piracicaba, no interior do Estado, foi um dos pioneiros no país na utilização de um reator anaeróbio para tratamento de esgotos. A prefeitura construiu nos anos 90, com base num projeto holandês, uma estação de tratamento com um reator anaeróbio de manta de lodo. Projetada para atender aproximadamente 90 mil pessoas, ela trabalha em conjunto com um sistema aeróbio e tem apresentado bons resultados. Segundo Zaiat, a tendência para o futuro é o uso combinado dos sistemas anaeróbio e aeróbio. O próprio campus da USP de São Carlos ganhará em breve uma estação de tratamento composta por sistemas combinados. Com ela, será possível maximizar as vantagens dos dois processos e livrar o efluente de sua carga poluente, deixando-o com as características necessárias para ser lançado, ou mesmo reutilizado.

Reuso da água

O reuso da água para fins não potáveis já é uma realidade em três estações de tratamento de esgoto da Sabesp na Grande São Paulo, por um custo inferior à tarifa normal. Juntas, as estações do ABC, Barueri e Parque Novo Mundo produzem 180 metros cúbicos por hora de água sem filtragem e cloração. É um tipo de água que pode ser usado na geração de energia, limpeza pública, refrigeração de equipamentos, lavagem de carros, combate a incêndio e diversos processos industriais. Desde maio do ano passado, a Sabesp fornece para a prefeitura de São Caetano do Sul água reciclada para irrigação de áreas verdes, lavagem de ruas, desobstrução de rede de esgotos e de águas pluviais da cidade. Em janeiro deste ano, mais dois municípios, Barueri e Carapicuíba, passaram a receber água de reuso da empresa.

Segundo especialistas em recursos hídricos, todas essas iniciativas vêm ao encontro da proposta do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e da Organização Mundial de Saúde (OMS) de fortalecer o reuso planejado de água para fins potáveis e não potáveis. O objetivo estratégico é proteger a saúde pública, garantir a manutenção da integridade dos ecossistemas e o uso sustentado da água. Dessa forma, as novas tecnologias de tratamento de efluentes - fotoeletroquímica, desinfecção por radiação ultravioleta e sistemas anaeróbios - atendem perfeitamente a esses requisitos.
Yuri Vasconcelos

* Artigo da Revista Pesquisa FAPESP, edição 75, publicada em maio de 2002.

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