segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A improvável guerra das águas*



Amy Otchet

“A água será o motivo das guerras do século XXI“. Esta sombria previsão é refutada pelo geógrafo estadunidense Aaron Wolf - diretor do projeto de banco de dados Transboudary Freshwater Dispute (Conflitos transfronteiriços sobre a água) e professor da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos - analisa os incidentes relacionados a Água, registrados na história.

Quando se fala de água, a mídia sempre evoca o espectro de conflitos passados e futuros, causados por ela. Você tem analisado todos os acordos e incidentes internacionais relativos à água. De quando data o último conflito entre dois Estados, provocado pela água?

Aaron Wolf - O único caso conhecido, de uma verdadeira guerra por esse motivo, remonta a 4.500 anos. Refere-se a duas cidades da Mesopotâmia, por causa do Tigre e Eufrates, no sul do atual Iraque. Desde então, a água tem contaminado as relações internacionais, mas também se observa, a miúdo, que Estados hostis - como a Índia e o Paquistão, ou isralenses e palestinos - resolvem os conflitos suscitados pela água ao mesmo tempo que continuam lutando persistentemente em outros terrenos. Também já examinei todos os incidentes de oposição entre dois Estados no último meio século sobre as 261 bacias fluviais existentes no mundo. De um total de 1.800 casos, dois terços teriam que ver com a cooperação, como a realização de pesquisas científicas conjuntas ou assinatura de mais de 150
tratados relativos a água. Quanto aos aspectos negativos, 80% consistiram em ameaças verbais e posturas adotadas por chefes de Estado, dirigidas provavelmente a seu próprio eleitorado. Em 1979, Anuar el Sadat declarou, referindo-se ao Nilo, que “a água era o único aspecto que poderia levar o Egito a entrar de novo em guerra“. Ao que parece, o rei Hussein, da Jordânia, disse o mesmo em 1990, referindo-se ao Jordão. Assim, nos últimos 50 anos, somente houve guerra por água em 37 casos, dos quais 27 foram entre Israel e Síria por causa do Jordão e do Yarmuk.

Mas há quem defende que as tensões que provocam a crescente escassez de água impedem que se estude o passado para prever o futuro.

AW - Os casos mais graves parecem ser o do Tigre e Eufrates e o do Jordão. Os países limítrofes que padecem de seca têm meios para desviar a água de seus vizinhos, o que gera uma terrível inimizade entre eles. Assim, todos têm procurado firmar acordos.

Os Estados têm ido para a guerra por petróleo, por que não por água?

AW - Estrategicamente, as guerras pela água não têm sentido. Lutando com o vizinho não se aumentam as reservas de água, a menos que alguém possa apoderar-se da bacia hidrográfica do outro e despovoá-la, sem correr o risco de terríveis represarias.

Mas a água tem sido utilizada como arma e objetivo de guerra.

AW - Trata-se de outro problema, que sempre existiu. Durante a guerra do Golfo, o Iraque destruiu quase todas as estações de dessalinização do Kuwait e a coalizão aliada dirigiu seus ataques contra o sistema sanitário e de abastecimento de água de Bagdá. Antes da intervenção da OTAN, em Kosovo, em 1999, os engenheiros sérvios cercaram o sistema de distribuição de água de Prístina. Assim, há que se fazer a distinção entre a água como fonte de conflito, como recurso e como arma de guerra.

De onde vem, então, o rumor de uma guerra por água?

AW - Em parte do período posterior à guerra fria, quando os exércitos ocidentais começaram a perguntar-se - e agora, o que faremos? A preocupação pela “segurança ambiental” nasceu naquela época. Até 1992, numerosos cientistas políticos começaram a sustentar que a escassez de recursos hídricos iria conduzir a uma guerra. E, claro, quando se tem consciência da importância dos ecossistemas, é tentador considerar a água como uma fonte de conflito.

Você afirma, ao contrário, que a água, por sua natureza mesma, incita os Estados a cooperar entre si. Que exemplos poderia citar?

AW - Os acordos de Oslo, entre Israelenses e Palestinos nasceram de conversações privadas que mantiveram em Zurich os responsáveis pela água na região, em 1990. Foram eles que puseram em contato seus respectivos políticos e inspiraram o processo que conduziu aos acordos. Esse tipo de encadeamento é freqüente, pois a água conduz necessariamente a tratar outros aspectos. Vários Estados ao longo do Nilo, começaram a celebrar conversações sobre a água e agora estão elaborando acordos que englobam, entre outros temas, a rede de rodovias e a infra-estrutura elétrica.

Você sustenta que o perigo maior não é a escassez de água, mas a tentativa de um país de dominar uma via fluvial internacional. A miúdo surgem conflitos relacionados com projetos de construção de represas. Mas, em geral, tais projetos requerem a participação de organismos como o Banco Mundial. Não poderiam esses organismos tomar medidas mais sérias, para impedir que surjam problemas?

AW - O que você sugere já foi feito. Mas, como a maior parte do investimento procede do setor privado, os critérios dos bancos de desenvolvimento já não são levados em conta. A Turquia, por exemplo, reassinou fundos privados e públicos para o financiamento de um projeto muito controvertido, batizado de GAP, que contempla a construção de 22 represas e 19 centrais elétricas sobre o Tigre e Eufrates e seus afluentes. O mesmo sucede na Índia, com a represa de Marmada, e na China, com o projeto das Três Gargantas.

A bacia do Tigre e Eufrates pode ser considerada um barril de
pólvora. O que poderia impedir a Turquia, talvez o Estado mais poderoso da região, de favorecer seus próprios interesses em prejuízo do Iraque e da Síria?

AW - Muitos compartilham desse temor, mas é muito significativo que, quando em 1991, os países ocidentais pediram à Turquia que interrompesse o curso do Eufrates para o Iraque, o governo turco respondeu: “Vocês podem utilizar nosso espaço aéreo e nossas bases para bombardear o Iraque, mas não vamos privar esse país de água.” Desde os anos 70, entre a Turquia e o Iraque existe um acordo tácito, que a primeira, ainda que construa as represas, seguirá respeitando. Muito além da polêmica, Síria e Iraque reconhecem a utilidade das represas, que regulam o caudal do rio e prolongam a temporada agrícola. Por sua vez, a Turquia quer ser vista como um vizinho leal, em primeiro lugar por ser membro da OTAN, mas também por considerações internas e porque tenta ingressar na União Européia. O difícil é converter um acordo tácito em explícito.

Os especialistas sustentam que uma bacia fluvial deve ser
administrada conjuntamente, mas a negociação de tratados multilaterais sobre a água é um autêntico quebra-cabeças. Quais lhe parecem mais eficazes, os acordos multilaterais ou bilaterais?

AW - Quanto maior é o número de partes, mais difícil se torna o
entendimento, sobretudo se está em jogo a soberania de um país. Vejamos o caso do Jordão: existe um acordo entre a Síria e Jordânia, outro entre Jordânia e Israel, e outro mais, entre Israel e os palestinos - ou seja, uma série de acordos bilaterais para uma bacia multilateral bastante bem administrada, ainda que os palestinos terminem por reivindicar, e provavelmente por obter, direitos de água mais amplos.

Alguns economistas são partidários de se criar um mercado
internacional de água para evitar conflitos. Mas nesse caso, cabe citar o enfrentamento que opõe os Estados Unidos ao Canadá, que exige a este último que venda seus recursos de água no âmbito do Tratado do Livre Comércio, o que Canadá rechaça. Tratar a água como um recurso econômico resolverá alguma coisa?

AW - Os economistas podem destacar e quantificar os benefícios que a água oferece, como a energia hidroelétrica. Por exemplo, os Estados Unidos e Canadá subscreveram um acordo em virtude do qual o primeiro dispõe de represas de controle das cheias no território canadense. Em troca, Canadá recebe um pagamento pelo serviço que recebe. Parece ser mais fácil e mais justo repartir esses benefícios que a água mesma. Os economistas nos recordam também a necessidade de recuperar os custos de distribuição, de tratamento, de armazenamento de água etc. A miúdo, temos que pensar em termos de mercado - comprar e vender água como um produto - ainda que na prática nunca se tenha atuado assim no nível internacional. De minha parte, dado o apego emocional, estético e religioso que sinto pela água, resisto a considerá-la uma simples mercadoria.


Texto traduzido por M. C. Zinato



Amy Otchet é jornalista da revista Correio da Unesco

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