segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O desafio da água*

O desafio da água*
Vinod Thomas
Especialistas do mundo inteiro reuniram-se no Terceiro Fórum Mundial da Água, em Kyoto, Japão, discutindo soluções para o problema que já ameaça reduzir a expectativa de vida de mais de um bilhão de pessoas no mundo: a falta de acesso aos serviços de água.

A água é vital para o desenvolvimento. Na agricultura, por exemplo, embora apenas 20 por cento das terras cultivadas do mundo sejam irrigadas, essa área produz 40 por cento de toda a produção mundial de alimentos.

Até 2025, a agricultura irrigada terá de produzir 70 por cento dos alimentos do mundo para alimentar dois bilhões de pessoas a mais do que hoje. Ao todo, estima-se que as necessidades hídricas mundiais devam dobrar nos próximos 25 anos, e que quatro bilhões de pessoas - metade da população mundial - poderão enfrentar grave escassez de recursos hídricos até o ano 2025.

No Brasil, a água é ao mesmo tempo um patrimônio e um problema - abundante em algumas áreas e escassa em outras. Com 5,4 trilhões de metros cúbicos, o Brasil tem o maior fluxo interno de água do mundo. Mesmo assim, a região do semi-árido nordestino, que abriga 28 por cento da população brasileira, conta com apenas 5 por cento dos recursos hídricos do país.

Água limpa também é escassa nas regiões úmidas mas industrializadas do Sul e Sudeste, onde vivem 60 por cento da população. Essa escassez deve-se, entre outras coisas, aos elevados índices de poluição dos rios na região, o que, por sua vez, aumenta o custo do tratamento da água.

A falta de água para a irrigação nos períodos de seca também prejudica a agricultura. O Brasil usa apenas 15 por cento de seu potencial de irrigação. A expansão dessa porcentagem, especialmente nas áreas onde a produção é altamente variável devido às estações seca e úmida, poderia amenizar a variação da renda dos agricultores.

Nos últimos 40 anos, o Brasil expandiu o abastecimento de água para mais 100 milhões de pessoas e os serviços de saneamento para mais 50 milhões. Mesmo assim, a exemplo do que acontece na América Latina, 39 milhões de brasileiros (23 por cento da população) hoje não têm acesso à água tratada, e 90 milhões (53 por cento da população) não têm acesso a saneamento básico. Isso expõe a população a uma variedade de doenças e influi diretamente sobre a mortalidade infantil, que no Brasil é de 29 para cada mil nascimentos.

Um dos maiores problemas é a distribuição desigual dos serviços de água e esgotamento sanitário. O índice de cobertura de serviços no Norte e Nordeste é particularmente baixo. As maiores carências estão nos cerca de 4 mi municípios com população inferior a 20 mil habitantes. Da mesma forma, a população pobre é a que mais sofre as conseqüências da gestão inadequada dos recursos hídricos, da prestação inadequada de serviços e de um meio-ambiente insalubre. As reformas do setor precisam abordar a gestão dos recursos hídricos, o saneamento básico, a irrigação, a drenagem, a energia hidroelétrica e o meio ambiente. A falta de investimentos adequados permanece como um limitante, agravado pela necessidade atual de profundos ajustes macroeconômicos.

Mais urgente ainda é tornar o uso da água mais eficiente. Em 2000, apenas três das 27 companhias estaduais de saneamento tiveram perdas inferiores a 30 por cento do volume de água em suas redes de distribuição. Sete companhias tiveram perdas acima de 50 por cento. Essas ineficiências estão diretamente ligadas à falta de incentivos para que as companhias invistam em maior eficiência.

A gestão dos recursos hídricos no Brasil tem sido dificultada pela abordagem institucional fragmentada, pela atenção excessiva a novos investimentos em detrimento da operação e manutenção da infra-estrutura existente, e por não integrar considerações ambientais. Desde os anos 90, o Brasil vem tentando modernizar o setor enfocando a melhoria da gestão e a distribuição de investimentos. Hoje, o país é considerado um líder internacional em inovações institucionais na gestão de recursos hídricos, mas elas ainda não foram implementadas.

Uma questão importante é a tarifação dos serviços. Embora ela se encontre em um nível capaz de cobrir os custos de operação e possibilitar investimentos, a metade das companhias de água apresentam déficits operacionais que necessitam de apoio fiscal.

Esses desafios financeiros requerem uma combinação de preços adequados e uma política de subsídios cuidadosamente enfocada nos pobres. Os serviços também podem ser melhorados através de um arcabouço legal mais claro, incentivos de financiamento para melhorar a eficiência, e reformas tarifárias e de cobrança pelo uso de água que promovam a conservação.

O Terceiro Fórum Mundial da Água é uma oportunidade para se construir uma coalizão global em apoio às reformas e investimentos necessários para levar água ao 1 bilhão de pessoas no mundo que ainda não têm acesso adequado, propiciando-lhes uma vida melhor. Para o Brasil, é uma oportunidade de evidenciar a urgência das reformas no setor de água, que irão beneficiar milhões de brasileiros hoje e no futuro.
Vinod Thomas é diretor do Banco Mundial para o Brasil.

* Artigo publicado no jornal O Globo, em 24 de março de 2003.

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