No rastro de dom João VI, Brasil procura melhorar a eficiência dos terminais marítimos
ALBERTO MAWAKDIYE
Arte PB
Tudo indica que o momento histórico que o Brasil está vivendo, de abertura da economia, inserção maior no mercado globalizado, preocupação extremada com o mau estado da infra-estrutura, fará com que os 200 anos da abertura dos portos – empreendida em 1808 pelo regente português dom João VI –, que estão sendo comemorados neste ano, ganhem uma dimensão bem maior que a de uma simples efeméride, que de outro modo se destacaria apenas por causa do altissonante número redondo.
De fato, é bom que os brasileiros se preparem. Por tudo o que se vem falando e escrevendo sobre esse acontecimento histórico, quase sempre com a intenção de traçar paralelos com o momento atual, e pela quantidade de eventos comemorativos que se anunciam pelo país afora – programados pelo próprio governo, por instituições variadas, por gente do comércio, da indústria e da área portuária –, o grande personagem de 2008 tem tudo para ser dom João, que um dia embarcou às pressas em Lisboa para fugir do exército de Napoleão e, certamente sem querer, acabaria por colocar o Brasil no rumo da independência política, declarada por seu filho Pedro em 1822.
Para dar início às comemorações, um importante seminário já aconteceu no final do ano passado, em São Paulo. Nos dias 28 e 29 de novembro, inaugurando a série de eventos A Abertura dos Portos Brasileiros – 200 Anos de História, promovida pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP) e pela Associação Nacional dos Usuários de Transporte de Cargas (Anut) – entidade que reúne de siderúrgicas e petroquímicas a produtoras do agronegócio –, um encontro reuniu figuras estelares do mundo acadêmico e político luso-brasileiro para discutir o impacto provocado nos dois países pela vinda de dom João VI para o Brasil.
O brasilianista britânico Kenneth Maxwell falou, por exemplo, sobre as conseqüências econômicas da abertura dos portos, enquanto o historiador paulista Carlos Guilherme Mota discorreu sobre o universo político luso-brasileiro naquele período. Já as imbricações existentes entre economia, política e sociedade na passagem do século 18 para o 19 foram o tema desenvolvido pelos professores portugueses José Luís Cardoso e Eugénio dos Santos. Um dos moderadores do encontro foi o diplomata e ex-ministro da Fazenda brasileiro Rubens Ricupero, outro o engenheiro português Luis Valente de Oliveira, que foi ministro de várias pastas em Portugal (como Transportes, Planejamento e Habitação) e costuma representar aquele país em comissões técnicas da União Européia.
O projeto da Fecomercio/Anut pretende, porém, ser mais do que um espaço para a discussão do legado político, econômico e cultural de dom João VI. Na parte da programação prevista para este ano (o projeto vai até o dia 1º de março), a idéia é também colocar em debate a gestão portuária brasileira, bastante deficiente, na atualidade, e próxima de um apagão. Sem muito exagero, pode-se dizer que os portos brasileiros estão hoje, relativamente, em estado pior do que na época de dom João. E têm mesmo por que merecer uma atenção especial, neste ano em que não faltarão pretextos para falar deles.
Lentidão
Para se ter uma idéia, o tempo médio de espera de navios de contêineres para atracar no país aumentou 78% entre 2005 e 2006 – de 13 para 20 horas. No porto de Vitória, chegou a 55 horas. A ineficiência e a burocracia fazem com que a exportação de um produto em contêiner pelo porto de Santos (SP), o maior do país, demore em média 18 dias. Em Hong Kong, no sul da China, esse prazo é de cerca de 5 dias.
As empresas brasileiras já estariam arcando com um custo adicional de US$ 480 milhões por ano, só pelo tempo que o dinheiro fica imobilizado em mercadorias. A esqualidez dos investimentos explica esse cenário. Entre 1995 e 2005, a média de recursos públicos aplicados em melhorias nos portos brasileiros foi de R$ 187,8 milhões por ano. Enquanto entre 2001 e 2005 o governo americano destinou à área US$ 9,4 bilhões, o Brasil investiu, no mesmo período, um total de apenas US$ 371 milhões.
Além do setor portuário, deverão participar dos trabalhos todos os setores envolvidos em logística: transporte rodoviário, ferroviário, aéreo, despacho aduaneiro e empresas exportadoras e importadoras, dentre outros. A programação do projeto compreende ainda uma exposição histórica itinerante, a edição de livros comemorativos e a montagem de um salão onde empresas apresentarão seus produtos e serviços de logística. Está previsto também um concurso de monografias e a entrega de selos de menção honrosa.
Ao mesmo tempo, outras homenagens a dom João estarão se desenrolando pelo país. No Rio de Janeiro, onde a corte portuguesa se instalou em 7 de março de 1808, depois de desembarcar em Salvador em janeiro daquele ano, estão sendo preparadas comemorações de sabor mais popular, além dos vários eventos e seminários planejados por museus e instituições criados a partir da chegada de dom João, como o Museu Histórico Nacional.
A prefeitura da cidade e a Liga das Escolas de Samba fecharam um acordo de tema único – Dom João e a Abertura dos Portos – para os desfiles das escolas do Grupo Especial em 2008. Está prevista ainda uma encenação da chegada da família real ao Rio de Janeiro, na Praça 15.
Várias outras cidades brasileiras já garantiram que não deixarão passar o bicentenário em branco. Em Salvador, onde dom João determinou a abertura dos portos, em 28 de janeiro de 1808, seis dias após o desembarque no Brasil, a programação também deverá ser extensa e incluir festejos voltados para o grande público. As cidades médias com longa história portuária estão igualmente com a agenda carregada de homenagens a dom João. Solenidades estão previstas por toda a extensa costa brasileira, do porto de Natal (RN) ao de Rio Grande (RS).
"O Brasil pode transformar as comemorações dos 200 anos da vinda de dom João num marco da retomada de sua identidade, do seu desenvolvimento como povo, e os brasileiros já perceberam isso", diz José Ribamar Miranda Dias, vice-presidente da Anut. "O ano de 1808 foi o que teve, até hoje, a maior significação política, econômica e social na história brasileira. Os festejos nos abrem uma grande chance para repensar esse legado e o que fazer com ele daqui para a frente."
Selos
O curioso é que a chegada da corte ao Brasil, que está provocando tanta euforia entre os brasileiros de dois séculos depois, jamais foi um episódio muito destacado no calendário cívico do país. Embora onipresente nos livros do ensino fundamental, o 22 de janeiro, dia do desembarque do regente em Salvador, por exemplo, sequer é feriado nacional, ao contrário do 7 de setembro (data da Independência) e do 15 de novembro (proclamação da República).
O 28 de janeiro, dia da Abertura dos Portos, tido agora como fundamental, mereceu até hoje, no máximo, a publicação de selos comemorativos pela Empresa dos Correios e Telégrafos. Tampouco há registros de comemorações mais ruidosas em 1908, o ano do centenário da chegada da corte ao Brasil.
A saga da família real portuguesa também nunca foi grande fonte de inspiração para escritores e artistas brasileiros, embora os trabalhos acadêmicos sobre o assunto sejam numerosos. O filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, da paulistana Carla Camurati, de 1995, que narra as peripécias do casal real português de um ponto de vista entre sarcástico e condescendente, é a única obra realmente popular sobre a vinda de dom João VI ao Brasil. Bem-feito e engraçadíssimo, o filme foi grande sucesso de bilheteria.
Provavelmente, foi a percepção dos brasileiros desse acontecimento histórico que se modificou, já que nenhum fato novo sobre a vinda da família real para o Brasil foi descoberto nos últimos anos, ou pelo menos nenhum capaz de mudar radicalmente essa história. O Brasil de 2008 – que se quer moderno, competitivo e globalizado – parece ter enfiado na cabeça que nasceu, na verdade, em 1808, com a abertura dos portos e com o projeto político-econômico modernizador de dom João. Tanto o momento presente como aquela época são vistos como períodos de um salto tardio na contemporaneidade, com todos os perigos implícitos em aventuras sociais desse tipo.
De fato, em evidente crise de identidade por causa dos rigores da globalização, na qual mergulhou de forma inesperada e algo espalhafatosa no início da década de 1990, o Brasil é hoje um país quase "refundado", para quem o conheceu, por exemplo, em 1980. Essa experiência – a mudança do dia para a noite de todos os paradigmas políticos, econômicos e sociais, no sentido da abertura para o mundo exterior – não tem paralelo na história de mais de 500 anos do país. A não ser no período de dom João VI.
Na década de 1990, o Brasil viria a se tornar, rapidamente, um grande importador de mercadorias e um dos maiores exportadores globais de grãos e de minérios, e hoje já pouco lembra o país semi-autárquico de boa parte do século 20, que fazia questão de produzir tudo o que consumia no próprio território, de bens de capital a computadores, vinhos e uísque. E que tinha uma infra-estrutura relativamente eficiente para as necessidades econômicas de então, centradas em boa parte no mercado interno.
Nada a ver com o país de hoje e, muito menos, com o Brasil de dom João, que teve em comum com o momento atual, além de uma liberdade comercial obstada pela insuficiência da rede de transporte terrestre e marítima, a predominância de um sistema político algo frouxo, no qual as trocas de favores eram praticadas de maneira mais ou menos aberta. O período de dom João se tornou um espelho perfeito – senão o único – para que o país de agora veja as próprias qualidades e defeitos, se console, respire fundo e siga adiante.
"Na verdade, a experiência da abertura dos portos devia levar os brasileiros a analisar o que realmente ganharam com a abertura comercial da década de 1990", pondera o economista Adriano Biava, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). "É claro que o Brasil não poderia ter ficado de fora da globalização econômica, nenhum país conseguiu isso. Mas a maneira como nela se inseriu poderia, sim, ser objeto de uma ampla discussão."
Para Biava, talvez o único ponto realmente comum entre o ato de dom João em 1808 e a abertura comercial da década de 1990 seja, além da inserção mais profunda do país no mercado mundial – que forçou o Brasil, nos dois períodos, a ser mais produtivo e competitivo –, o prejuízo que as duas medidas acarretaram para a indústria nacional.
"Em 1808, o espaço dado para as mercadorias estrangeiras, principalmente inglesas, atrasou em várias décadas a industrialização do país", lembra Biava. "Hoje, o que se vê é a desmontagem de setores industriais inteiros, como o têxtil, por causa das importações tanto de máquinas como de produtos finais. Estamos voltando a ser exportadores apenas de grãos e de minérios, que no fundo são somente terra com pequeníssimo valor adicionado", diz.
De fato, está havendo visível retração do espaço da indústria na economia brasileira. O setor, que era responsável por 37% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional nos anos 1970, hoje responde por menos de 30%, dos quais apenas 18% advindos da indústria manufatureira.
Para Roberto Nicolsky, diretor-geral da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec), os dois processos de abertura, por serem pouco voltados ao desenvolvimento da indústria nacional, também trouxeram atraso na área de tecnologia. "Perdemos o bonde da Revolução Industrial no começo do século 19 e agora estamos sendo alijados da revolução tecnológica que varre o mundo, já que passamos a importar quase tudo de alto valor agregado que consumimos", adverte.
Ele faz questão de explicitar: o déficit comercial brasileiro na área eletroeletrônica saltou de US$ 8 bilhões em 2006 para projetados US$ 10 bilhões em 2007. O Brasil já quase nada produz nessa área. Os artigos farmacêuticos, que desde o final da 2ª Guerra Mundial (1939-45) foram quase sempre fabricados internamente, vêm também, atualmente, em boa parte de fora – o déficit comercial do setor é hoje de US$ 2 bilhões. As importações somavam apenas US$ 100 milhões há dez anos.
Já o déficit no setor de máquinas e equipamentos, de US$ 850 milhões em 2006, deverá alcançar US$ 2,5 bilhões em 2007. As indústrias brasileiras de bens de capital já perderam, de alguns anos para cá, 5% do mercado interno para os concorrentes estrangeiros, embora as exportações tenham parcialmente contrabalançado essa queda.
"O ideal seria que nos mantivéssemos abertos, mas passássemos a investir cada vez mais em tecnologia, e também no fortalecimento da indústria nacional", afirma Nicolsky. "Para qualquer país, uma abertura comercial só é interessante se o torna competitivo e tecnologicamente independente. Seria ótimo se aproveitássemos as comemorações dos 200 anos da abertura dos portos para rediscutir essa questão."
A reconstituição do império no Brasil
É provável que a herança deixada por dom João seja não apenas elogiada, mas também colocada na balança no transcorrer de 2008, e que a visão oficial que predomina no Brasil sobre o papel político do regente no processo de independência – assim como no próprio despertar econômico do país, que então saiu da condição de colônia sem direito de comerciar com outros países além da metrópole, e até de possuir uma mísera indústria – seja matizada com tons um pouco mais críticos.
De fato, as recentes interpretações da historiografia brasileira (e mesmo portuguesa) sobre esse acontecimento têm ido, de certa forma, contra a leitura tradicional do período. Segundo os conceitos que desde o início perpassaram os livros de história do Brasil, foi se formando no país, ao longo do século 18, uma identidade nativista, que se transformou lentamente em nacionalista, do que dariam conta as várias revoltas do período, como a malsucedida Inconfidência Mineira, que culminou no enforcamento de Tiradentes, no Rio de Janeiro, em 1792.
Para essa corrente oficial, a vinda de dom João teria tido papel "catalisador" nesse processo, que culminaria na proclamação da Independência em 1822. O orgulho dos brasileiros por ter em seu território o próprio regente, a abertura dos portos e a autorização para a criação de indústrias, os poucos, mas precisos, investimentos em infra-estrutura, as várias instituições por ele implantadas (exército e marinha, universidades, Banco do Brasil, Casa da Moeda, Imprensa Régia, Jardim Botânico etc.), os melhoramentos urbanos no Rio de Janeiro – feitos, a bem da verdade, às custas de impostos cobrados de todos os brasileiros de então – teriam adubado o terreno de onde brotaria a independência.
Enfim, para essa corrente, primeiro teria surgido a nação brasileira e, depois, em 1822, o Estado brasileiro. Um projeto quase consciente e que expressou uma vontade do povo brasileiro, assumido, não se sabe bem por quê, pelo regente português dom João.
"Na verdade, essa é uma narrativa que explica a história de trás para a frente. No caso de dom João, é como se ele tivesse planejado tudo, de modo que alguns anos depois o Brasil se tornasse independente", critica Lucília Siqueira, professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Essa visão desconsidera o que os atores históricos do período pensavam a respeito do que faziam e pretendiam, é como se eles raciocinassem com a nossa cabeça."
Lucília afirma, para início de conversa, que a identidade das elites que existiam no Brasil, à época, era, ao contrário do que diz a história oficial, bastante sintonizada com o antigo regime representado por dom João – a tal ponto que, como o Brasil não existia como corpo político, os brasileiros consideravam-se de nacionalidade portuguesa: "Os ‘brasileiros’, entre si, se identificavam como paulistas, fluminenses, baianos e, quando encontravam um argentino, definiam-se como portugueses, assim como os argentinos se viam como espanhóis. Era como se dissessem: a minha pátria é a Bahia, a minha nação, Portugal".
De acordo com Lucília, com a invasão napoleônica em 1807, dom João teria vindo para a parte mais rica do império português não só porque os ingleses assim quiseram – como reza a linha mais "à esquerda" da cartilha oficial –, mas também porque temia que, caso permanecesse em Portugal, a Inglaterra invadisse e dominasse o Brasil. Segundo a professora, há provas desse temor. Em 1807, antes da invasão francesa, o conde dos Arcos, vice-rei do Brasil, foi orientado, por exemplo, a fortificar os portos brasileiros contra um eventual ataque de navios de guerra britânicos.
Guilhotina
Para essa moderna historiografia, o projeto de dom João – pois havia mesmo um – era a criação de um certo império luso-brasileiro, uma idéia bem mais antiga, do século 17, mas que foi "formatada" pelos intelectuais da chamada Geração de 1790, que reunia estudantes portugueses e brasileiros residentes nas universidades de Coimbra, em Portugal, e de Montpellier, na França. A maioria deles eram ex-radicais apavorados com o que aconteceu na França após a revolução burguesa de 1789: terror, guilhotina, caos político, guerras sem fim.
Importantes ministros portugueses de dom João no Brasil – como Rodrigo de Sousa Coutinho e Thomas Villanova – eram dessa geração. Alguns famosos "rebeldes" brasileiros – ou que passaram para a história como tal, como o jornalista Hipólito José da Costa – também o eram. Todos compartilhavam esse mesmo credo, de um império que reunisse Portugal e Brasil como partes do mesmo todo, e que esse império se desenvolvesse economicamente enquanto tal.
Com dom João no Brasil, o projeto estava dando tão certo que em 1815 surgiria o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves – na verdade, a criação do Reino Unido foi também uma resposta portuguesa ao Congresso de Viena, que reuniu as potências européias vencedoras de Napoleão em 1814-15, e não admitia o fato de um país europeu ter como capital uma das cidades do império colonial. De qualquer forma, desde então, as províncias de Beira, em Portugal, e da Bahia ou Minas Gerais, no Brasil, por exemplo, passaram a ter peso igual dentro do império português.
"De fato, as elites brasileiras da época, se não se sentiam intrinsecamente portuguesas, consideravam-se de matriz européia, não brasileira ou latino-americana, e por extensão não possuíam qualquer sentimento nativista", explica Maria Aparecida Araújo, consultora carioca de comportamento social e empresarial. "No fundo, essa mentalidade manteve-se, claro que de forma atenuada, até os anos 1980. Só com a pressão do novo empresariado que surgiu naquela época, que já não tinha como se ancorar no nome ou nas posses da família e sim no próprio trabalho, é que essa educação ‘à continental’, como se dizia antigamente, começou a perder espaço."
Foi a Revolução Liberal de 1820, capitaneada pela burguesia mercantil da cidade portuguesa do Porto, que fez o projeto imperial luso-brasileiro desandar. Na época, os liberais eram "centralistas", e os defensores do antigo regime (como as elites brasileiras e portuguesas) eram "federalistas". Estes últimos iriam perder seus privilégios com o predomínio liberal. A revolução foi tão intensa que obrigou o próprio dom João, tornado rei desde a morte de sua mãe, a rainha Maria I, a Louca, em 1818, a abandonar temporariamente seus planos e voltar para Portugal, o que aconteceu em 1821.
Os brasileiros que participaram da Assembléia Constituinte que se seguiu à Revolução do Porto (eles tinham esse direito, na condição de representantes provinciais) lutaram como puderam para manter seus privilégios regionais – tarifários, administrativos e tributários. Não o conseguiram. No começo de 1822, convenceram o futuro dom Pedro I a não obedecer à corte e permanecer no Brasil (o Dia do Fico). Em setembro daquele mesmo ano, também o persuadiram a proclamar a Independência, mantendo o Brasil dentro dos marcos do antigo regime.
Um amplo acordo das elites regionais com o novo imperador fez com que o país conseguisse permanecer unido e não se fragmentasse, como ocorreu na América espanhola – apenas a elite baiana permaneceu recalcitrante durante algum tempo. Esse processo de independência – ou, se bem lido, de mero afastamento de Portugal – só terminaria em 1831, com a abdicação de dom Pedro I (que em seguida assumiria o trono português como dom Pedro IV) e a ascensão dos regentes, como o padre Feijó, que fariam surgir um Brasil mais próximo do atual do que de Portugal.
"Sem dúvida, a grande contribuição de dom João foi, além de ter modernizado social e economicamente o país, a de conseguir manter o Brasil unido em torno da monarquia", afirma o coronel Geraldo Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "As pessoas riem quando descobrem que dom João trocava títulos de nobreza por obras ou dinheiro. Não percebem que ele, assim, criou uma teia de solidariedade monárquica, já que os novos nobres tinham de ser fiéis à Coroa, e não aos próprios interesses regionais, para manter seus privilégios."
Para a nova historiografia, o projeto econômico de dom João VI para o Brasil levava em conta não só a criação do império luso-brasileiro como a manutenção do antigo regime. Participante marginal do círculo econômico inglês desde 1703, quando do Tratado de Methuen – um acordo leonino que obrigou Portugal a desmontar sua nascente indústria têxtil em troca da venda de vinho, motivo de um endividamento que não conseguiu sanear nem com o ouro das Minas Gerais –, o país de dom João usou o projeto imperial luso-brasileiro para tentar adentrar no novo capitalismo industrial sem abrir mão inteiramente do mercantilismo monopolista que então praticava. Esgotado economicamente fazia décadas, Portugal pensava em usar o Brasil como plataforma dessa estratégia.
A abertura dos portos brasileiros, ainda em 1808, assim como a concessão de liberdade para a montagem de indústrias na antiga colônia, teria sido um fruto dessa decisão. Essa estratégia de internacionalização funcionou apenas em parte. Se no primeiro ano, só no porto do Rio de Janeiro, entraram cerca de 90 navios, a mesma quantidade dos que aportaram na Bahia e no Maranhão, a opção pela industrialização acabaria prejudicada pelas conseqüências desse sucesso.
O mercado brasileiro se viu abarrotado de mercadorias, principalmente inglesas, algumas delas completamente inúteis, como patins de gelo e peixe salgado, chapéus e espartilhos, caixões mortuários e queijos gordurosos. Mas também havia muitos produtos úteis, como pregos, ferragens, tintas, resinas diversas e cordoalhas. De outro lado, as exportações brasileiras não cresciam na mesma proporção. A Inglaterra não adquiria produtos brasileiros, nem os agrícolas, pois suas colônias já os produziam. A nascente indústria brasileira morreu ali, por falta de mercados, renascendo apenas, como força econômica, um século e meio depois, nas décadas de 1940 e 50.
"A verdade é que o projeto português para o Brasil acabou forçando a ex-colônia a suceder a metrópole no processo de dependência da Inglaterra", diz Fabrício Polido, advogado e professor de direito internacional da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), de São Paulo. "O Brasil pós-1808 sequer se tornaria um grande parceiro comercial das chamadas nações amigas, porque ficou efetivamente ocupado com essa herança portuguesa. Hoje, o Brasil pode até continuar dependente das nações mais industrializadas, mas pelo menos existem instituições no sistema econômico internacional que exigem o cumprimento de obrigações multilaterais, algo impensável naquela época."
Pouco restou do casario ocupado pela corte
Fisicamente, pouco resta da presença de dom João VI no Rio de Janeiro. Dos cerca de 150 imóveis que serviram de moradia aos membros da corte portuguesa registrados no Arquivo Nacional – na verdade, os mais de 10 mil membros da comitiva chegaram a ocupar cerca de 2 mil casas – apenas oito continuam de pé. As residências estavam entre as mais nobres da cidade na época, e foram desapropriadas pelo regente.
Dos edifícios remanescentes, somente o Paço Imperial e a Quinta da Boa Vista, que serviram de residência à família real e viraram museus, recebem verbas públicas para preservação. Mesmo assim, o estado de conservação da Quinta da Boa Vista, por exemplo, é tido como "lamentável" pelos especialistas.
As outras casas, quase todas localizadas no centro da cidade e hoje pertencentes a proprietários privados, estão em situação ainda pior. Com a estrutura comprometida, mais da metade corre o risco de desabar. A oferta da prefeitura de isentar do pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) os proprietários que investirem em restauração e preservação até agora não surtiu efeito.
Deve-se o desaparecimento da maior parte dos imóveis que serviram de residência à corte principalmente às mudanças arquitetônicas que transfiguraram o centro do Rio de Janeiro no primeiro quartel do século 20. Já naquela época, muitos proprietários derrubaram as casas e ergueram novas, mais "modernas", no lugar. Outros as transformaram em estabelecimentos comerciais.
As construções não seguiam um estilo arquitetônico específico. Eram bastante rústicas e geralmente de madeira, com esquadrias de cores vibrantes e portas grandes e largas – os moradores desapropriados por dom João quase sempre usavam o andar térreo para atividades comerciais, uma vocação que o centro do Rio de Janeiro já seguia naquela época.
A maioria dos moradores não chegou a receber indenização de dom João, já que a corte chegara ao Brasil financeiramente depauperada. Mas, segundo a professora de história Lucília Siqueira, da PUC de São Paulo, esse dinheiro não fez muita falta para boa parte dos desapropriados, já que a maioria era constituída por pessoas de posses.
"Elas de modo algum ficaram ao relento, como se pensa habitualmente, já que quase todas também possuíam uma chácara ou uma segunda casa", explica a professora. "Na verdade, muitos proprietários se sentiram envaidecidos por ter sua casa escolhida para abrigar um membro da corte. Era um sinal de distinção."
De acordo com Lucília, a interpretação dada pela população carioca ao brasão com as iniciais "PR" ("Príncipe Regente"), que era colocado nas portas das casas desapropriadas, e que passou a ser conhecido como "ponha-se na rua" ou "propriedade roubada", foi mais uma reação bem-humorada do povo da cidade do que uma expressão de revolta dos ricos que antes as ocupavam.
Dom João foi "agente civilizador"
As razões atribuídas pela história oficial à vinda de dom João e sua corte para o Brasil são bem conhecidas. Alguns anos depois da Revolução Francesa (1789), Napoleão Bonaparte sobe ao poder e dá início a sua política expansionista, desafiando a Inglaterra, já então a maior potência comercial e industrial do planeta.
Vitorioso em terra, onde esmaga exércitos um após outro, mas incapaz de impor seus termos à chamada "Rainha dos Mares" depois da destruição da armada franco-espanhola em Trafalgar, em 1805, Napoleão decreta o Bloqueio Continental, proibindo as nações européias de negociar com os ingleses. "Vamos arruinar essa nação de merceeiros", promete o imperador francês. Aliado histórico da Inglaterra, Portugal desobedece tal determinação. E o país é invadido pelas tropas francesas em 1807.
Os ingleses aconselham o regente português – que então exerce o poder em nome de sua mãe, dona Maria I, apelidada "a Louca" (retrato ao lado) – a fugir para o Brasil, de modo a continuar a luta desde a América. O conselho é acatado na última hora por dom João, e o embarque se dá com os franceses já a caminho de Lisboa. É uma fuga de verdade, que até os comentaristas generosos classificam de "desabalada".
Mais de 10 mil membros e funcionários da corte acompanham dom João. Levam para as 36 embarcações reunidas no porto pelos ingleses tudo o que podem carregar: móveis, roupas, peças de ouro e prata, animais de estimação, dinheiro, enquanto o pequeno reino, a essa altura, desaba no caos.
O resto da história também se conhece. Mal aportando em Salvador, em janeiro de 1808, dom João promove, para continuar relacionando-se comercialmente com o mundo, a abertura dos portos da colônia a todas as nações amigas, restringindo velhos monopólios e reduzindo as tarifas alfandegárias de 48% para 24% – que os ingleses, então já verdadeiros tutores da corte, conseguiriam baixar para 15% para seus produtos, valor menor do que o cobrado dos próprios portugueses, 16%. A taxa depois foi equiparada.
Fiel à promessa de continuar a guerra contra Napoleão, dom João ordena a invasão da Guiana Francesa, que é ocupada por tropas luso-brasileiras. Com o estabelecimento da corte no Rio de Janeiro, a cidade torna-se a sede do império português, e dom João tem de organizar toda a administração brasileira. Cria os ministérios da Guerra, da Marinha e da Fazenda, instala serviços auxiliares indispensáveis ao funcionamento do governo, como o Banco do Brasil, a Casa da Moeda, a Imprensa Régia, a Junta Geral do Comércio e a Casa de Suplicação (Supremo Tribunal). Para oxigenar a economia, o regente também revoga a proibição de abertura de indústrias, que surgem rapidamente.
A vinda da corte modifica os usos e costumes brasileiros. Depois do choque de ver desembarcar em sua pacata e acanhada cidade uma leva de mais de 10 mil cortesãos portugueses – o Rio de Janeiro tinha então 60 mil habitantes, mais da metade deles constituída de escravos –, os cariocas têm ainda de passar pelo dissabor de perder parte de suas casas para os recém-chegados. Para abrigar a corte, dom João desaloja cerca de 2 mil famílias, a maioria das quais jamais veria a cor do dinheiro da desapropriação. Em compensação, a cidade recebe muitas melhorias e ganha um certo ar de sofisticação. As mulheres cariocas tentam imitar em tudo as fidalgas portuguesas, nem sempre com sucesso.
Dom João também trata de dotar o Rio de Janeiro das comodidades que a corte encontrava em Lisboa. Doa à cidade um sofisticado Jardim Botânico, encomenda obras a artistas que com ele vieram, atrai outros, cria escolas de medicina, de direito e de navegação. Em menos de dez anos, em torno da nova capital do império, a colônia – que antes de dom João era pouco mais que uma área desprovida de tudo o que era considerado civilizado naqueles tempos – já pode ser comparada a uma cidade média européia.
O estabelecimento do Reino Unido e a elevação do Brasil a um status equivalente ao de Portugal concedem maturidade à ex-colônia. O intercâmbio comercial proporcionado pela abertura dos portos aumenta cada vez mais, o país se civiliza, toma pé da sua própria situação no mundo. Começa a dignificar seus heróis, como Tiradentes. E olha para os Estados Unidos como um exemplo a ser seguido nas Américas – pelo menos no sentido econômico e de desdém pela Europa farta de guerras. Estavam lançadas as bases para a declaração da Independência.
Revista Problemas Brasileiros
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