por Matias Spektor
A “rivalidade emergente” é uma das teses mais arraigadas da mitologia brasileira em política externa. Ela prega que o processo de modernização econômica do Brasil levou os Estados Unidos a enxergarem no país um desafio real ou potencial. O resultado dessa leitura teria sido uma estratégia americana desenhada para tolher, embotar e mitigar o desenvolvimento nacional brasileiro. Forças estruturais empurrariam os Estados Unidos a fazer o possível para manter o Brasil enquistado na periferia do sistema internacional. Ecoando a teoria da dependência, essa perspectiva sustenta que a industrialização num país periférico gera reação adversa por parte dos países centrais.
A “rivalidade emergente” não é a única leitura existente das relações brasileiro-americanas. Mas representa a principal tentativa de interpretar o vínculo entre os dois países em uma perspectiva de longo prazo. Ela tem grande apelo entre as elites brasileiras, predomina nas salas de aula das principais universidades do país e dá o tom do concurso de ingresso ao Instituto Rio Branco, a academia diplomática. Tendo em vista o histórico de dominação estrangeira na América Latina, talvez seja natural que uma tese dessa natureza seja abraçada como paradigma.
Entretanto, diante da verdadeira enxurrada de documentos recém-abertos para a pesquisa em arquivos diplomáticos do Brasil, Estados Unidos, América Latina e Europa, a “rivalidade emergente” não resiste ao escrutínio de um olhar inquisitivo.
As novas fontes de arquivos multinacionais são primorosas porque permitem estudar a nuance e ambigüidade que marcaram o vínculo do Brasil com a maior potência do sistema internacional. Sem dúvida, os documentos mostram a extensão e profundidade da hegemonia americana. Mas revelam também o grau em que essa hegemonia foi essencial para criar um ambiente no qual o Brasil pôde viver seu fabuloso processo de modernização conservadora. As fontes ainda iluminam as recorrentes, mas fracassadas tentativas americanas de fortalecer o Brasil. E comprovam a rica variação das respostas brasileiras ao desafio de viver nas bordas do ocidente liberal.
A nossa ignorância sobre o principal vínculo internacional do país ainda é vasta. O exame cuidadoso da história agora é possível graças a condições ímpares de acesso à informação. Esta é a hora de arregaçar as mangas, visitar os arquivos e oferecer uma narrativa sofisticada, atenta aos detalhes, e alerta para os tons de cinza. Somente assim será possível corrigir crenças equivocadas e chegar a uma avaliação mais sóbria das escolhas realizadas.
À medida que se multiplicam os desafios de política externa, construir as melhores interpretações possíveis sobre os porquês da relação com Washington é uma das tarefas mais urgentes de nossa geração.
Matias Spektor é Coordenador do Centro de Estudos Internacionais da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (matias.spektor@gmail.com).
Meridiano 47
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