Pesquisa brasileira no continente gelado
Apesar das dificuldades, o país marca presença na Antártida
EVANILDO DA SILVEIRA
A crescente preocupação com o meio ambiente tem despertado a atenção do mundo para um continente distante, deserto e frio. Embora abrigue apenas 80 mil habitantes temporários, a maioria pesquisadores, a Antártida poderá ser decisiva para o futuro da humanidade. Se o aquecimento global que o planeta começa a viver levar ao derretimento de todo o seu gelo, o nível dos oceanos poderá subir até 60 metros, o que tornaria a vida do homem na Terra bem mais difícil. Mas não é preciso que essa catástrofe ocorra – e é pouco provável que venha a acontecer de fato – para que se constate a importância dessa região. Ela tem papel fundamental nas correntes marítimas e no clima de todo o mundo, que por sua vez influenciam, por exemplo, a riqueza marinha e o desempenho agrícola.
São 14 milhões de km2 de terra – uma vez e meia a área do Brasil – quase totalmente cobertos por uma camada de gelo de 2,1 km de espessura em média (mas que em alguns pontos pode chegar a quase 5 km), e mais 20 milhões de km2 de mar congelado no inverno e 1,6 milhão no verão. "Essa imensidão gelada é um dos principais controladores do sistema climático terrestre e do nível dos mares, além de arquivar em suas camadas a evolução e eventos da atmosfera do planeta, bem como o registro da poluição causada pelo homem no último século", diz o glaciólogo Jefferson Cardia Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), experiente pesquisador das paragens geladas do pólo sul. "Saber como o ambiente antártico afeta o Brasil é tão importante quanto estudar a Amazônia", diz ele.
Um exemplo das pesquisas desenvolvidas na região é o trabalho que Simões realizou, entre os dias 15 de novembro e 22 de dezembro de 2007, num dos lugares mais inóspitos da Antártida, o platô Detroit, a 2 mil metros de altitude. À frente de um grupo que contou com nove cientistas do Brasil, do Chile e dos Estados Unidos, ele conseguiu o mais longo testemunho de gelo (cilindro obtido a partir de perfurações realizadas no Ártico ou na Antártida), de uma das regiões mais sensíveis do mundo às mudanças climáticas. "Ele mede 133 metros e foi retirado por nós do topo da península Antártica, onde a temperatura atmosférica era de -23°C durante a noite, com sensação térmica de -37°C", conta Simões. "Esse cilindro fornecerá dados sobre as variações do clima e mudanças na química atmosférica ao longo dos últimos 200 anos. Um dos estudos tentará detectar o transporte de poluentes gerados pelas queimadas no Brasil para a Antártida."
Esse trabalho faz parte da XXVI Operação Antártica (Operantar) do Brasil, que começou no dia 7 de outubro do ano passado com a partida do Navio de Apoio Oceanográfico Ary Rongel, do Rio de Janeiro, e deverá se estender até setembro deste ano. Durante esse período, cientistas de várias instituições do país estudarão a atmosfera, o solo, o gelo, as águas e as formas de vida daquela vastidão gelada e deserta. São 19 projetos de pesquisa nas áreas de meteorologia, geologia, oceanografia, biologia, astrofísica e geomagnetismo. Entre eles, haverá estudos sobre a atmosfera antártica e suas conexões com a América do Sul, a evolução da biodiversidade local, variações na extensão das geleiras e a vida marinha.
O objetivo das pesquisas é entender como funciona aquele pedaço do mundo e sua influência no clima do restante do planeta, particularmente no Brasil, e conseqüentemente na sociedade e na biodiversidade da Terra. Elas fazem parte do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), criado pelo decreto nº 86.830, de 12 de janeiro de 1982, e que hoje é elaborado e implementado pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Cirm). O Proantar visa ampliar o conhecimento sobre os fenômenos que ocorrem na Antártida e sua repercussão no Brasil e no mundo. Ele está dividido em duas partes: logística e científica.
A primeira é de responsabilidade da marinha do Brasil, que se encarrega da operação do navio Ary Rongel, da manutenção da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), da instalação e manutenção de refúgios e acampamentos e do transporte de pesquisadores, para o qual conta com a colaboração da Força Aérea Brasileira (FAB). A segunda parte está a cargo do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que seleciona, financia e acompanha os trabalhos. O Proantar compreende pesquisas científicas e atividades correlatas que o Brasil desenvolve na região, incluindo o continente, as ilhas antárticas e subantárticas e o oceano Austral. Para levar adiante esse trabalho, foram desembolsados cerca R$ 380 mil por ano, entre 2004 e 2007. Além disso, a lei orçamentária de 2008 prevê investimentos de R$ 960 mil no Proantar.
Ano Polar Internacional
Alguns dos projetos da XXVI Operantar integram a contribuição do Brasil ao quarto Ano Polar Internacional (API), um programa organizado pelo Conselho Internacional para a Ciência (ICSU, na sigla em inglês), em conjunto com a Organização Meteorológica Mundial (WMO), que se estenderá de março de 2007 a março de 2009. Trata-se de um grande esforço mundial de pesquisa, que reúne instituições de 63 países, com o objetivo de estudar as mudanças ambientais nos pólos e avaliar suas conseqüências socioeconômicas. No total, são 227 projetos científicos, dos quais cerca de 50 da América Latina e, desses, dez do Brasil.
O API 2007-2009 durará dois anos, de modo a abranger dois verões em cada região polar, permitindo assim que se façam pesquisas de forma coordenada nos dois pólos. O primeiro API aconteceu em 1882-1883, o segundo em 1932-1933 e o terceiro em 1957-1958, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o Ano Geofísico Internacional. O atual é o primeiro de que o Brasil participa efetivamente. "O MCT vai liberar R$ 9,3 milhões provenientes dos Fundos Setoriais para financiar pesquisas durantes os dois anos do API", explica Cordélia Soares Machado, coordenadora para Mar e Antártica da Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCT (Seped/MCT).
De acordo com ela, a atuação direta de pesquisadores brasileiros de mais de 30 universidades públicas e privadas e de centros de pesquisa no API é um dos frutos do Proantar, que comemora, em 2008, 26 anos consecutivos de atuação brasileira naquela região. "Esse programa está ajudando na conscientização pública e educação sobre a relevância da Antártida no planeta, em especial para a América do Sul e no cotidiano socioeconômico brasileiro", diz.
Descoberta oficialmente em 1818, pelo capitão inglês William Smith, que encontrou as ilhas Shetland do Sul e a Terra de Graham, defronte ao estreito de Drake, a Antártida é um continente de extremos. É o mais isolado, ventoso, seco e frio – contém 90% de todo o gelo do planeta. A temperatura é mais elevada no litoral, onde varia de 0ºC, no verão, a -29ºC, no inverno. Na região central, mais fria, essa variação vai de -40°C a -68°C. Com esse rigor, não é de estranhar que ele só viesse a ser conquistado quase um século depois de ter sido descoberto. No dia 14 de dezembro de 1911, o norueguês Roald Amundsen e seus homens tornaram-se os primeiros a pôr os pés no pólo sul geográfico.
A história das pesquisas científicas naquela parte do mundo é mais recente, no entanto. Elas começaram a se tornar sistemáticas a partir de 1959, quando 44 países assinaram o Tratado da Antártida, que regulamenta todas as atividades no continente. O documento, que entrou em vigor em 1961, estabelece que ele deve ser usado apenas para fins pacíficos e de cooperação internacional, para o desenvolvimento de pesquisas científicas. Uma das exigências para que um país seja membro consultivo do tratado, isto é, que tenha direito a voto, é a realização continuada de atividades científicas naquela região. Em 1991, o tratado foi reforçado com a assinatura do Protocolo de Madri, que entrou em vigor em 1998 e estabelece que aquele continente é uma zona desmilitarizada e na qual só podem ser realizadas pesquisas científicas.
Direito a voto
O Brasil, para ter voto e resguardar eventuais direitos sobre aquele território, vem realizando ali pesquisas regulares. O país assinou o Tratado da Antártida em maio de 1975, como membro aderente, mas só iniciou seus estudos lá no verão austral de 1982/1983, com a Operação Antártica I, realizada a bordo do Navio de Pesquisa Oceanográfica Barão de Teffé, da marinha do Brasil, e do Navio Oceanográfico Professor W. Besnard, da Universidade de São Paulo (USP). Foram desenvolvidos trabalhos nos campos da meteorologia, da oceanografia física e da biologia marinha. O principal resultado dessa primeira expedição foi o reconhecimento internacional e a aceitação do Brasil, em 12 de setembro de 1983, como membro consultivo do tratado.
A partir daí, a presença brasileira no continente só tem crescido. Um marco disso foi a inauguração, em 6 de fevereiro de 1984, da EACF, na baía do Almirantado, na ilha Rei George, no arquipélago das Shetland do Sul, ao norte da península Antártica. Inaugurada com oito módulos, semelhantes a contêineres, hoje a EACF tem 62. São instalações relativamente confortáveis, com compartimentos de tamanhos variados, como banheiros e alojamentos que podem acomodar até 58 pessoas, além de sala de estar e jantar, copa e cozinha, biblioteca, sala de computadores, enfermaria e um pequeno centro cirúrgico, sala de ginástica, oficinas de veículos, despensa e lavanderia.
Para o trabalho científico, a EACF dispõe de 13 laboratórios destinados às ciências biológicas, atmosféricas e químicas. Tanques de combustíveis abastecem veículos como tratores, motos de neve, quadriciclos, lanchas, botes e balsas, além dos geradores que fornecem energia à estação. Os mantimentos – alimentos e bebidas – e os produtos de limpeza são armazenados para o consumo de um ano. O sistema de comunicação da EACF é bastante eficaz, incluindo telefone, rádio, internet e até correio.
Além disso, os cientistas brasileiros têm à disposição quatro pequenos refúgios, construídos longe da EACF: o Astrônomo Cruls, na ilha Nelson, o Emílio Goeldi e o Engenheiro Wiltgen, ambos na ilha Elefante, e o Padre Rambo, na ilha Rei George. Cada um deles pode abrigar seis pessoas por um período de 30 a 40 dias. Por vezes, os pesquisadores também se valem de acampamentos para desenvolver seus trabalhos, principalmente nas áreas de geologia e glaciologia. Na XXVI Operantar serão montados cinco.
Os cientistas do Proantar contam ainda com o navio Ary Rongel, que além de levá-los para a região dispõe de laboratório para alguns tipos de análise e equipamentos que permitem fazer coletas de dados ou observações científicas ao longo da viagem e no local em que fica fundeado, na enseada Martel, na baía do Almirantado. Ele pode ser usado para fazer os primeiros estudos do material colhido no continente. Além disso, muitas das pesquisas são realizadas em laboratórios de universidades e centros de pesquisa localizados no Brasil.
Sem esse apoio material e logístico, seria muito difícil para os cientistas brasileiros trabalharem no pólo. "Do ponto de vista científico, dispor de uma base na Antártida significa ter a chance de desenvolver pesquisas de ponta em ambiente polar, algo que já existe nos Estados Unidos e na Europa por apresentarem terras continentais em altas latitudes, o que não ocorre no Brasil, que é um país tipicamente tropical", diz César de Castro Martins, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que já esteve oito vezes na Antártida para estudar geoquímica orgânica e poluição marinha nas imediações da EACF. "Além disso, representa a possibilidade de atuar nas decisões que interferem na ocupação e exploração do continente antártico e, portanto, inserir ainda mais o Brasil no cenário geopolítico mundial."
A estação não é tudo, no entanto. Embora os pesquisadores desfrutem de razoável conforto nela, nos refúgios e no navio de apoio, o mesmo não acontece quando saem a campo para realizar seu trabalho. As dificuldades são muitas, a maioria causada pelo frio intenso. "Coletar amostras de água com equipamentos utilizados no convés das embarcações é uma tarefa muito difícil", diz a oceanógrafa química Elisabete de Santis Braga, do Instituto Oceanográfico, da USP, que realiza pesquisas na Antártida desde a primeira expedição brasileira, em 1982. "As condições do mar, o tamanho das ondas e os ventos dificultam tanto a descida e subida dos equipamentos de coleta como a retirada das amostras deles, já a bordo, para levá-las ao laboratório do navio ou da EACF."
Questão de logística
Há ainda outros problemas que devem ser vencidos. "O preparo e o embarque de todo o material necessário na região antártica devem ser pensados com muita antecedência e nada pode faltar", explica Elisabete, que estuda os teores de macronutrientes (nitrogênio, fósforo e silício), elementos essenciais para a vida marinha, nas águas da península Antártica. "Não se deve esquecer o lema no mar, que é quem tem um não tem nenhum, pois qualquer falha em um equipamento deve ser reparada ou ele deve ser substituído."
Simões, da UFRGS, que já esteve 18 vezes na Antártida, lembra outra dificuldade que pesquisadores como ele, da área de glaciologia, têm de enfrentar. "A logística do Brasil é limitada à região subpolar, principalmente ao mar e à costa", diz. "O estudo glaciológico, no entanto, exige avanço para o interior do continente", diz. "Por isso, cada vez mais algumas áreas científicas do Proantar realizam pesquisas em cooperação com outras instituições internacionais. Assim como a glaciologia, a geofísica, a geologia e a química da atmosfera só estão indo adiante graças a essa colaboração."
Além desses, há ainda o problema crônico, comum a toda a ciência brasileira, da falta de recursos, "principalmente em bolsas de estudos, absolutamente necessárias para a formação de uma equipe e para o desenvolvimento de pesquisa continuada", diz a arquiteta Cristina Engel de Alvarez, da Universidade Federal do Espírito Santo. Ela coordena o projeto Arquitetura na Antártida (Arquiantar), que tem como objetivo desenvolver tecnologias adequadas para tornar possível a presença brasileira naquela região gelada. "Se não conseguimos formar mestres e doutores especializados no assunto, a cada novo ano somos obrigados a gastar tempo e dinheiro treinando novos profissionais."
Os dados sobre o investimento brasileiro na área parecem dar razão a Cristina. Uma pesquisa recente sobre o Proantar, feita pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), órgão de economia mista responsável por grandes levantamentos e avaliações sob encomenda do governo, mostra que nos primeiros 23 anos de atuação na Antártida, de 1983 a 2005, o Brasil destinou apenas R$ 25 milhões aos 540 projetos científicos que desenvolveu na região, o que daria – caso os aportes tivessem uma regularidade que na verdade não apresentam – algo como pouco mais de R$ 1 milhão ao ano, ou seja, cerca de R$ 2 mil para cada um dos programas. Muito pouco, se comparado com o que aplicam outros países. A China, por exemplo, que fica do outro lado mundo, investe anualmente R$ 11 milhões.
Seja como for, mesmo com muitas dificuldades e poucos recursos, os pesquisadores brasileiros têm resultados a mostrar. O estudo do CGEE, realizado por encomenda do CNPq, mostra que, nos 23 anos analisados, foram publicados 1,3 mil trabalhos científicos sobre o continente gelado. Além disso, há muitos benefícios práticos. "Graças às pesquisas antárticas, vamos melhorar a previsão do tempo no Brasil, essencial se quisermos aumentar nossa produtividade agrícola e diminuir o custo social de desastres climáticos", enumera Simões. "As massas de ar frio que afetam o Brasil são formadas nessa região. Se não conhecermos o comportamento do clima de lá, não saberemos o que ocorre no país."
Segundo o pesquisador gaúcho, os dados coletados até hoje na Antártida devem começar a ser integrados em modelos climáticos, que ajudarão na previsão do tempo, em cinco anos. Simões lembra, ainda, as descobertas relacionadas à camada de ozônio. "Só sabemos que o homem a está destruindo devido às pesquisas antárticas", diz.
Esses são apenas alguns dos motivos que justificam a existência do Proantar. "A Antártida é um laboratório vivo para pesquisas das mais diversas áreas do conhecimento e oferece a oportunidade de realizar projetos multidisciplinares, particularmente no que diz respeito às mudanças climáticas globais", diz a ecóloga Maria Alice dos Santos Alves, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que em dezembro esteve pela primeira vez no pólo para estudar as skuas (Catharacta lonnbergi e C. maccormicki), aves típicas do continente, que servem como bioindicadores de qualidade ambiental. "O Proantar é um programa estratégico para o país e um exemplo em termos de pesquisa. Por isso, se tornou referência mundial."
mar/abr 2008
Revista Problemas Brasileiros
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