domingo, 10 de março de 2019

A metrópole e a saúde de seus habitantes

Resultado de imagem para A busca por cidades saudáveis
Helena Ribeiro
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Em linguagem, ao mesmo tempo, acessível e com aprofundamento científico, o livro Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles, de Paulo Saldiva (2018), aborda a saúde da vida urbana e fala do ser humano, como ressalta o próprio autor.1

Trabalhando em diferentes escalas - da célula passa pelo indivíduo e chega à sociedade urbana -, Saldiva integra seu conhecimento de médico patologista com conhecimentos de urbanismo e de saúde ambiental, que adquiriu no decorrer de sua vida acadêmica e de sua vivência, para nos oferecer esta obra.

O livro tem um enfoque científico e também literário e poético, visando despertar a militância, que esteve presente em toda a sua existência. Mas a militância do autor sempre foi generosa e sem raiva. É uma militância que não dá receitas aos outros, sem que ele mesmo pratique antes, num caminho frequentemente penoso numa cidade como São Paulo, sua morada. Largar o carro e andar de bicicleta, patinete e/ou a pé, numa área urbana imensa e montanhosa, com estados do tempo que variam enormemente durante um único dia, não é uma experiência fácil, sobretudo para quem tem horários rígidos de professor universitário, de administrador, de pesquisador e, mais recentemente, de jornalista. É isso que Saldiva faz para combater a poluição atmosférica, sua primeira grande batalha ambiental no campo científico.

O texto inicia saudando a cidade como ponto de encontro, ressaltando suas riquezas e vantagens para o ser humano e demonstrando o amor do autor pela vida urbana. Entretanto, nos mostra, com clareza, os problemas que a urbanização tem trazido para a saúde física e mental de seus moradores.

Os capítulos que seguem descrevem e discutem seus temas.

O capítulo “A biologia urbana” procura entender a cidade como um ecossistema que aumenta sua complexidade conforme aumenta seu tamanho e sua importância. Compara o crescimento urbano à dinâmica de vírus e bactérias, que procuram áreas novas e abandonam aquelas com sinais de esgotamento e deterioração. Faz aí um brevíssimo histórico da evolução urbana ao longo da história e ressalta que uma atuação eficiente e harmônica do parlamento urbano resulta em cidades eficientes e harmônicas e que o contrário ocorre quando o parlamento é ineficiente. Tenta, aí, passar de uma “biologização” da cidade para uma questão mais política e defende o planejamento como forma de tornar as cidades eficientes, sustentáveis e saudáveis.

“Obesidade” é o tema do capítulo seguinte, por conta do grande crescimento desse problema de saúde no mundo e no Brasil, nas últimas décadas. Inicia por descrever aspectos genéticos e epigenéticos que influenciaram o surgimento do excesso de peso, ainda antes do nascimento das crianças. Em seguida, passa por aspectos ambientais das cidades que favorecem a obesidade infantil, como a violência nas ruas (trânsito e crimes) que impede atividades físicas no ambiente externo público; o transporte individual e motorizado, que leva ao sedentarismo; o ambiente cultural das cidades que favorece o ganho de peso devido ao consumo de alimentos calóricos e gordurosos; a poluição atmosférica ultrafina.

“Doenças mentais” são, segundo o autor, causadoras de sofrimento para aqueles que delas padecem e para suas famílias. Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que a incidência de transtornos mentais, como depressão, ansiedade grave, consumo abusivo de álcool e uso de drogas, psicoses como esquizofrenia, vem aumentando globalmente. Estudos do Instituto de Psiquiatria da USP corroboram essa tendência em São Paulo. O autor ressalta que estudos epidemiológicos desenvolvidos em diversos países têm apontado que os transtornos mentais são mais frequentes em áreas urbanas, sobretudo as de maior porte, e aponta alguns fatores que poderiam ser protetores, como: a formação de uma rede de solidariedade, de afeto e de apoio nas regiões urbanas; o sono reparador; a diminuição da violência e da pobreza. Para todos esses fatores dá explicações baseadas em aspectos biológicos dos seres humanos, mas reforça aspectos políticos e sociais ao afirmar que “a taxa de doenças mentais é também um bom indicador para aferir a desigualdade entre os habitantes urbanos” (Saldiva, 2018, p.53).

No capítulo “Contagiosidade”, comenta que, ao mesmo tempo que o desenvolvimento das cidades cria condições para a elevação do espírito humano, o amontoamento de pessoas, em baixas condições sanitárias, favorece a proliferação de agentes infecciosos. O texto passeia por exemplos de lançamento de esgotos da Roma antiga (a Cloaca máxima) ao Rio Pinheiros em São Paulo e sua relação com doenças transmitidas por vetores artrópodes, ou outras de veiculação hídrica. Trata, também, das situações de contágio interpessoal de doenças respiratórias, como tuberculose e gripe, em áreas de alta densidade populacional.

“Poluição atmosférica e imobilidade” são tratadas no capítulo seguinte, de forma integrada, pois, na maior parte das cidades, a poluição atmosférica tem os veículos como principal fonte emissora e a imobilidade é causada pelo excesso de veículos, que dificulta o tráfego e gera congestionamentos e maior inalação de poluentes. Esse é um dos temas mais caros ao autor e estudado em suas pesquisas ao longo das últimas décadas. Como médico patologista, Saldiva nos mostra os efeitos da poluição atmosférica nos pulmões, que se constitui num risco coletivo de maior monta que o cigarro nas cidades, sobretudo em parcelas mais vulneráveis da população. Demonstra, também, como pessoas com menor salário, além de mais impactadas pela poluição e despenderem mais tempo no trânsito, gastam uma fração maior de seus dias para pagar pelo seu deslocamento.

No capítulo “As ilhas de calor urbano e alterações do regime de chuvas” compara o aquecimento urbano, fruto de alterações nos processos radiativos, com a febre do corpo humano adoecido. Essa intensificação do calor sobre as cidades altera significativamente o regime de chuvas e tem consequências sobre o ambiente e os riscos de agravos à saúde. O autor trata com bastante propriedade a dinâmica climática sobre as cidades, o que climatologistas têm denominado clima urbano já há sete décadas. Mas, de forma muito detalhada, didática e interessante, usa seus conhecimentos médicos para explicar como diferentes aspectos do clima das cidades podem influenciar a saúde, também pela produção de melanina e de vitamina D, e descreve adaptação por mecanismos epigenéticos de regulação. Obesidade, desnutrição, diabetes e aterosclerose são fatores que prejudicam a capacidade adaptativa às mudanças de temperatura, segundo o autor.

“A violência e seus dramas” é o tema do capítulo subsequente, que objetiva abordar como a percepção da falta de segurança, qualquer que seja sua origem, altera a saúde. Comenta que o mundo hoje é muito mais seguro do que já foi no passado, mas que a solução da violência nas cidades brasileiras está ainda longe do ideal. Demonstra como em bairros onde impera a violência também ocorre a falta de assistência médica. Descreve algumas medidas que podem contribuir para melhorar a segurança: aumento de iluminação em ruas, maior ocupação dos espaços públicos, políticas públicas para enfrentar o problema das drogas, baseadas em uma plataforma de diálogo entre neurociências, toxicologia, psiquiatria, psicologia, ciências sociais, antropologia, educação, economia e urbanismo.

Saldiva termina o livro com o capítulo “Soluções, as esperanças, as necessidades”. Fica evidente na obra o grande conhecimento do autor não só de aspectos médicos e biológicos dos seres humanos, mas da dinâmica da natureza transformada pelos homens e das questões sociais. Evidencia-se, além disso, sua integridade como pessoa e seu respeito pelos outros. Seu olhar respeitoso a outros profissionais e a outras ciências, com os quais defende a integração para solucionar os problemas urbanos, indica um esforço intelectual importante e generoso. Sua atenção se volta para os mais necessitados, não só aqueles mais afetados pelas doenças respiratórias e mudanças climáticas, mas para os portadores de deficiência física que têm grandes dificuldades de mobilidade na cidade.

Conclui com um discurso da esperança em que demonstra sua crença no ser humano e nas cidades e que destoa bastante da maior parte dos discursos ambientalistas. Esses, em geral, adotam um discurso de fim de mundo e de destruição, que é ao mesmo tempo culpabilizante e imobilizador e acaba por criar um sentimento de negação dos problemas, ou de que os problemas são tão grandes que estão além de nossa capacidade de resolvê-los. Saldiva, ao contrário, nos estimula a mudar os comportamentos egoístas, insalubres e insustentáveis em nossa vida cotidiana e em nossa prática política. Ademais, afirma que quase tudo que é necessário ser feito para reduzir as mazelas urbanas já está pronto para uso, não necessitando de grandes processos criativos. Em caso de inexistência de uma alternativa conhecida para um problema específico, lembra que as cidades são uma fábrica de ideias altamente eficientes.


NOTA
1O texto se compõe como um comentário ao livro Vida urbana e saúde, de Paulo Saldiva (2018).

REFERÊNCIA

SALDIVA, P. Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles. São Paulo: Contexto, 2018. 125p.

Helena Ribeiro é geógrafa, professora titular do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. @ - lena@usp.br
Revista Estudos Avançados

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