terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Pero Vaz de Caminha estava certo

A terra do "em se plantando tudo dá" investe na pesquisa para ser celeiro do mundo

EVANILDO DA SILVEIRA



Cultura de trigo / Foto: Marcos Santos/USP Imagens


“Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!” Por certo, quando escreveu esse trecho de sua famosa carta, dando conta ao rei de Portugal da descoberta do Brasil, Pero Vaz de Caminha não conhecia nada do imenso território ao qual havia aportado, em 1500, junto com os outros tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Quanto à quantidade de água ele acertou, é verdade – o país abriga 12% de toda a água doce do mundo –, mas em relação à fertilidade da nova terra estava redondamente enganado. Para que nela tudo desse e ela tivesse a produtividade excepcional de agora, que coloca o país como um dos gigantes mundiais do agronegócio, muito esforço, pesquisa e tecnologia tiveram de ser aplicados ao longo dos últimos 512 anos.

Hoje, além de produzir a maioria dos alimentos que consome – é praticamente autossuficiente em todos os itens da cesta básica, com exceção do trigo –, o Brasil ainda se coloca como o maior exportador de soja em grãos e seus derivados (farelo e óleo), carnes, açúcar e produtos florestais. No ranking mundial, ocupa a liderança na produção de açúcar, café em grãos e suco de laranja, e a segunda posição em soja em grãos, carne bovina, tabaco e etanol. E, ao longo do tempo, a safra de grãos vem crescendo continuamente: segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a colheita de 2011 foi de 162,8 milhões de toneladas, volume que deverá ficar em torno de 180 milhões de toneladas em 2012, segundo estimativas divulgadas pelo governo em outubro.

Ainda de acordo com o Mapa, o agronegócio é um dos motores da economia brasileira, respondendo por 25% do Produto Interno Bruto (PIB) e por um terço dos empregos. Em 2008, o Brasil ultrapassou o Canadá e se tornou o terceiro maior exportador agrícola do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da União Europeia. Em 2011, as exportações agropecuárias brasileiras chegaram a U$ 94,6 bilhões, 24% a mais que no ano anterior. No início de 2010, um em cada quatro produtos do agronegócio em circulação no mundo era brasileiro. As projeções oficiais indicam que, até 2030, um terço dos itens agrícolas comercializados no planeta terão origem no Brasil, principalmente por causa da crescente demanda dos países asiáticos.

Toda essa pujança, no entanto, não foi conseguida de uma hora para a outra, como num passe de mágica. Os primeiros agricultores brasileiros tiveram muitas dificuldades para viver da lavoura. O motivo é simples, como lembra o engenheiro agrônomo Magno Antônio Patto Ramalho, doutor em genética e melhoramento de plantas e professor da Universidade Federal de Lavras (Ufla). “Com raras exceções, as espécies cultivadas no Brasil foram importadas”, explica. “A maioria delas veio de regiões temperadas, com condições climáticas e de fertilidade do solo bem distintas das existentes aqui. Foi preciso, sobretudo, dedicação e persistência para possibilitar que o cultivo se desse em condições econômicas favoráveis para os agricultores.”

Maior rendimento

Contudo, isso apenas não é suficiente para explicar as transformações ocorridas. O fato é que sem a ciência provavelmente o Brasil não teria chegado tão longe, e estaríamos hoje importando alimentos. Foram as pesquisas científicas que tornaram possível a introdução, a adaptação e o melhoramento genético de várias espécies agrícolas. Isso, por sua vez, deu origem ao cultivo, sob as condições tropicais e subtropicais, de plantas com maior rendimento, qualidade e sabor e resistentes às principais pragas e doenças. Apenas para citar alguns exemplos, é o caso do milho híbrido adaptado às condições climáticas e ambientais do Brasil, e de variedades de café de menor porte e mais produtivas que as tradicionais.

Concorreu para isso a criação de instituições científicas, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), fundada em 1973. Antes delas, outros estabelecimentos já vinham contribuindo para a melhoria da agricultura brasileira. É o caso, por exemplo, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), fundado em 1887 pelo imperador dom Pedro II, com a denominação de Estação Agronômica de Campinas. “Nesses 125 anos de existência, o IAC já desenvolveu 960 variedades agrícolas, despontando entre elas arroz, feijão, café, frutas, hortaliças, oleaginosas, cana-de-açúcar, citros e tantas outras”, conta o farmacêutico bioquímico Marco António Teixeira Zullo, que foi seu diretor-geral no período de 2008 a 2011.

Para se ter uma ideia desse trabalho e dessas conquistas, de acordo com ele cerca de 90% dos cafeeiros do tipoarabica cultivados no Brasil, atualmente, são oriundos de variedades criadas pelo IAC. O instituto também se destaca na área de frutas. “O alicerce de toda a fruticultura paulista e, por consequência, brasileira, teve origem ali”, ressalta Zullo. “Um exemplo é o pêssego, que tem ganhado espaços em localidades de clima quente no interior do estado de São Paulo.”

As pesquisas da Embrapa também têm contribuído para expandir a produção da fruticultura, em especial no nordeste. Foram criadas novas variedades de uva, banana, abacaxi, melão, coco e acerola, por exemplo, mais adaptadas à região. Tecnologias como o uso de porta-enxertos e o desenvolvimento de videiras livres de vírus viabilizaram altas safras de uvas de boa qualidade. Também se destaca a técnica da indução floral, que é o uso de hormônios vegetais para acelerar ou uniformizar a ocorrência das flores de um vegetal e, consequentemente, dos frutos. Ela tem sido empregada com sucesso nas plantações de manga nas regiões do vale do Açu e do vale do São Francisco, garantindo a regularidade da oferta da fruta no mercado consumidor durante todo o ano.

De acordo com o engenheiro agrônomo José Roberto Rodrigues Peres, chefe-geral da Embrapa Cerrados, graças a essas tecnologias, nos últimos quatro anos o Brasil duplicou a exportação de frutas e o nordeste passou a ocupar um lugar de destaque no setor. Atualmente, a maior região produtora de melão no país localiza-se no polo Açu-Mossoró, no Rio Grande do Norte. Já o polo Petrolina-Juazeiro firmou-se como grande exportador de manga, banana, coco, uva, goiaba, melão e pinha. “Isso garante o emprego de 400 mil pessoas em áreas do semiárido da Bahia e de Pernambuco, revertendo o êxodo rural”, diz Peres. “Agora, a Embrapa está transferindo essas tecnologias de sistemas de cultivo de frutas tropicais para alguns países da América Latina, do Caribe e da África.”

O Brasil e as nações dessas regiões também poderão ter em breve produtos agrícolas mais ricos em vitaminas e nutrientes que os consumidos hoje. É o resultado de um processo chamado biofortificação de alimentos, realizado por meio do método de melhoramento genético clássico, em que as plantas com as características buscadas são selecionadas e cruzadas para obter a variedade de interesse. É um trabalho lento e demorado, que pode se estender por 10 a 15 anos, mas com resultado certo. Um exemplo é um tipo de mandioca com 40 vezes mais vitamina A que as comuns, que está sendo desenvolvida no IAC.

A engenheira agrônoma Teresa Losada Valle, pesquisadora do instituto e responsável pelo projeto, explica que a planta convencional tem 20 unidades internacionais (UI) de vitamina A por 100 gramas de raízes frescas, enquanto a nova variedade, chamada IAC 6/01, terá 800 UI. Ela é resultado do cruzamento de outra biofortificada, a 576/70 (que tem cerca de 220 UI e foi criada pelo IAC na década de 1970) com a SRT 1221(vassourinha-amarela). “Além de ter mais vitamina A, as duas (576/70 e 6/01) rendem duas vezes mais na lavoura que as comuns”, diz Teresa. “E são também muito mais resistentes a doenças e a alterações climáticas e ambientais.”

Da China aos trópicos

A biofortificação também vem sendo empregada pela Embrapa. No caso, para criar sete variedades de plantas – abóbora, arroz, batata-doce, feijão, feijão-caupi (fradinho), milho e trigo – mais ricas em ferro e zinco e com maior resistência a doenças e mudanças climáticas. “Até o momento, lançamos dez cultivares, dos quais três de mandioca e um de batata-doce, com teores superiores de betacaroteno (um precursor da vitamina A, ou seja, que depois de ingerido se converte nela), três de feijão-caupi e três de feijão comum mais ricos em ferro e zinco”, conta Marília Regini Nutti, pesquisadora da empresa e coordenadora do projeto. “Demoramos cerca de cinco a seis anos para desenvolver cada um, todos por melhoramento genético convencional.”

Na verdade, esse projeto é parte de um trabalho mais amplo, que vem sendo realizado por uma rede mundial de pesquisas, a HarvestPlus, que congrega cientistas de vários países. Ela surgiu em 2002 como uma iniciativa do Grupo Consultivo sobre Pesquisa Agrícola Internacional (CGIAR, na sigla em inglês), com financiamento da Fundação Bill e Melinda Gates e outros doadores, para a pesquisa em biofortificação. No Brasil, o projeto teve início em 2003, sob a coordenação da Embrapa, e hoje integra a Rede BioFORT, que reúne mais de 150 pessoas de diferentes áreas do conhecimento, de 11 estados. “Por meio dessa rede, interagimos com universidades, centros de pesquisa nacionais e internacionais, associações de produtores, governo, prefeituras e organizações não governamentais”, explica Marília. O objetivo é diminuir a desnutrição e garantir maior segurança alimentar, por meio do aumento dos teores de ferro, zinco e vitamina A na dieta da população carente.

Quando se fala da melhoria de espécies agrícolas não se pode esquecer a soja (ver “Um Presente da Deusa Ciência”,PB nº 408, novembro-dezembro de 2011). Originária da China, essa planta da família das oleaginosas foi introduzida no Brasil no início do século passado e, no princípio, só se adaptou bem nos estados do sul, onde os dias são longos na estação quente, como em sua terra natal. Foi necessário muito trabalho dos cientistas brasileiros para que ela pudesse ser cultivada em áreas tropicais, ou seja, a maior parte do território nacional, onde os dias, mesmo no verão, pouco ultrapassam as 12 horas de luz. Hoje, o resultado pode ser visto na produtividade das lavouras, que avançou mais de 70% entre 1988 e 2010.

Além do melhoramento genético, duas outras tecnologias contribuem para o bom desempenho da soja. Uma delas é a fixação biológica de nitrogênio, ou seja, o uso de bactérias em vez de adubos à base desse elemento químico. Pesquisadores daqui descobriram que uma delas, a Bradyrhizobium sp., tem a capacidade de captar o nitrogênio do ar e fixá-lo nas raízes das plantas – o solo é poroso e o ar penetra nele, sendo portanto aproveitado pelas bactérias para absorção do nitrogênio. Foi desenvolvido assim um processo pelo qual esses microorganismos são inoculados nas sementes antes do plantio, dispensando depois a adubação. Graças a isso, 52 milhões de toneladas de nitrogênio deixam de ser aplicadas todos os anos nos 24 milhões de hectares cultivados com soja no Brasil, gerando uma economia anual da ordem de US$ 5 bilhões.

De nada adiantaria, no entanto, espécies melhoradas e aperfeiçoadas se não houvesse boas terras onde semeá-las. De novo, a ciência dos homens deu uma mãozinha à natureza. Técnicas de uso e conservação e novas tecnologias agrícolas, como a adubação e a calagem (aplicação de calcário), o plantio direto e o manejo integrado de pragas e doenças tornaram possível incorporar ao sistema produtivo da agricultura brasileira vastas áreas de terras pobres, em que a fertilidade era baixa. O exemplo mais marcante é o cerrado, que, com seus 207 milhões de hectares, dos quais cerca de 139 milhões agricultáveis, é, atualmente, uma das maiores fronteiras agrícolas do mundo.

Dessas novas tecnologias, pode-se afirmar, uma das mais importantes é o plantio direto, um sistema de cultivo em que a semeadura é feita sem revolvimento do solo, e no qual são empregadas a rotação de culturas e a cobertura permanente da terra, seja com plantas em desenvolvimento seja com restos da lavoura do ano anterior. “Os benefícios dessa técnica não se limitam aos aspectos econômicos”, diz Peres, da Embrapa Cerrado. “Ela faz bem também para o ambiente. A redução das tradicionais operações de preparo do solo contribui para a queda da emissão de gases de efeito estufa, já que diminui significativamente o uso de combustíveis fósseis, propiciando um corte no consumo de óleo diesel de aproximadamente 20 milhões de barris, provenientes do refino de 75 milhões de barris de petróleo”, diz.

Processo de adaptação

O manejo integrado de pragas e doenças é outra tecnologia que ajudou a tornar a agricultura brasileira um grande negócio. Mais uma vez a soja serve de exemplo. Cientistas do país desenvolveram variedades dessa oleaginosa com resistência a várias doenças causadas por fungos, como as chamadas olho de rã, cancro da haste, oídio e podridão vermelha da raiz. “Com isso, 4 milhões de litros de fungicidas deixam de ser aplicados em por volta de 5 milhões de hectares”, informa Peres. “Os resultados são menos impactos ao ambiente e ganhos econômicos de cerca de US$ 280 milhões por ano”, acrescenta.

Assim como a soja, grande parte das olerícolas (nome técnico das hortaliças) cultivadas hoje no país veio de fora e, por isso, igualmente teve de passar por um processo de adaptação. Segundo o professor Ramalho, um papel importante nesse trabalho foi desempenhado na metade do século passado pelo pesquisador Marcílio Dias, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo em Piracicaba. Ele foi um dos principais responsáveis pela adaptação no Brasil de algumas espécies de brássicas, grupo das hortaliças que inclui o repolho-chinês, os brócolis, a couve-de-bruxelas, o repolho, a couve-flor e a couve. “Com temperatura alta, a couve-flor, por exemplo, não floresce e não tem valor comercial”, explica Ramalho. “Por isso, até 1960, ela só era cultivada em regiões serranas, como Petrópolis e Teresópolis, no Rio de Janeiro.”

Isso começou a mudar em 1954, quando Dias introduziu no Brasil linhagens da Índia, que foram cruzadas com as cultivadas nas regiões serranas, obtendo a cultivar Piracicaba Precoce nº 1, hoje a base genética da maioria das variedades de couve-flor plantadas em quase todo o país. Resultado semelhante foi obtido com a cenoura, que hoje é produzida em boa parte do território nacional, inclusive no verão. Ramalho chama a atenção para um detalhe que realça o feito de Dias. “A adaptação às altas temperaturas, nesses casos, foi em uma magnitude muito maior do que a variação que, se imagina, será causada pelo aquecimento global”, diz.

Mais recentemente chegou ao campo uma nova tecnologia ainda controversa: a das plantas transgênicas. “Ela abre a possibilidade da inserção de genes de interesse produtivo ou qualitativo que antes não estavam disponíveis em determinada espécie, aumentando-se, assim, as perspectivas do melhoramento genético”, explica o pesquisador Messias José Bastos de Andrade, da Ufla.

No Brasil já está liberado o plantio comercial de espécies transgênicas de soja (desde 2003) tolerante a herbicidas, algodão (2005) e milho (2007) resistentes a insetos, e feijão (2011) imune ao vírus do mosaico dourado do feijoeiro, doença transmitida pela mosca-branca (Bemisia tabaci), que pode causar perdas de cerca de 80% na produção. Também estão sendo desenvolvidos mamão e batata geneticamente modificados imunes a vírus. “No momento, há vários estudos em andamento com vistas a chegar aos chamados transgênicos de segunda geração”, informa Andrade. “Eles possibilitarão aumentar a qualidade dos alimentos agrícolas e sua vida nas prateleiras dos supermercados, bem como melhorar seu teor nutricional.”
Revista Problemas Brasileiros

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