Tecnologia das coisas minúsculas promete revolucionar conhecimento humano
EVANILDO DA SILVEIRA
Eisi Toma, da USP: avanços chegaram ao
mercado / Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Nunca o tão pequeno se tornou tão grande. A frase, publicada no artigo “O Gigantesco e Promissor Mundo do Muito Pequeno”, de autoria dos pesquisadores Henrique Eisi Toma e Koiti Araki, da Universidade de São Paulo (USP), é uma síntese precisa do que ocorre com a nanotecnologia. Esse mundo da escala do átomo e das moléculas promete uma revolução tecnológica maior do que todas as outras pelas quais a humanidade já passou, como a da agricultura, a da manufatura e a da microeletrônica. Diferentemente das anteriores, no entanto, que se limitavam à sua área específica, ela impactará todos os setores industriais, além da biologia e da medicina. Estima-se que, em 2015, o mercado mundial de produtos nanotecnológicos venha a movimentar em torno de US$ 3 trilhões (R$ 6,09 trilhões ao câmbio de setembro).
Um dos estudos mais completos já realizados no Brasil sobre o assunto, feito em 2010 pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), ligada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), traz mais dados a respeito. Chamado Panorama da Nanotecnologia no Mundo e no Brasil, o trabalho, como o título promete, fornece uma série de informações que mostram o estado atual dessa tecnologia. O levantamento começa pela nanociência, que embasa o avanço da nanotecnologia. Há diferenças entre as duas. A primeira estuda as propriedades dos materiais na escala do nanômetro; já a segunda é o emprego prático desse conhecimento voltado para o desenvolvimento e manipulação de nanomateriais, com o objetivo de criar produtos para fins comerciais.
Isso é possível porque a nanotecnologia nada mais é do que a engenharia de materiais em escala de átomos e moléculas. O prefixo grego nano significa anão e é empregado para indicar um bilionésimo de qualquer unidade de medida, como metro, quilograma ou litro, por exemplo. O nanômetro equivale, portanto, a um bilionésimo de metro. É nessa escala que se medem átomos e moléculas. Só para comparar, um fio de cabelo tem a espessura de 50 mil nanômetros. Uma analogia ajuda a dar uma ideia melhor da extensão que separa uma coisa da outra. Em relação ao tamanho, uma nanopartícula está para uma moeda de R$ 1 como esta está para a Terra. Ou seja, se a nanopartícula tivesse o tamanho da moeda, a moeda teria a dimensão do planeta.
A utilização de átomos como unidade básica na indústria torna possível a construção de nanodispositivos capazes de realizar tarefas até antes inimagináveis. Permite, ainda, desenvolver novos materiais, computadores e outros sistemas. Por isso, a possibilidade de manipular materiais na escala atômica ou molecular, em que as propriedades diferem significativamente daquelas do mundo que vemos, terá grande impacto em muitos processos industriais tradicionais, principalmente nos setores farmacêutico, químico, de energia, petróleo, mineração, metalomecânico, têxtil e automotivo. Na verdade, a nanotecnologia estará presente em praticamente todos os processos de fabricação da economia moderna, gerando ganhos de produtividade, redução de custos e o surgimento de novos produtos.
Quem primeiro vislumbrou esse mundo novo foi o físico americano Richard Feynman (1918-1988), Prêmio Nobel de Física em 1965. “Em 1959, durante uma palestra com o inusitado título ‘Há Muito Espaço Lá Embaixo’, ele disse que estava para nascer um novo mundo e que se poderia escrever a Encyclopaedia Britannica na cabeça de um alfinete”, frisa Eisi Toma, que é pesquisador do Laboratório de Química Supramolecular e Nanotecnologia, do Instituto de Química da USP. “Eu diria que Feynman foi até comedido”, ele diz, afirmando que a enciclopédia pode ser escrita num espaço bem menor.
Iniciativa estratégica
Não é à toa, portanto, que esse campo da ciência é tido como estratégico pelos países desenvolvidos, com os Estados Unidos na dianteira. Como aconteceu em outros ramos do conhecimento, os americanos saíram na frente também aqui. “Em termos mundiais, a nanotecnologia começou a deslanchar em 2000, quando o governo Clinton anunciou o lançamento da National Nanotechnology Initiative (Iniciativa Nacional de Nanotecnologia)”, esclarece Toma. “Esse programa foi copiado pela Coreia do Sul e pelo Japão em 2001, por Israel, Alemanha, Taiwan e China em 2002, pela Inglaterra em 2003 e pelo Brasil em 2004, após visita de prospecção na Europa promovida pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, da qual tomei parte”, diz.
Aqui, o interesse do governo começou um pouco antes, no entanto, quando, em 2001, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou um edital para a formação das Redes Cooperativas de Pesquisa Básica e Aplicada em Nanociência e Nanotecnologia. Foram formadas quatro redes, reunindo pesquisadores de todo o país. Em 2005, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Programa Nacional de Desenvolvimento da Nanociência e Nanotecnologia, com o objetivo de atender as demandas estratégicas identificadas pela comunidade dedicada ao desenvolvimento da área.
Mais recentemente, o país deu um passo adiante em relação ao tema com a criação, em abril passado, do Sistema Nacional de Laboratórios em Nanotecnologias (SisNano), que tem como principal objetivo mobilizar as empresas instaladas no Brasil e apoiar suas atividades para o desenvolvimento de processos, produtos e instrumentação que envolvam ciência e tecnologia na nanoescala. O que se busca também com esse sistema é consolidar e ampliar a pesquisa em nanotecnologia e nanociências, expandindo a capacitação científica e técnica necessária para explorar os benefícios resultantes em áreas como microeletrônica, nanotoxicologia, energias renováveis e limpas, biotecnologia e fármacos.
Para isso, a ideia é integrar os trabalhos dos 16 institutos nacionais de ciência e tecnologia (INCTs) do MCTI dedicados a estudos de nanotecnologia, além de mais dez unidades de pesquisa atuantes na área. Segundo Adalberto Fazzio, subsecretário da Secretaria de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do MCTI, irão despontar duas categorias de laboratórios: os estratégicos, instalados em unidades de pesquisa do próprio ministério, e os associados, pertencentes a universidades ou outras instituições. “A principal diferença entre eles é que os primeiros devem reservar no mínimo 50% de seu tempo para uso das empresas e, os segundos, 15%”, explica. “A meta é aumentar a competitividade industrial, introduzindo ferramentas e técnicas em nanoescala nas empresas, visando à inovação e ao acesso a novos mercados.”
Outra iniciativa do governo foi a criação, em maio último, do Comitê Interministerial de Nanotecnologia, composto por oito ministérios (Meio Ambiente; Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Defesa; Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; Educação; Minas e Energia, e Saúde, além do MCTI). O objetivo é propor mecanismos de coordenação das atividades relacionadas a essa área. Como explica Fazzio, “a meta é melhorar a gestão e a governança das atividades em nanotecnologia. O desenvolvimento industrial do país depende de pesquisa e investimento na área. Se queremos inovação, se queremos uma indústria de manufaturados forte, precisamos de uma tecnologia forte. Hoje, isso passa necessariamente pela nanotecnologia.”
A criação do SisNano e do Comitê Interministerial também vai ter como consequência um aumento dos investimentos governamentais na área. Segundo Fazzio, nos últimos dois aportes eles foram pouco relevantes, não passando de R$ 10 milhões anuais. “Com o SisNano, o MCTI investirá R$ 130 milhões, dos quais R$ 30 milhões em subvenção a empresas”, informa. “Esse dinheiro terá de ser destinado à pesquisa e ao desenvolvimento nas áreas de papel e celulose, plásticos e borracha, e higiene pessoal e cosméticos. Outros R$ 48 milhões irão para os laboratórios estratégicos e R$ 32 milhões para os associados. Os R$ 20 milhões restantes serão destinados ao Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano), que fica no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e será o de referência no Brasil.”
No CNPEM ficará sediado o Centro Brasil-China de Pesquisa e Inovação em Nanotecnologia (CBC-Nano), criado em fevereiro deste ano. Os dois países vão investir US$ 10 milhões nesse centro, com o objetivo de desenvolver, em cooperação, novas tecnologias em nanoescala. Segundo a portaria federal que o instituiu, o CBC-Nano terá a forma de uma rede virtual de pesquisa e desenvolvimento. Ele faz parte do novo Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica firmado pelos dois governos no ano passado. O centro vai coordenar as atividades que envolvam a cooperação Brasil-China e promover o avanço científico e tecnológico da investigação e de aplicações de materiais nanoestruturados.
Mercado bilionário
Apesar de todas essas iniciativas, o que o governo brasileiro investe em nanotecnologia é muito pouco diante do desembolso dos países desenvolvidos, ou até mesmo em relação aos gastos de algumas nações em desenvolvimento, como a China. Segundo o último relatório anual, de 2011, da Cientifica, uma empresa inglesa que reúne informações sobre as tecnologias emergentes para as comunidades acadêmicas e empresariais, o investimento governamental global na área, no ano passado, acumulou US$ 65 bilhões, valor que deverá chegar a US$ 100 bilhões em 2014. Quando a isso são somados os gastos das empresas, a previsão é que os investimentos cheguem a US$ 250 bilhões em 2015. Os governos que mais investiram, em 2011, foram o americano, com US$ 2,18 bilhões, e o chinês, com US$ 1,3 bilhão. Parte desse dinheiro vai para a pesquisa.
Segundo o levantamento da ABDI, entre 1996 e 2005 o número de trabalhos científicos em nanociência no mundo cresceu a uma taxa de 16% ao ano, ou seja, ele dobra a cada 4,7 anos, mais que quatro vezes o crescimento anual da produção científica em geral. Os dados revelam que o número de artigos da área, em relação ao total geral, quase triplicou durante a última década, passando de 1,5% a 4,2%. Em outras palavras, a nanociência vem avançando muito mais rápido que as demais áreas do conhecimento. Como não poderia deixar de ser, isso se refletiu no desenvolvimento de tecnologia, com a consequente criação de novos produtos – o que é atestado pelo número de patentes: de acordo com o estudo da ABDI, a taxa média de crescimento anual dos registros feitos pelo escritório de patentes dos Estados Unidos, o United States Patent and Trademark Office (USPTO), entre 1981 e 2006 foi de 12,9%.
Esses novos produtos vêm ajudando a movimentar um mercado bilionário, que cresce a passos largos. Ainda de acordo com a pesquisa da ABDI, em 2004, os produtos nanotecnológicos haviam feito girar na economia mundial não mais de US$ 13 bilhões, representando menos do que 0,1% da produção global de bens manufaturados no período. Três anos depois, esse mercado se multiplicaria por dez, chegando a US$ 135 bilhões (incluindo semicondutores e eletrônicos). A previsão é que esse valor atinja US$ 1 trilhão no ano que vem e US$ 2,95 trilhões em 2015, ou mais de 15% do total de produtos industrializados fabricados no planeta. Hoje, desse mercado, a maior parcela tem origem no setor químico (53%), seguido pelo de semicondutores (34%).
No Brasil, não há dados sistematizados e confiáveis sobre produtos, processos e serviços baseados em nanotecnologia. O que se conhece são alguns números da produção científica no campo da nanociência. Segundo a ABDI, de 2005 a 2008 foram publicados 833 artigos por 2.242 cientistas brasileiros de 541 instituições de pesquisa. Uma busca na Plataforma Lattes, banco de dados administrado pelo CNPq que reúne informações sobre a quase totalidade dos pesquisadores locais, mostra que havia no país, no mesmo período, 3.502 cientistas que se dedicavam à nanociência. Deles, 1.040 investigavam nanopartículas; 832, nanoestruturas; 719, materiais nanoestruturados; 581, nanocompósitos; 448, nanomateriais; e 445, nanotubos.
Apesar de incipiente no país, a nanotecnologia brasileira já deu frutos. Embora possam parecer coisa de ficção científica, alguns produtos já são realidade entre nós. Vários exemplos vêm da indústria automotiva. Segundo o engenheiro Ricardo Takeo Kuwabara, da SAE Brasil – braço local da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade –, que em julho coordenou um simpósio sobre novos materiais e nanotecnologia realizado em São Paulo, ela tem evoluído muito desde que os dois primeiros microscópios eletrônicos foram importados em 1987 pela USP e por uma empresa nacional de autopeças. “A partir daí foram desenvolvidos no Brasil plásticos de engenharia com características especiais de resistência e maleabilidade, chapas metálicas mais finas e resistentes e tintas e vernizes anticorrosivos”, enumera. A lista inclui ainda filmes antibacterianos para revestimentos internos e pneus que fazem os carros consumirem menos combustível, porque geram pouco atrito na rodagem, mas sem perder a aderência.
Nanocápsulas
Há outros produtos brasileiros nesse rol, em áreas tão diversas como cosméticos, catalisadores, revestimentos plásticos, borrachas e ligas metálicas, e até uma língua eletrônica mais sensível que a humana na distinção de sabores. Mas é em termos mundiais que a gama de produtos cresce e se avoluma. “Ainda na área automotiva, foram criados metais e pinturas que se autorregeneram após sofrer riscos ou danos”, acrescenta Kuwabara. “Também há o desenvolvimento de semicondutores capazes de reconhecer a fisionomia sonolenta do motorista e emitir comandos à ECU [electronic control unit, unidade eletrônica de controle] do veículo, evitando acidentes.”
Entre todos os campos que, de uma forma ou de outra, sofrerão o impacto da nanotecnologia dois se destacam: a medicina e a eletrônica. Na primeira, por exemplo, já estão sendo desenvolvidas nanocápsulas, que levam o remédio diretamente ao tecido, órgão ou tipo de célula onde ele se faz necessário, evitando que chegue a regiões do organismo em que possa causar efeitos colaterais. Existem, também, nanoprojéteis capazes de atacar tumores. É o que acontece no caso do câncer de mama, que há mais de dez anos é tratado com sucesso com um nanomedicamento à base de paclitaxel, uma substância que, na forma anteriormente usada, exigia a combinação com um produto tóxico para poder ser absorvida pelo organismo.
Na área da eletrônica, segundo Eisi Toma, é possível considerar a nanotecnologia uma extensão natural da microeletrônica, e sua realidade pode ser vista nos grandes avanços que já estão no mercado, tais como processadores, sistemas de memória, monitores e outros dispositivos. “Tudo isso, hoje, é nano”, diz o pesquisador da USP.
Ainda de acordo com Eisi Toma, existem atualmente dispositivos com 20 nanômetros, dos quais é possível colocar mais de 1 bilhão num pequeno cartão, para gerar os computadores que ficam cada vez mais finos e possantes. “Se isso fosse feito com as válvulas dos anos 1950, precisaríamos de uma área equivalente à da cidade de São Paulo, sem falar que seria usada toda a energia consumida pela metrópole”, diz.
Revista Problemas Brasileiros
Nenhum comentário:
Postar um comentário